CAPÍTULO 34. Scorpions

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ERIS

Fazenda

Sexta-feira à noite, despedida da Misha 

Minha Eris

É só o que consigo escutar o dia inteiro, dentro da minha cabeça, depois que ela disse isso para mim de madrugada, me sustentando em seus braços e me olhando de forma tão... me fazendo completamente dela - e nem estou falando só do apelo sexual presente nessa cena - totalmente dela.

Minha Eris

Eris, com x no lugar do s, porque meu nome na boca dela tem um som diferente, um sabor diferente, uma textura diferente.

Afirmo com toda a tranquilidade do mundo que poderia me acostumar facilmente a ouvi-lo, diariamente, neste mesmo timbre chiado do sotaque dela quando me chama. Queria continuar escutando hoje, amanhã, na próxima semana, no próximo mês... então faço todo o esforço possível para guardar comigo todos esses sons.

Porque, bom, ainda não conseguimos tatuar sons.

Ah, Eris, você está sendo dramática demais... Foda-se, a divagação é minha e eu dou a ela o tom que quiser. Afinal, sou eu quem está encarando a cena à minha frente e não posso dizer uma palavra sobre isso.

Voltando à parte dramática, já que minha terapeuta está de férias e ainda não tenho com quem falar sobre isso:

Posso tatuar muitas coisas e, com isso, burlar o espaço, o tempo, a forma como meu cérebro grava nossas memórias, mas não posso tatuá-la. Eu não posso tatuar sua voz.

Eu não posso tatuar o primeiro grito de felicidade que ela deu quando conseguiu andar sozinha com a CRF e se deu conta de que tinha aprendido a pilotar motos. Eu não posso tatuar o assobio que ela deu ao ver a primeira cerâmica que fez no chão do meu ateliê. Eu não posso tatuar o gemido de prazer que soltou ao experimentar todos os sabores de pastéis disponíveis numa vendinha à beira da estrada, quando estávamos voltando de uma das cachoeiras. Ela decidiu deliberadamente que aquele pastelzinho de queijo com orégano, misturado com doce de leite que compramos ali também, foi a melhor descoberta culinária da vida dela - ou talvez fosse só a fome falando alto.

Também não posso tatuá-la em mim. Não posso prendê-la aqui. Não posso... Isso é tão injusto em tantos níveis. Eu não posso trazer a Misha para minha vida quando ela tem um universo lá fora para descobrir, sentir, tocar, experienciar, cheirar, amar, odiar, voltar... Deus, como eu odeio verbos.

Quando eu digo que deixei de te amar, é porque eu te amo — a voz dela sobressalta minha mente, e eu encaro a dona dos cachos mais lindos que já vi, da pele dourada e bronzeada de sol, das pernas curtinhas e...

Quando eu digo que não quero mais você, é porque eu te quero — outra voz sobressalta e eu encaro a tela ta TV com a letra de Evidências.

Eu tenho medo de te dar meu coração
E confessar que estou em tuas mãos

A melodia ecoa no karaokê, enquanto cada uma segurando um microfone, canta na beira da piscina. Elas recebem assobios e elogios animados, todos focados nelas duas, exceto Gabriel e Ana, que me olham quietos de vez em quando.

E nessa loucura de dizer que não te quero
Vou negando as aparências
Disfarçando as evidências

Vai, confia. Preste atenção numa morena com um cigarro apagado nos lábios enquanto canta uma música antiga perdida numa calçada. Empreste um isqueiro a ela e depois aceite dividir uma promoção de chope duplo que sua melhor amiga, bêbada, inventou e ainda intitulou de "goze em dobro". Que mal haveria nisso?

ANTES QUE ELA VÁ EMBORA | ROMANCE LÉSBICOOnde histórias criam vida. Descubra agora