Capítulo 64

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Julia seguiu os passos de Paulo até o porão. Ela conseguia sentir que estavam cada vez mais próximos de saírem deste isolamento auto imposto. Cada segundo era como se ela estivesse prendendo a respiração, e tudo que podia desejar era o momento em que poderia respirar aliviada mais uma vez.

No laboratório, ela viu que Paulo fechava as gaiolas que tinham ficado abertas quando eles correram atrás do cachorro que corria atrás da raposa que fugiu para o mato, de volta ao seu habitat.

― Julia, arrasta as coisas de cima da bancada por favor. - ele disse, enquanto se abaixava para ancorar o corpo de Marco. ― Não precisa tirar nada daí, nós só precisamos de espaço para colocar ele aí em cima.

Mesmo que eu tirasse todas as coisas daqui de cima, não haveria espaço suficiente para este urso!

Ela fez o seu melhor, colocou todos os vidros, vazios ou não, embaixo da bancada e arrastou os instrumentos para o canto. Depois foi até onde Paulo tentava manter o corpo de Marco em pé, tarefa que o deixava obviamente exaurido. Os dois tentaram carregar o homem semiconsciente para cima da mesa. Por causa de seu tamanho absurdo, os dois falharam miseravelmente. Eles tentaram mais de uma vez levantar os pés daquele gigante do chão para facilitar sua tarefa, todas as vezes sem um resultado expressivo.

― Tudo bem. Coloca suas mãos em cima da mesa. Por favor, segure a cabeça dele, tudo o que nós não precisamos nesse momento é uma concussão ou algo do tipo. - Paulo disse, ofegante depois do esforço.

Julia, que tinha se abaixado para se apoiar nos joelhos e recuperar o fôlego, fez um sinal de positivo com a mão, quase se arrastando até a mesa. Ela fez o que Paulo pediu, se preparando para segurar a cabeça de Marco a qualquer momento. Até que, sem que notasse sua velocidade, a cabeça do homem pousou em suas mãos. Talvez o termo pousou seja um eufemismo, o que a cabeça do gigante adormecido fez foi amassar as mãos da mulher, que então olhou para Paulo como quem perguntava como ele tinha feito aquilo.

Uma pergunta que foi respondida pela postura de Paulo, que estava de pé, na direção de Marco e com uma das pernas ainda no ar.

Ele chutou o corpo de um homem inconsciente? Que merda é essa?

― Pronto! - ele disse, satisfeito com o resultado, colocando os braços para cima, como quem comemora um gol.

Julia esfregou as mãos por vários minutos enquanto Paulo lutava com o peso do homem mais uma vez, agora tentando arrastar o corpo para a frente de forma a posicioná-lo da melhor forma possível em cima da bancada.

― Você está bem? - ele finalmente perguntou, vendo que Julia não tinha falado nada desde que derrubara Marco. ― O que aconteceu com suas mãos.

― Um armário caiu em cima delas. - Julia respondeu, sem paciência.

― Meu Deus, me desculpa, você se machucou?

Sem ter tempo para responder, Julia apenas assistiu enquanto Paulo examinou suas mãos, lavou-as e correu escada acima, voltando em menos de dois minutos com um daqueles sprays para dor, com o qual banhou as mãos dela.

Sem dizer mais nada, Paulo colocou o spray dentro do bolso e voltou sua atenção para o homem imóvel em cima da bancada.

Este sim é o território dele. Agora ele não vai precisar passar nem mesmo um segundo no telefone buscando o que deve ser feito.

Ela estava certa, Paulo fez tudo parecer brincadeira de criança. Talvez de adolescentes, na verdade, uma criança não brincaria de médico com tantos detalhes nem com a mesma eficiência. Ele preparou a mistura que age contra o fungo e a colocou em uma seringa nova (mais um dos objetos que seus pais tinham em estoque, por qualquer que fosse a sua razão para isso).

A visão que tomou conta dos olhos de Julia não era algo para o qual se podia preparar previamente. Para conseguir aplicar o medicamento de forma correta, Paulo cortou as costas do macacão de Marco, exibindo não só as costas mas o traseiro do homem. Ela pode ver que Paulo também não ficou contente com a visão, mas ainda assim continuou o trabalho, limpando o local onde faria a aplicação com um pouco de sabão e álcool. De repente, Paulo, que já estava com a seringa preparada em cima de Marco, se endireitou como se se desse conta de algo muito importante.

Julia pegou a seringa que foi estendida em sua direção e observou Paulo pegar as pontas soltas das cordas que foram usadas para imobilizar o homem. Com muito cuidado, ele amarrou essas pontas, tanto as que prendiam os braços como as que imobilizavam as pernas, nas pernas da bancada onde ele tinha sido colocado. Antes de voltar para o lado de Julia, ele se certificou de que os movimentos de Marco estivessem bem reduzidos. Afinal, um homem daquele tamanho recebendo uma agulhada na coluna, nenhum dos dois queria ser acertado por movimentos causados pela reação de dor.

Depois de pensar um pouco, Julia recuou alguns passos. Precaução nunca é demais.

Enfim, Paulo enfiou a agulha em um dos espaços intervertebrais do pobre infectado. A reação foi menos intensa do que os dois haviam imaginado. Marco rugiu como um animal ferido. Rugiu extremamente alto, seu grito poderia ter sido ouvido pelos vizinhos. Isso, é claro, se eles tivessem vizinhos naquele lugar.

― Agora, a única coisa que podemos fazer é esperar. - Paulo disse, levando Julia para o andar de cima.

Ele está começando a ficar muito à vontade, não é?

Ela pensou enquanto se sentava no sofá e Paulo retirava seu macacão, ficando apenas com a cueca que estava usando por baixo.

É claro que ele está à vontade, essa é a casa dele!

Ele então se sentou ao seu lado e pousou uma das mãos em sua perna, ligando a televisão com o controle. Os dois assistiram a um filme qualquer, Julia estava tensa demais para se ater aos detalhes da história. Ela percebia que era algo cada vez mais comum, ela não conseguia se concentrar quando estava na presença de Paulo.

Pelo menos, ele não tenta forçar uma conversa... não forçou nada, na verdade. Ainda mais depois de eu tê-lo cortado mais cedo quando tentou me beijar no laboratório.

― Quer comer alguma coisa? - ele perguntou, olhando para o relógio em seu pulso. ― Já passou das duas da tarde.

Ela não precisou responder, ele se levantou e foi para a cozinha sozinho.

O tempo passou, Julia na frente da televisão ligada, tentava descobrir o que Paulo preparava no cômodo ao lado. O cheiro estava irreconhecível até o momento em que pôde sentir o cheiro de molho. Depois disso, não demorou muito para que Paulo a chamasse para comer.

Ela tinha acertado, ele tinha preparado macarronada. Uma refeição simples e maravilhosa. Por quê então tinha demorado tanto? Ao olhar na bancada, ao lado da pia Julia viu uma forma, que após alguns instantes, Paulo esclareceu ser uma torta de maçã que ele havia preparado para quando Marco estivesse bem, provavelmente no dia seguinte.

Por um lado, Julia achou o gesto incrivelmente gentil, afinal o homem passou a morar com eles, mesmo que contra sua vontade, e acabou se expondo àquela infecção que o estava corroendo. Por outro lado, Julia queria poder comer aquela torta agora mesmo. Agora que tinha reparado na forma e sua atenção tinha se voltado para ela, o cheiro da torta parecia ter tomado conta de toda a casa. Sua cabeça parecia flutuar naquele aroma.

Se controla, você também vai poder comer dessa torta. Só não é agora.

Depois de comerem, Julia pensou em tomar um banho, mas como se tivesse lido sua mente, Paulo entrou no quarto e voltou alguns segundos depois enrolado em uma toalha.

O que ele tá fazendo? Parece que leu minha mente. Mas não importa, agora que ele está no banheiro eu vou me sentar aqui e assistir alguma coisa na televisão.

Só que não foi o que ela fez. Julia entrou no banheiro alguns momentos depois. Ela viu a água bater na cicatriz no ombro esquerdo causada por uma facada que ela cuidou para não gerar algo mais grave. Desde que aquilo tinha acontecido parecia ter se passado uma vida inteira, mesmo que tivessem se passado apenas cinco meses. Paulo estava debaixo do chuveiro, já todo molhado, mas se virou e abriu um sorriso como se dissesse "estava esperando que você viesse".

― Cala a boca. - foi a única coisa que ela disse antes de tirar a roupa e entrar no chuveiro com ele.

Te vejo no fim do mundoOnde histórias criam vida. Descubra agora