Capítulo 34

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Julia se cansou daquilo mais rápido do que ela esperava. Os dias que ela tinha passado com Paulo e Alice deixariam marcas profundas no seu já marcado subconsciente. Ela costumava jogar a responsabilidade de tudo em cima de si, as palavras de Alice pareciam dar força a essa ideia.

Paulo voltou a tentar se aproximar dela, não que ela desse brechas muito grandes, mas ninguém poderia culpá-lo por tentar. Afinal, agora eram apenas os dois dentro de casa, pensando em como conseguiriam sair da cidade e ir para o sítio onde Paulo foi criado.

Julia se sentia cada vez mais em casa, ela conseguia perceber a diferença que uma presença fazia no ambiente. No caso de Alice, sua presença era negativa, nociva até.

Mas isso não importava mais, Julia tentava se convencer, ela não está mais aqui e não vai voltar. Pelo menos não enquanto nós estivermos aqui.

Naquele dia, o primeiro depois que Paulo tinha expulsado Alice, os dois passaram a maior parte do dia juntos. Não fizeram nada demais, eles se revezaram para escolher filmes, que assistiam em sequência. Paulo cuidou da comida, ela sabia melhor do que Julia como preparar alimentos saudáveis e ao mesmo tempo controlar os recursos, como ele costumava chamar qualquer coisa que podia vir a acabar.

Julia poderia se acostumar com isso, um homem incrível como ele, mesmo não sendo a escolha de Julia para um relacionamento, ou melhor, não mais, saberia cuidar dela melhor que a maioria das pessoas.

Tudo corria bem, até a hora em que os dois se cansaram dos filmes e Paulo foi preparar o jantar. Julia disse que ele deveria apenas esquentar os restos do almoço, o que para ela parecia a coisa mais lógica e que mais pouparia os "recursos".

Paulo se virou para olhá-la nos olhos, sério.

― Eu não pretendia trazer o assunto à tona tão cedo, mas a gente precisa conversar sobre o seu peso.

― Que jeito mais incrível de começar uma conversa. - ela respondeu.

― Isso não é piada, Julia. É um assunto muito sério. Como estão seus exames? - Paulo perguntou.

― Quais exames? Meu psiquiatra não pediu nenhum exame. - Julia respondeu, séria.

― Você quer dizer que não fez nenhum exame médico em mais de um ano? Julia você precisa aprender a cuidar do seu corpo da mesma forma que você cuida das mentes dos seus pacientes. O seu corpo é tão importante quanto sua mente. - ele respondeu.

― Olha só, o problema é que o peso das outras pessoas nunca está bom para a sociedade, ou se é muito gordo ou se é muito magro, e depois querem que todos passem horas dentro de uma academia, cheia de gente suada, apenas pra poder dizer que pessoas em forma são mais saudáveis. - ela respondeu, exasperada.

― Julia, eu não estou dizendo que você deveria ter ido à academia. Para começar, você poderia ter feito atividades físicas no seu apartamento. Além do mais, qualquer peso que você ganhar vai ser importante. - ele disse isso se aproximando e pousando as mãos nos ombros dela. ― Eu consigo ver todos os ossos do seu corpo. Qualquer um pode, sem nem precisar te avaliar.

― E daí, e se o meu problema for falta de apetite, você vai me passar um remédio que me faça ter fome?

― Ora, se for esse o caso, então sim. Eu não estou dizendo que você tem que se acabar em comida, mas tem que comer algo além de frutas e cereais. Além disso, eu sei que o seu problema não é falta de fome. Eu vi o seu apetite nos últimos três ou quatro dias.

Julia ficou um momento em silêncio, repensando sobre o assunto. Realmente seu apetite não havia diminuído, ela simplesmente tinha mudado sua dieta, sem acompanhamento profissional, e havia passado a se alimentar basicamente de frutas. O cereal que Paulo havia comentado era algo excepcional, ela não comprava cereais quando estava em sua casa.

Ela estava mesmo se descuidando, mas apelar para o fato de que seus ossos estavam visíveis?

Pelo menos eles ainda estão dentro da minha pele, que é o lugar deles.

― Toda essa discussão porque eu falei em comer os restos? Você não está errado, mas me parece um pouco exagerado. - ela comentou.

― Você nem viu quanto sobrou do almoço, viu? Não tem nem o suficiente para um de nós, imagine para os dois. Não quero ouvir sua opinião, a minha opinião de profissional é que você deve se alimentar melhor e eu vou cuidar disso a partir de agora. - Paulo disse e se virou para a geladeira, dando a entender que a discussão havia acabado e que nada que Julia dissesse poderia mudar isso.

Ela não tentou estender a conversa, se virou e foi para o banheiro tomar um banho.

Quando voltou para a sala, Paulo a estava esperando para jantar. Ele tinha preparado uma refeição completa, se tivesse colocado tudo em pratos diferentes e feito uma apresentação um pouco mais elaborada, Julia diria que ele poderia começar seu próprio restaurante.

Na situação atual, seria o melhor restaurante da cidade. A maioria dos restaurantes foi destruída mesmo. Igual o resto da cidade.

O jantar foi tranquilo, eles não falaram muito, não havia nada sobre o que falar. Paulo devia estar ocupado demais pensando sobre a viagem que estavam prestes a fazer. Julia preferia pensar que seria de fato em breve, mas nada no comportamento ou nas palavras de Paulo indicava isso. Portanto, só restava torcer e quando finalmente o dia chegar ela obedecerá cegamente a tudo que Paulo disser.

Essa poderia ser a diferença entre a vida e a morte de Julia, que não tinha o menor conhecimento sobre o que fazer em caso de ter que sobreviver em qualquer tipo de desastre, natural ou não. Ter sobrevivido ao terremoto foi pura sorte, ela sabia. E sobreviver ao desabamento da barragem não foi sorte, ela foi salva pela presença e pensamento rápido de Paulo.

É verdade que eu só estava tão perto da barragem porque Paulo resolveu passar por aquele caminho.

Depois do jantar, ela se ofereceu para lavar a louça. Já que Paulo tinha tomado conta da preparação, ela podia dar conta da arrumação.

Ela voltou para o sofá e a televisão depois de acabar com a louça. Paulo estava no quarto, mas não demorou a aparecer na sala.

― Você quer dormir na cama hoje? - ele perguntou.

Julia o encarou, confusa.

― Eu não vou dormir com você.

― Sabe, por mais tentadora que você seja, não era isso que eu tinha em mente. Você tem dormido todas as noites no sofá, sua coluna e seu pescoço devem estar destruídos. Pode ir dormir no quarto hoje, eu durmo aqui. - Paulo respondeu.

― Tem certeza disso? O quarto é seu, eu não quero atrapalhar. - Julia comentou, incerta.

Paulo não disse mais nada, apenas apontou para o corredor. Julia entendeu, não adiantaria discutir. Era como sempre aconteciam as discussões, Paulo pensava em todos ao seu redor, Julia por outro lado focava em não ser um peso para ninguém.

Julia se levantou do sofá, levando consigo o cobertor que estava usando desde o dia em que chegou e foi para o quarto.

Ele estava certo, meu pescoço está um caco.

Te vejo no fim do mundoOnde histórias criam vida. Descubra agora