Estou vivo. O primeiro sentimento que me acomete ao descobrir tal coisa, é descrença. Mas de fato estou vivo, pois estou escutando um bip calmo, marcando os compassos do meu coração. E minha felicidade só cresce pois se eu sobrevivi, Katniss também tem de estar viva. Logo depois desse pensamento eu me sinto afundar novamente na escuridão, dessa vez não é algo sombrio, que me suga, é mais como estar imerso na calmaria.
Tenho alguns relapsos, onde até consigo abrir meus olhos nos dias, horas ou meses que se seguem. Não tenho como ter a noção do tempo. Nessas breves ocasiões tive vislumbres de Johanna chorando no peito de Haymitch enquanto ele a abraçava. Pude ver Carolynn aparentando ser ainda mais pequena, adormecida num emaranhado de cachos ao lado da minha cama. E também vi Delly segurando minha mão, murmurando baixinho, de olhos fechados. Mas meus olhos se abrem tão rápido quanto se fecham, e por mais que eu me esforce em mantê-los abertos, simplesmente não consigo. E em todas estas ocasiões ninguém notou meu esforço. Às vezes, consigo ouvir fragmentos de conversas, mas nada que me de alguma ideia sobre o estado de Katniss. Também sinto dores. Muitas dores. A impressão que tenho é que meu corpo ainda está sendo consumido pelo fogo. Pensando agora, foi um tanto idiota o que eu fiz. Mas eu não tive escolha. Eu não tinha forças para enfrentar aquelas pessoas, nem balas para matar todas elas, coisa que eu faria se isso significasse poupar Katniss de ser linchada. Então o que mais eu poderia ter feito além de formar um escudo com meu próprio corpo?
A resposta é simples. Nada. Escuto passos, e nem me dou ao trabalho de tentar me comunicar. Logo a doce e familiar morfina entra em minha corrente sanguínea, e eu volto para minha habitual calmaria. Porém, antes que eu adormeça, um pensamento inusitado me acomete. Toda aquela raiva, o mal, intricado dentro de mim pelo veneno das teleguiadas, parecem ter se extinguido, se consumido junto com as chamas. Sinto o sorriso se formando em meus lábios, antes de adormecer profundamente.
Meus olhos se abrem sem esforço depois de parecer terem ficado uma eternidade fechados. As luzes fluorescentes, as paredes brancas revelam algo que eu já suspeitava. Estou num hospital, claro. Demoro um pouco para focalizar, até reconhecer os rostos ao meu redor. Johanna está sentada numa espécie de almofada no chão, a cabeça pousada de lado em seus joelhos enquanto ela brinca com a manga de seu agasalho. Delly está sentada ao lado da minha cama, segurando minha mão e fitando o chão. Um desgrenhado Haymitch está numa cadeira com a cabeça jogada para trás como se alguém o tivesse jogado ali. Carolynn está adormecida com a cabeça quase encostando no ombro dele. Um tufo de seus volumosos cabelos paira a centímetros da boca aberta de Haymitch. Sorrio, com lágrimas aflorando em meus olhos.
- Gente – digo, o mais alto que posso, minha voz áspera arranhando minha garganta. Atraio os olhares de todos, até dos mais adormecidos. Eles me olham, aturdidos, em seguida suas expressões radiando alegria. E pela primeira vez, a primeira coisa que faço, não é perguntar sobre Katniss. – Caramba, como é bom ver vocês.
Em seguida sou sufocado por um abraço coletivo, em meio a muitas lágrimas, não só minhas. Enfim entendo, que não estou sozinho no mundo.
Quando todos conseguem se afastar, e se recuperar da enxurrada de lágrimas me permito perguntar por Katniss.
- Ela está bem – Haymitch responde.
- Vai ficar bem, um dia – Johanna retruca. Haymitch olha feio para ela, e tenho certeza que ela seria capaz de mostrar a língua pra ele, se não fosse um gesto tão infantil.
- Esqueci de arranjar bebidas para você, Haymitch – digo. – Estive um pouco ocupado.
Ele ri, em seguida abre seu casaco, onde se encontram duas garrafas nos bolsos internos. Céus, como senti falta deles. Johanna continua esquelética, porém seu cabelo cresceu bastante, e admito que o tamanho ficou bom pra ela.
- Hey! O que foi? – ela pergunta e me dá um soco no braço, bem de leve, o que mesmo assim me causa dor.
- Ai! – grito. – É que você está muito bonita.
Ela enrubesce.
- Não posso dizer o mesmo de você – ela retruca e sorri tristemente para mim.
Aperto a mão de Delly, que segura a minha firmemente.
- Escute Peeta – Delly diz, e puxa meu queixo delicadamente para que eu olhe em seus olhos. – Vai melhorar, quando cicatrizar.
- Se eu tivesse chego antes você não teria sofrido tudo isso – Carolynn grita, mais lágrimas correndo por seu rosto.
- Pare com isso agora – grito. – Se não fosse por você, eu estaria morto, Katniss também. Eu devo minha vida á você, pequena.
Ela arregala os olhos, em seguida se desmancha em mais lágrimas.
- É que... – ela gagueja. – Cinna me chamava assim... Faz tanto tempo que ninguém me chama assim...
- Eu posso te chamar assim? – pergunto, e lanço um sorriso a ela, o que faz meu rosto doer.
- Claro que pode... Claro – ela diz, enxugando suas lágrimas e sorrindo de volta para mim.
- Agora, se possível, eu gostaria de um espelho – peço, o que gera tensão á todos.
- Peeta – Delly e Haymitch começam ao mesmo tempo.
- Deem logo a droga do espelho a ele – Johanna brada, e no mesmo instante Carolynn sai, retornando após alguns segundos com um pequeno espelho de moldura prateada na mão.
Quando olho meu reflexo, tenho vontade de gritar. Há uma parte em minha bochecha e em minha testa que tem uma coloração rosada, o restante tem uma cor pálida, esverdeada. Uma sobrancelha minha se foi, provavelmente queimada. Um lado do meu rosto, perto da orelha parece repuxado. Eu sou oficialmente um monstro agora.
- Minhas chances com Katniss diminuíram de zero para um negativo agora – brinco, mas não consigo disfarçar a tristeza na minha voz.
- Peeta, você é lindo, sempre será. Não importa se seu rosto está um pouco diferente, quem te conhece de verdade, nunca irá te achar nada menos que absolutamente lindo – Delly diz, e eu sei que ela está sendo verdadeira. Mas ela me ama, é diferente.
- Ela está certa – Johanna concorda – eu ainda te pegaria, pequeno frankstein.
Sorrio.
- Haymitch? O que você acha? – pergunto.
- Não quer que eu diga que você é lindo, também, não é?
- Seria bom ter mais uma opinião, sabe – brinco.
Sinto Carolynn pegando minha outra mão.
- Você continua lindo, querido – ela diz, e sorri de uma maneira radiante. É impossível não sorrir também.
- Bom, vocês conseguiram restaurar um pouco da minha autoestima, mas agora preciso fazer uma coisa – digo, ficando sério.
Todos me olham confusos, visto que eu não posso sair daqui.
- Annie Cresta está aqui? – pergunto, por fim.
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A Esperança - Peeta Mellark
FanfictionEsta é uma fanfiction do livro "A esperança", pela perspectiva do personagem Peeta Mellark.