Fingir que está bem, quando na verdade você não está, tem sido bem difícil. A conversa que tive com Katniss pode ter sido esclarecedora, mas eu não me sinto bem. Me pego com vontade chorar. De bater em alguém, alguma coisa, quebrar estes vidros que me cercam, gritar até minha garganta sangrar. Mas, eu tenho que me controlar. Ellean tem diminuído consideravelmente minhas doses de remédios. Johanna não veio me ver, mas sei que Haymitch está espalhando a notícia de que estou bem. Conforme a névoa vai se dissipando da minha mente, com a ausência dos remédios, memórias novas afloram... E são tão constantes e tão dolorosas, que eu tenho que me conter para não ser dopado novamente. Eu me lembro, de dormir ao lado de Katniss, sentindo sua respiração fundindo a minha. Seus olhos fechados, sua expressão serena... E quase sinto a felicidade de ter tido ela assim, comigo. O barulho da porta se abrindo faz eu voltar a minha cruel realidade, pisco várias vezes a fim de afastar as lágrimas, e olho para a bela figura de Delly.
- Senti saudades – ela diz, e me lança um sorriso hesitante.
Tento sorrir, mas os cantos de minha boca parecem rígidos.
- Bom te ver – digo, e me surpreendo por estar sendo realmente sincero.
Delly se senta na minha cama, bem perto de mim. Seu cabelo cai pelos ombros, cascatas de cachos pálidos.
- Peeta, os arranjos do bolo ficaram lindos. Todo mundo se encantou. Você está cada vez melhor – dizendo isto ela segura minha mão. O toque tão íntimo e inesperado faz com que eu recue. Ela me olha um pouco magoada, enquanto minhas mãos começam a tremer. Respirando fundo, aproximo lentamente minha mão da dela novamente, e desta vez eu a seguro. Sua mão é macia, porém é fria.
- Ela também gostou do bolo? – pergunto, me amaldiçoando por levar a conversa para este lado.
Delly pondera.
- Katniss achou lindo, sim. Todos acharam.
As palavras saem, com fúria, antes que eu possa fazer algo.
- Aposto que ela iria achar ainda mais lindo o sangue de Cinna esguichado nas paredes, por culpa dela.
Delly solta minha mão, com uma expressão de horror.
- Peeta.... Não diga isso ...
- É a verdade, Delly. Eu gosto de você, mas não suporto ver você defendendo aquela coisa.
Minhas mãos tremem cada vez mais.
- Você tinha que ter visto... – ela começa, com a voz embargada. – como ela ficou, quando descobriu que a capital te levou...
- Tudo fingimento – grito...
- Quieto. – ela grita, me interrompendo. – Ela realmente sofreu. E está sofrendo ainda mais, agora, que te transformaram nisso...
Ela me olha tristemente.
- Ela não está sofrendo. Na verdade, parece mais que ela está debochando de mim. Você não viu como ela me tratou quando nos falamos – relembro, amargamente.
Delly enrubesce.
- Na verdade, eu vi... – ela diz, e olha para o vidro. – Eu não entendo porque ela te disse aquelas coisas, mas ela está tão perturbada quanto você.
- Perturbada com o que? Ela não foi torturada, não viu pessoas queridas morrendo – engulo o nó na garganta, mas me vejo incapaz de continuar a falar.
- Peeta, você não consegue ver? O distrito em que ela nasceu foi destruído, e foi sim, uma punição para ela... Agora ela é obrigada a ser o símbolo de uma revolução que ela nunca quis sequer participar. E ... – ela solta um soluço – o garoto que ela ama, e que a amava mais que tudo, agora a odeia...
Há um longo silencio.
- Estas coisas que você diz, não condizem com a Katniss que eu vi – me limito a dizer.
Delly me fita, grossas lágrimas escorrendo por seu rosto.
- Volte ao normal... por favor... tem muita gente sofrendo por você estar assim....Inclusive eu.
- Como eu voltarei ao normal, se eu não faço ideia de como eu era antes? Todos dizem que eu estou melhorando, ou piorando, ou louco...Mas ninguém entende... Isso é o que eu sou agora, não importa o que eu tenha sido antes.
Involuntariamente, com certa dificuldade devido as algemas, consigo enxugar um pouco das lágrimas em seu rosto.
- Não sei se é possível as pessoas continuarem te amando, com você assim – ela lamenta.
- Mas eu não estou pedindo o amor de ninguém – respondo bruscamente.
- Todo mundo precisa de amor, Peeta.
- Você está enganada. Nos dias em que passei na capital, a única coisa que eu queria, que eu precisava, era não sentir mais dor.
Delly estremece.
- Eu sinto muito – ela murmura.
- Tudo bem – digo sentindo uma ânsia, de acalmá-la. – Eu vou ficar bem.
Ela sorri, apenas um pouco.
- Sim, você vai.
Sem nenhuma despedida, ela se vai, me deixando ainda mais instável. Talvez Katniss aja assim comigo, por estar nervosa com a situação. Ela não pode ser uma mutação. Isso eu tenho quase certeza. Mas ela pode ser uma pessoa terrível ainda assim. Uma ideia me ocorre. Talvez nunca permitam... Mas eu estou melhor, certo?
- Haymitch – grito. – Ellean....
Demora apenas alguns segundos para Ellean adentrar a sala, seguida por Haymitch. Parece até que estavam ao lado da porta, apenas esperando meu chamado.
- Eu acho que ficar trancado aqui não está sendo saudável – disparo. – Vocês mesmo, afirmam que eu obtive melhoras depois de ter feito os arranjos do bolo.
Ellean e Haymitch se entreolham.
- E o que você sugere, Peeta? – Haymitch pergunta cauteloso.
- Eu não sei... fazer alguma atividade fora desta sala, mesmo que sozinho...
- Comer no refeitório, talvez? – Ellean sugere.
Estremeço ao pensar nesta hipótese, mas não a descarto.
- Também. Posso me exercitar – sugiro olhando para meu corpo magro.
- Não sei.... Teremos que falar com a presidente – Haymitch diz, mas me lança um olhar cheio de esperanças.
E cerca de duas horas depois, dois guardas aparecem e avisam que hoje irei almoçar no refeitório. Justo o pior desafio. Gostaria que Ellean tivesse aplicado só uma dose de algum calmante em mim, pois não sei se estou de fato preparado para isso.
Caminho lentamente amparado pelos guardas. Aos poucos a tensão me abandona, e eu me sinto quase um deles, um dos cidadãos desse distrito. A não ser pelas algemas. E os guardas logo atrás. Pego a bandeja, com um prato de ensopado com um cheiro irresistível, e vou de cabeça erguida para o desconhecido. O refeitório vai estar cheio de pessoas. Talvez até Katniss esteja lá. Mas nem todo o calmante do mundo, poderia me preparar para o que vejo. Katniss está de fato aqui, bem a minha frente, sentada numa proximidade nauseante com Gale, e rindo. Rindo pra valer, como se a vida fosse perfeita, como se o garoto que ela um dia talvez amou, não estivesse aprisionado como louco, não tivesse quase morrido na capital por culpa dela. Não estivesse precisando apenas dela, para talvez ficar bem um dia. Nesse momento, enquanto seguro tão forte a bandeja, que meus dedos até doem, é que eu entendo, com pesar, que ela não se importa. Que ela nunca se importou comigo.
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A Esperança - Peeta Mellark
FanfictionEsta é uma fanfiction do livro "A esperança", pela perspectiva do personagem Peeta Mellark.