Capítulo 2

4.4K 320 112
                                    

Eu não sei como alguém nestas condições é capaz de permanecer vivo. É difícil achar uma parte do corpo de Cinna que não esteja em carne viva. Eu tento me controlar, e não chorar desesperadamente, como eu desejo. Pois não é disso que ele precisa. Com todo o cuidado consigo levanta-lo do chão, e o sento escorado na parede. Enquanto faço isso, vários gemidos escapam de sua boca, agora, praticamente sem dentes. Mas acredito que essa é uma posição melhor do que a que ele estava. Vejo, a uma distância, uma jarra com agua, e uma tigela. Tenho que engolir o nó em minha garganta novamente. Que tortura é essa? Deixar agua e comida tão perto da pessoa, sabendo que ela não poderá alcançar?
Vou até lá, e pego a tigela que percebo, contém uma espécie de sopa, e parece que acabaram de fazer. Deduzo que fazem isso todos os dias. Pego a jarra com agua que ainda esta gelada. Minha cabeça dói, por descobrir tamanha crueldade. Quando me aproximo de Cinna novamente, seu corpo todo treme, e as lágrimas não param de abrir caminho por seus olhos, agora sem vida.

Coloco a jarra em sua boca e vou virando, devagar. Ele toma tão rápido, que por diversas vezes engasga. Em seguida, faço o mesmo com a sopa. Vou virando a tigela em sua boca, até que não resta mais nada. Um pensamento não sai da minha cabeça, enquanto o vejo devorar tudo, dessa maneira. Há quantos dias ele está nesta situação? Tiro o meu casaco, o molho com um pouco da agua que restou e limpo seu rosto. Como eu vou tirá-lo daqui?

- Cinna, você consegue falar? – pergunto após um longo silêncio.

Ele tosse. Tosse sangue. Eu limpo ao redor de sua boca mais uma vez.

- Katniss? – ele balbucia.

- Katniss... Ela... – eu simplesmente não consigo falar. As lágrimas que eu tentava tanto controlar começam a escapar por meus olhos. – Ela... Katniss... Está morta.

Agora, que as palavras saíram de minha própria boca, é que eu consigo entender. Eu estava tão focado em me recuperar e acabar com Snow, que o fato de Katniss ter morrido, parecia meio oculto em minha mente. Mas aqui, agora, olhando nos olhos de Cinna, uma pessoa que eu realmente conheço, falando estas palavras, tudo me acerta com tamanha força, que eu me sinto incapaz de respirar.

- Não ... – Cinna sussurra.

- Eu falhei Cinna – digo, em meio aos soluços – eu falhei com todos. Katniss está morta, Finnick, Chaff, e sabe-se lá quem mais. Tudo por minha culpa Cinna. Você está aqui, por minha culpa.

- Não – ele diz, mais alto.

- Claro que é – explodo. – Eu não queria acreditar. Mas... Cinna, Katniss está morta. A única coisa que eu temia aconteceu. Por minha culpa. Eu deveria ter ficado com ela até o fim.

Cinna permanece em silêncio. Apenas o som do meu choro ecoa na sala vazia.

- Eu vou te tirar daqui Cinna. E matar Snow. Por Katniss – digo, convicto.

- Peeta – ele arfa. – Matar Snow não trará Katniss de volta.

- Eu sei – respondo, enxugando freneticamente as lágrimas. – Mas ao menos, eu poderei vingar sua morte.

- Isso faria com que você se igualasse a eles – ele me repreende, e tosse mais uma vez. Sangue. Enxugo o seu rosto.

- Como você pode pensar desta maneira, Cinna? Olhe o que estão fazendo com você! Te deixaram aqui, apodrecendo para morrer.

- Eu fiz minha escolha – ele sussurra com dificuldade - e sabia as consequências quando decidi ajudar na revolução.

Penso sobre isso.

- Havia um plano, não? Para o massacre? – pergunto.

Ele não responde. Dou o resto de água a ele.

- Vou pensar numa maneira de te tirar daqui. Eu prometo – digo.

- Amanhã, provavelmente estarei morto. Eles sabem de tudo o que acontece aqui – ele faz uma pausa, respirando com dificuldade. – Fuja Peeta.

Eu não posso ir embora. Eu não posso deixar Cinna aqui.

- Não Cinna. Eu não posso deixar mais ninguém morrer – grito.

- Peeta, eu já estou morto faz tempo. Viva a vida que Katniss desejaria a você.

E dizendo isto ele embarca num acesso de tosse, e eu penso que desta vez ele não irá aguentar. Mas, quando ele se acalma, limpo seu rosto mais uma vez, e para minha surpresa, ele está sorrindo.

- Obrigado – ele diz fracamente – agora vá.

Volto para meu quarto, numa espécie de estupor. Não me lembro do caminho que fiz. Mas reconheço o lugar, por ter passado tantos dias aprisionado aqui. Eles vão matar Cinna, quando perceberem que alguém o achou. Com certeza há câmeras por aqui. Eles vão saber que fui eu que o ajudei. Mais uma morte, por minha culpa. Matar Snow não trará Katniss de volta. Vou até o banheiro, e começo a me despir. Ligo o chuveiro. A agua cai, quente. Katniss está morta. De repente, nada mais faz sentido. Como eu posso viver, sendo que Katniss não está aqui? Do que adianta eu matar Snow? Do que adianta eu continuar respirando, me exercitando, me alimentando todos os dias, se eu nunca mais verei Katniss? Me agacho no chão do banheiro, e choro. A dor é tanta. Não existe vida para mim sem Katniss. Olho para o pequeno armário na parede do banheiro. Me levanto, ainda trêmulo, abro a pequena porta. Ali se encontram vários frascos de remédios. Para dores nos músculos. Para falta de ar. Para dor de cabeça. Para a pressão. Metodicamente abro cada frasco, despejo o conteúdo em minha mão, e levo até a boca, engolindo os comprimidos com o auxílio da agua que cai do chuveiro. Sinto ânsias, mas não permito que eles saiam de dentro de mim. Não faz sentido eu viver. Quem sabe eu encontre Katniss em algum lugar além deste mundo? Ela pode estar com seu pai, apenas me esperando. Gale cuidará da sua família. Estou indo para você Katniss.

Não tenho consciência de mais nada. Apenas do impacto do meu corpo caindo no piso gelado. A agua quente continua caindo. Eu não tenho mais medo. Era exatamente isso que eu devia ter feito desde o início. Me lembro, dos lábios de Katniss contra os meus, no nosso beijo na arena. Seu sorriso. Seus olhos... Espere. O desespero começa a crescer dentro de mim. Eu não me lembro. Como isso está acontecendo? Escuto um barulho ao longe. E vai aumentando. Eu não consigo me lembrar. Vejo Moira adentrando o banheiro. Ela está gritando algo. Será que ela não vê que estou desesperado?

- Peeta! O que você fez – ela grita sem parar. – O que você fez Peeta?

Seguro seu braço. Minha língua parece estar enorme. Eu mal consigo falar. Mas eu preciso saber.

- Que cor são – consigo dizer.

- Do que você está falando? – Moira grita. Sua voz parece estar cada vez mais distante.

Começo a chorar copiosamente. O que está acontecendo comigo?

- Eu não me lembro... – murmuro – eu não consigo me lembrar.

Tudo ao meu redor está escurecendo. O rosto de Moira é só um borrão. Dois homens aparecem.

- Nós vamos salvar você, querido – Moira diz.

Eu não quero ser salvo. Eu só preciso me lembrar.

- Por favor – suplico segurando com toda força que consigo o braço de Moira – só me diga, que cor são os olhos de Katniss?

Ela me olha profundamente. E por um instante, tudo para. Ofegante, aguardo sua resposta.

- Sinto muito, mas... Eu não sei – ela diz, enquanto os dois homens levantam meu corpo.

A agua quente não cai mais sobre mim.

- Eu também não sei – sussurro. – Eu não consigo me lembrar. Não mais.

A Esperança - Peeta MellarkOnde histórias criam vida. Descubra agora