PRÓLOGO

2.3K 159 152
                                    

Cidade da garoa
24 de dezembro, alguns anos atrás

Golpeio, alternadamente, uma, duas, três vezes o saco de areia à minha frente. No quarto golpe me desequilibro. Minhas pernas fraquejam e finalmente aceito ser vencida pelo cansaço das ininterruptas 27 horas acordada, caindo no tatame abaixo de mim.

— UOU — uma voz estridente entra nos meus tímpanos, me despertando do quase transe — pensei que você não fosse parar de socar nosso amigo aí — a guria sentada na outra ponta do salão, bem perto da porta, mexe no celular.

Eu não percebi quando chegou e não faço ideia de quanto tempo está aqui me assistindo esfolar os nós das minhas mãos.

— O quê? — falo tirando um dos fones do ouvido.

— Cara... não quero nem perguntar o que aconteceu com você — não tiro os meus olhos do teto — problemas com o seu velho?

Ela sabe muito bem que sim.

Por qual outro motivo eu estaria aqui, no salão de convivência dos residentes, na noite de natal, se não fosse por alguma briga com o meu pai?

A verdade é que eu só queria fazer algo por mim, ao menos uma vez na vida, eu só queria fazer algo que eu enxergasse sentido. Mas eu não seria filha de quem sou se eu tivesse uma coisa chamada: livre arbítrio.

Encaro a guria de cabelo roxo e penso em desabafar o problema da vez, mas logo desisto.

Não vale a pena.

Nunca vale.

— Vocês — um acadêmico com um pijama como o nosso aponta o dedo para nós duas — a chefe tá chamando todo mundo lá embaixo, e já adianto que a cara dela não tá bonita não — o menino ajustou os óculos e saiu pela mesma porta que encontrou.

Rapidamente, levantei do tatame e comecei a vestir a blusa do pijama cirúrgico azul marinho que estava caída ao lado do saco de areia.

— Vê se melhora essa cara, caralho.

— É a única que eu tenho — respondi, forçando um sorriso.

— Então eu vou te jogar no décimo sexto andar pro Garrido ajeitar essa sua fuça emburrada.

— Perda de tempo.

— Quer apostar?

— E o que eu ganho com isso? — arqueei uma sobrancelha enquanto ela começou a esboçar um sorriso.

— Além de uma harmonização facial? Deixo você escolher o bar que iremos depois desse inferno de plantão.

O sorriso largo e malicioso que joga para mim, me causa o primeiro sorriso sincero desde que cheguei aqui... anteontem? Continuo encarando os fios roxos de seu cabelo, o cabelo da garota que mais me conhece na vida há exatos 21 anos de existência.

Talvez ela me conheça mais que o fodido do meu pai.

Com certeza mais que o fodido do meu pai.

Existem duas verdades que não te contam quando você entra na faculdade de medicina. A primeira: é muito mais comum passar o natal em um plantão do que você imagina. Depois de um certo tempo isso nem te abala mais. 

A segunda: nunca será um plantão comum. Aparentemente, tudo pode mesmo acontecer na noite de natal.

Pessoas vestidas de elfos esfaqueadas: natal do ano passado.

Uma explosão numa boate: natal do ano retrasado, meu primeiro plantão natalino.

Um temporal atípico, dois prédios desabados e um engavetamento na maior avenida da cidade: natal deste ano.

Como eu disse, tudo pode mesmo acontecer na noite de natal.

— Quero os residentes do primeiro ano divididos em todas as entradas e saídas do hospital. Preciso da maior mobilização possível antes que isso aqui vire um show de horrores — o tom autoritário e sério da mulher de pele dourada tomou conta de toda a ala — segundo ano, preciso que fiquem com seus pares, apenas os obedeçam e revezem entre si as tarefas. Não quero ninguém choramingando igual criança e se não estiverem onde estou mandando, nem precisam voltar depois da visita do papai noel — ela virou o corpo mais uma vez, agora olhando para a mesa dos residentes do último ano de cirurgia — doutores, algumas ambulâncias já estão a caminho e preciso que estejam preparados para o que vão encontrar. Quero especialmente que vocês se escutem e ajudem uns aos outros. Preciso que essa noite vocês lembrem o motivo pelo qual escolheram essa profissão, ou deveriam ter escolhido — por fim olha em nossa direção — a hora de desistir é agora.

— Eita que o caldo azedou, a mulher está cuspindo fogo — a guria do meu lado fala.

— E os acadêmicos? A gente faz o quê?

— Não era nem para vocês estarem aqui. Auxiliem as famílias das vítimas.

— Famílias das vítimas, chefe?

— Famílias das vítimas. Isso aqui não é um açougue para vocês escolherem o pedaço de carne que vão cortar. Quero todos os acadêmicos prestando auxílio às famílias das vítimas, teremos muitas pessoas nervosas e com muitas dúvidas. Se quisessem moleza teriam ficado no sofá da sala cafona de vocês, enchendo o rabo de rabanadas e pavê.

Todos saíram de forma ligeira da sala, naquele completo caos formado.

— Herrera — ela apontou para mim — você vem comigo. — Levanto um fone e sigo a mulher de quase 1,80 hospital a dentro.

— Por que não ficou em casa?

— Não tinha nada de bom em casa — respondo de forma séria.

— E achou que teria aqui?

Quero dizer que sim.

Qualquer coisa é melhor que ficar na minha casa ouvindo gente que eu não conheço, forçando uma simpatia que eu não tenho e sendo uma pessoa que eu não sou. E isso é até um senso comum, menos para o digníssimo... senhor eu pai.

Enfim, tem bastante trabalho aqui para eu distrair meus pensamentos nada produtivos. Por mais que eu esteja no 8º período de medicina, eu já sei o suficiente e mais que muito médico recém formado, graças as minhas milhares de horas extras que faço nesse hospital.

— Preciso que você fique na minha sala, eu já volto — disse.

Mas meu corpo foi tomado por uma sensação esquisita de formigamento quando vi uma maca sendo empurrada por dois caras muito altos.

— HERRERA. MINHA. SALA. AGORA — os gritos expelidos de forma pausada não me atingiram.

Não consegui ouvir mais nada. Colei meu corpo na maca que carregava o corpo mobilizado e totalmente tomado por sangue. Não consegui pensar em mais nada.

— HERRERA!

Foi então que o meu coração parou.

ANTES QUE ELA VÁ EMBORA | ROMANCE LÉSBICOOnde histórias criam vida. Descubra agora