Capítulo 32

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Paulo assistiu aquele filme infantil ao lado de Julia, ele não conseguia se recordar de quanto tempo havia se passado desde a última vez em que fizera algo tão ingênuo como assistir uma animação infantil. Ele precisava daquilo, não do desenho em si, mas da sensação de conforto que aquilo trazia, da ideia de pertencimento.

Se bem que o pertencimento não emanava de um filme para criancinhas, e sim da presença de Julia, com a qual ele estava mais do que acostumado. Nos meses em que namorou com Alice, Paulo não sentia nada como aquilo, a presença dela era apenas mais uma onde quer que eles estivessem, mesmo no quarto.

Não é bem verdade, nem sempre que nós estávamos no quarto ela era apenas mais uma presença. Pensando bem, era exatamente no quarto que ela gostava de se mostrar de verdade.

Ele olhou para seu lado algumas vezes durante o filme, Julia parecia concentrada demais para notar sua presença.

Quando o filme acabou, Paulo se levantou e foi ao banheiro. Ele se sentiu estranho andando até o quarto e registrando a ausência de Alice. Realmente era ali que ela costumava deixar sua marca, às vezes na bagunça das coisas que ela levava, às vezes no corpo de Paulo.

Aquele pensamento, que aos poucos seria apagado de sua cabeça, foi tomado por tranquilidade quando seus olhos caíram sobre Julia, quando ele voltou do banheiro. Ela estava na cozinha, comendo o cereal de uma tigela.

Sem dizer nada, Paulo pegou outra tigela e se serviu de um pouco de cereal para acompanhá-la no lanche. Era algo estranho para ele fazer àquela hora, talvez porque geralmente ele estaria trabalhando, talvez porque eles não tinham tomado café da manhã e nenhum dos dois parecia capaz de preparar o almoço.

Os dois calados, de frente um para o outro. Aquela cena fez com que diversas memórias cruzassem a sua mente. A pior delas foi a que perdurou, como se estivesse sendo reproduzida em uma tela por trás de seus olhos.

― Por que nós terminamos? - ele perguntou.

Era essa a cena que tinha ficado presa em sua memória.

― Você só está pensando nisso porque acabou de passar por outro término, que provavelmente deve ser considerado pior que o nosso. - Julia tentou desconversar.

― Por favor, não me analise, eu não sou um dos seus pacientes. - Paulo retrucou.

― Nem poderia ser, nós fomos muito próximos e eu estava envolvida demais para te avaliar de forma clínica. E por que você me perguntou isso? Nós dois sabemos a razão pela qual terminamos.

Outro filme passou pela memória de Paulo. Ele não sabia como conseguia lembrar de tantos detalhes, aquela memória não era sua, ele apenas tinha ouvido as histórias que Julia lhe havia contado.

Ela estava com a mãe de Paulo naquele dia, as duas tinham ido fazer compras em um shopping. Esse fato em si era algo extraordinário, dado que sua mãe era uma sobrevivencialista que vivia no meio do nada. De qualquer maneira, elas tinham ido ao shopping, no momento em que elas estavam saindo, Julia havia deixado a sogra nas escadas da entrada e ido buscar o carro. A culpa não era de nenhuma delas, não tinha porque ninguém achar isso, mas houve uma explosão dentro do shopping.

Essa explosão, que depois foi descoberto ter sido causada por falta de revisões técnicas em uma das lojas, fez com que a mãe de Paulo caísse nas escadas ao mesmo tempo em que centenas de pessoas correram para o lado de fora. Ela acabou sendo pisoteada, Julia correu até onde ela estava depois de sair correndo do carro. Julia acabou muito machucada e teve seu carro roubado.

Depois desse dia ela desenvolveu Síndrome do Estresse Pós-Traumático e se isolou do mundo. Não pelo que tinha acontecido com ela, seus ferimentos foram em sua maioria superficiais, mas por ter assistido a morte de sua sogra, ficando impotente, gritando para as pessoas tomarem cuidado. Sem conseguir se fazer ouvir, ela só conseguiu observar e tentar cobrir o corpo da sogra para protegê-la.

Os meses tinham se passado e Julia não conseguia sair na rua. Paulo se sentia dividido, por um lado ele se sentia culpado por ter que ir trabalhar todos os dias e deixá-la sozinha naquela situação, por outro lado, ele nunca conseguiu entender de fato a razão para Julia ter deixado sua mãe sozinha naquela escadaria.

Ele não a culpava pela morte da mãe, mas nunca disse isso de fato, talvez porque ele sentisse que o sentimento de culpa dela significasse que ela poderia de alguma forma ter impedido aquilo.

Com a passagem do tempo ele se tornou mais distante, mesmo morando na mesma casa eles conversavam pouco, até que chegaram em um ponto em que era impossível manter um relacionamento. Os dois se sentaram um dia e tiveram uma conversa. O resultado dessa conversa foi o término dos dois e o dia em que Julia pegou as chaves do seu apartamento, que estava sendo alugado e fez um acordo com o inquilino para que ele arrumasse outro lugar para morar.

― Eu fui bastante egoísta, não fui? - ele perguntou, com a cabeça baixa.

― Não foi a melhor época para nenhum de nós. Se te faz sentir melhor, acho que nos demos bem depois daquele dia. Pessoalmente, eu quero dizer. Sua carreira decolou e eu comecei a trabalhar mais. Ah, as maravilhas da tecnologia. - ela disse, com um sorriso enquanto levantava sua tigela de cereal, como quem está fazendo um brinde.

Paulo levantou sua tigela e a encostou na de Julia.

Puxa, como eu senti falta disso! Até em momentos teoricamente tristes ela consegue me fazer sentir bem, ou pelo menos me faz rir um pouco. Ela é muito estranha.

Te vejo no fim do mundoOnde histórias criam vida. Descubra agora