Capítulo 65

5 2 0
                                    

A vinda de Julia para o banheiro o pegou de surpresa. Ele não tinha planejado que ela o seguisse, nem mesmo esperava que o fizesse, mas depois de ela ter tomado a iniciativa, os dois aproveitaram o momento no box do banheiro. Um momento que durou quase uma hora e os deixou esgotados. O resto da tarde foi gasto comendo pipoca em frente à televisão. Julia parecia feliz e ele não queria estragar o momento perguntando se eles eram novamente um casal.

Talvez eu só devesse aproveitar enquanto durar. Pode funcionar melhor assim do que criar expectativas...

Paulo queria muito ter essa conversa com alguém, mas Julia não era uma opção e Marco, por mais que pareça um bom ouvinte, não estava disponível, ainda amarrado à mesa do laboratório. Se levantando, foi em direção à porta e dirigiu um olhar para Julia, que o acompanhava sem dizer uma palavra, que deixou claro o que ele tinha em mente.

O caminho já havia sido gravado pelos seus pés e pelos nervos que os controlavam. Às vezes, durante as noites insones, Paulo discutia consigo mesmo por ficar tanto tempo sem ir até a clareira dos pais. Aquele lugar tinha um significado muito especial mesmo antes de o pai morrer.

Todo aquele planejamento, todo aquele treinamento... nada teve uso quando você caiu do telhado, não é mesmo?

Ao pensar nisso, Paulo teve um flashback do seu primeiro dia no sítio, quando ele e Julia estavam arrumando a casa. Ele tinha ficado preso no lugar onde o pai tinha passado seus últimos momentos vivo. Seria poético ter morrido da mesma forma que seu pai, não teria?

Teria sido muito irônico, isso sim! Passar anos estudando para sair daqui de forma permanente, me sentir útil para a sociedade e ter tudo acabado bem aqui.

Ele pensava enquanto andava e no momento em que o último pensamento passava pela sua cabeça, Paulo se sentou próximo ao carvalho que tinha plantado para o pai. Estava de frente para a árvore rodeada de lírios, como se fosse ter uma conversa e a árvore ou as flores fossem responder.

Não sei se eu gostaria que eles me respondessem de verdade. O silêncio como resposta pode ser mais valioso do que o ponto de vista de pessoas tão extremas como meus pais.

O pensamento incomodou Paulo, mas ele preferiu estar em paz com sua mente do que mentir a favor dos pais mesmo depois de sua morte, ainda mais mentir para si mesmo. O extremismo dos pais quando se tratava da vida dele foi evidente desde a mais tenra infância e Paulo foi a muitas consultas com um psicólogo quando passou a morar com a tia para cursar o ensino médio na cidade. Esta tinha sido a primeira decisão que ele impôs aos pais, ele não poderia estudar para sempre em casa, ainda mais se quisesse entrar para a universidade de medicina. O que aconteceu, e que depois deixou os pais muito orgulhosos. Esta tinha sido a melhor sensação do mundo, ver os pais orgulhosos mesmo depois de ter contrariado as ideias que baseavam a forma como tinham decidido viver.

Mesmo depois de tudo o que vocês me fizeram passar, de todas as sessões de treino e todas as informações que foram gravadas a ferro quente no meu subconsciente, a presença de vocês faz falta. Este lugar parece vazio sem vocês. Mesmo que fossem as pessoas mais silenciosas que eu já conheci, nós tínhamos conversas inteiras trocando poucas palavras. Eu sinto falta dessa simplicidade na convivência. Eu sinto que tomei seu lugar, pai, agora sou eu quem digo o que é necessário fazer e quando deve ser feito. Vocês dois já teriam resolvido tudo por aqui, eu acho. Eu imagino que esteja demorando demais para conseguir resolver um problema deste tamanho.

Um vento forte soprou no meio das árvores, revirando as folhas mortas no chão ao redor de Paulo. Olhando para o alto, ele conseguiu ver como o tempo havia mudado rapidamente, o céu tinha sido tomado por nuvens pesadas. Seria a primeira chuva de verdade desde que tinham chegado ao sítio. Alguns dias haviam deixado algumas gotas no terreno, mas nada que chegasse mesmo a hidratar o solo. A seca tem sido longa neste ano. Ele torcia para que a chuva fosse suficiente para ajudar na horta, que já não duraria muito tempo apenas com a irrigação precária do sistema criado pelo pai.

Eu acho que depois que Marco estiver melhor nós vamos voltar para a cidade. Se acontecer como planejado, eu não vou voltar aqui por um bom tempo. Eu amo vocês, mas tenho que continuar com a vida que eu escolhi para mim.

As primeiras gotas começaram a cair, pesadas, atravessando as folhas nas copas das árvores e chegando ao chão. Paulo foi atingido por algumas delas enquanto caminhava de volta para a casa.

Uma vez lá dentro, ele notou que Julia tinha deixado o cachorro subir no sofá e os dois estavam sentados assistindo a algo no notebook de Julia, que estava pousado em seu colo. Ela lhe dirigiu um olhar que questionava sobre sua ida ao bosque. Em vez de responder, Paulo descartou a pergunta não pronunciada com um movimento das mãos. Foi até a cozinha e comeu o resto da pipoca que Julia tinha deixado ao lado da pia.

A conversa que teve no bosque o cansou mais do que todo o tempo antes disso. Quando se dirigiu para a clareira, ele não tinha em mente se despedir dos pais. Não conscientemente, pelo menos. Mas se tivesse forças para pensar um pouco mais, ele poderia relembrar todas as vezes em que tinha pensado sobre vender o sítio.

Com tanto cansaço, ele se dirigiu ao quarto, lembrando apenas de tirar a roupa parcialmente molhada antes de se jogar na cama. Foi a primeira vez em dias que Paulo dormiu instantes depois de se deitar. Também foi a primeira noite em que dormiu sem nenhum problema desde que tinham saído da cidade.

A decisão de parar de viver sob a sombra dos pais já o perseguia a muito tempo, mesmo que ele não quisesse admitir. 

Te vejo no fim do mundoOnde histórias criam vida. Descubra agora