Você me desnuda por inteira.

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Carina inspirou o ar com força e Maya se interrompeu. Todas as vezes que ela perguntara sobre Margot, ela tinha desconversado. Havia tentado fazê-la acreditar que Margot não era uma ameaça, mas Carina se recusara a aceitar isso. 

É claro que Margot ameaçava a intimidade cada vez maior entre elas. Aquela mulher a havia feito sair correndo no meio de um jantar, em outubro. E, antes de fugir, Maya tinha parado diante dela, transtornada, e citado Lady Macbeth. A expectativa fez Carina estremecer de leve. 

– Margot era uma aluna da graduação. Era atraente, alta e majestosa com seus cabelos pretos. Ficamos amigas e costumávamos passar o tempo juntas de vez em quando, mas nossa relação nunca foi física. Eu estava saindo com outras garotas e ela sofria por outra pessoa... – Ela pigarreou, nervosa. – Eu me formei e fui para Harvard. Mantivemos contato por e-mail durante um ou dois anos, de forma muito casual, e então ela me disse que tinha sido aprovada para o mestrado em Harvard. Estava estudando para se tornar uma especialista em Dostoiévski. Precisava de ajuda para encontrar um lugar onde morar, então falei sobre uma vaga no meu prédio. Ela se mudou em agosto daquele ano. 

Maya olhou para Carina, estudando seu rosto. Ela assentiu, tentando ocultar seu temor.
 
– O ano em que ela chegou foi o mais difícil da minha vida. Eu estava trabalhando na minha tese e ainda era assistente de pesquisa de um professor muito exigente. Ficava acordada até altas horas escrevendo e dormia muito pouco. Foi quando comecei a usar cocaína. – Ela baixou o olhar e começou a remexer as mãos, tamborilando com os dedos na mesa. – Eu costumava sair para beber com o pessoal do doutorado nos fins de semana. De vez em quando nos envolvíamos em brigas. – Ela riu. – Eu nem sempre era um exemplo de bom comportamento, e às vezes saíamos só para arranjar confusão. Mas pelo menos serviu para alguma coisa, como Owen pode testemunhar. 

Ela se inclinou para a frente na cadeira, descansando os braços sobre os joelhos. Carina ficou observando suas pernas balançarem de nervosismo. A cada frase Maya ficava mais agitada, o que indicava que ela estava se aproximando da beira do abismo em que havia escondido seu segredo. 

– Certa noite, alguém apareceu com um pouco de cocaína. Achei que talvez fosse me ajudar a ficar acordada para trabalhar. Foi assim que comecei. Eu a usava como estimulante e alternava com álcool. Achava que, como estava em Harvard, eu era uma usuária respeitável de drogas recreativas. Achava que estava no controle. – Ela suspirou com força e baixou o tom de voz: – Ledo engano. Margot estava sempre por perto. Ela batia à minha porta a qualquer hora, porque eu estava sempre acordada. Enquanto eu escrevia, ela ficava sentada no meu sofá, lendo ou preparando chás russos. Começou a cozinhar para mim. Quando estava usando cocaína, eu não comia muito. Só ingeria algo de nutritivo por causa dela

Então o tom de voz de Maya ficou mais sombrio, como se a culpa que havia dentro dela cravasse as unhas em suas entranhas, tentando se libertar. Vendo a pergunta nos olhos de Carina, ela contraiu o maxilar. 

– Ela sabia sobre a cocaína. A princípio, tentei esconder, mas ela estava sempre do meu lado. Por fim, desisti e comecei a cheirar na frente dela. Margot não se importava. – Ela passou a evitar o olhar de Carina. Parecia envergonhada. – Margot era superprotegida. Era totalmente inocente quanto a drogas e a muitas outras coisas. Eu fui uma má influência. Certa noite, ela tirou as roupas e sugeriu que cheirássemos carreiras no corpo uma da outra. Eu não estava com a cabeça no lugar, é claro, e ela estava nua... 

Bishop expirou devagar e balançou a cabeça, mantendo os olhos em suas mãos agitadas.
 
– Não vou inventar desculpas. A culpa foi minha. Ela era uma boa menina, acostumada a conseguir o que queria. E ela queria a mim, a viciada do andar de baixo. – Maya esfregou o queixo com as costas da mão. Ela se remexeu na cadeira. – Na manhã seguinte, disse a ela que tinha cometido um erro. Não estava interessada em monogamia. A cocaína me fazia querer sexo, embora com o passar do tempo tenha prejudicado minha capacidade de alcançar a satisfação. Carma, imagino. Eu estava acostumada a ter mulheres diferentes todo fim de semana. Mas, quando lhe contei tudo isso, ela disse que não se importava. Eu podia dizer ou fazer qualquer coisa, podia tratá-la da pior forma possível, mas Margot sempre voltava. Então ficamos assim. Ela agia como se fosse minha namorada e eu agia como se ela fosse alguém que eu podia levar para a cama quando quisesse. Não me importava com ela, só comigo mesma, com as drogas e com minha maldita tese. 

Carina sentiu seu coração se encolher no peito. Ela sabia que Maya nunca tinha desejado uma companheira. Ela era uma mulher extremamente bonita e sensual. As mulheres se estapeavam para chamar sua atenção. Carina não gostava do passado dela, mas a aceitava e dizia a si mesma que não tinha importância. 

Mas Margot era diferente. Carina sabia disso por instinto, desde a primeira vez em que ouvira o seu nome. Por mais que acreditasse que Maya não estivesse mais envolvida com ela, o que ela estava começando a descrever era muito mais sério do que uma noite de sexo casual. O espectro verde da inveja se enroscou em seu coração, apertando-o. Maya se levantou e começou a andar de um lado para outro. 

– Tudo desmoronou quando ela me disse que estava grávida. Eu a acusei de tentar me dar um golpe e falei para ela se livrar do bebê. – O rosto dela se contorceu de emoção e ela pareceu angustiada. – Ela chorou. Ajoelhou-se e disse que era apaixonada por mim desde Oxford e que queria ter um filho comigo. Eu não quis ouvir. Em vez disso, lhe dei dinheiro para fazer um aborto e a expulsei do meu apartamento como se ela fosse um saco de lixo. 

– Mas como Margot engravidou de você, Maya? 

– Um dia Margot me disse que queria ter filhos, mas queria filhos parecidos comigo. Eu estava tão chapada que concordei em doar meus óvulos para ela fazer o procedimento de fertilização. Um tempo depois ela me disse que estava grávida e que seríamos mães. Mas eu não queria um filho, não queria ser mãe e a mandei embora.

Maya gemeu, um lamento atormentado que pareceu vir das profundezas da sua alma. Ela esfregou os olhos com os dedos. Carina levou sua mão trêmula à boca. Não esperava nada parecido. Mas, à medida que sua mente trabalhava num ritmo frenético, várias peças do quebra-cabeça que era a professora Bishop começavam a se juntar. 
– Depois disso, fiquei um bom tempo sem vê-la. Supus que tivesse feito o aborto. Nem me dei o trabalho de descobrir, para você ter uma ideia da imbecil que eu era. Alguns meses depois, entrei na cozinha pela manhã e encontrei uma impressão de um ultrassom na minha geladeira. Com um bilhete. – Ela se recostou, afundando-se na poltrona, e enterrou a cabeça nas mãos. – Ela escreveu: Esta é a sua filha, Luz. Ela não é linda? – As palavras de Maya foram estranguladas por um soluço que lhe escapou do peito. – Eu conseguia ver os contornos da cabecinha e do nariz dela, seus braços e pernas minúsculos. As mãos e os pés pequeninos. Ela era linda. Um bebê lindo e frágil. Minha garotinha. Luz. – Ela engoliu outro soluço. – Eu não sabia. Não era real. Ela não era real até eu ver sua imagem e... – Maya estava chorando. 

Carina viu as lágrimas escorrerem pelo rosto dela e sentiu um aperto no peito. Com seus próprios olhos se enchendo de lágrimas, ela fez menção de se aproximar de Maya, mas ela ergueu a mão para impedi-la. 

– Eu disse a Margot que ajudaria a criar o bebê. Naturalmente, eu estava quebrada. Havia gastado todo o meu dinheiro com drogas e já devia para o meu fornecedor. Margot sabia disso, mas, de alguma forma, ainda me queria. Nós voltamos e ela ficava lendo no meu sofá enquanto eu escrevia a tese. Ela largou as drogas e tentou tomar conta se si mesma e do bebê. Eu tentei parar, mas não consegui. – Ela ergueu a cabeça para encarar Carina. – Quer ouvir o resto? Ou já está pronta para ir embora? 

Carina não hesitou. Ela andou até Maya e passou os braços em volta dos seus ombros. 

– É claro que quero ouvir o resto. 

Maya a abraçou forte, mas apenas por alguns instantes antes de afastá-la e enxugar o rosto com as costas da mão. Deluca ficou parada do seu lado, um pouco constrangida, ouvindo-a continuar sua confissão. 

– Os pais de Margot moravam na França. Não eram ricos, mas mandavam dinheiro para ela. Katherine também costumava me mandar dinheiro sempre que eu telefonava. Não sei como, mas conseguimos segurar as pontas. Ou, pelo menos, adiar o inevitável. Mas eu gastava a maior parte do dinheiro com drogas. – Ela deu uma risada macabra. – Que tipo de pessoa tira dinheiro de uma mulher grávida para torrar em cocaína? – Maya se apressou em prosseguir: – Uma noite, em setembro, tomei um porre. Fiquei uns dois dias fora e, quando finalmente voltei para casa, desmaiei no sofá. Nem consegui chegar ao banheiro. Acordei de ressaca na manhã seguinte. Desci cambaleando o corredor e vi sangue no chão. 

Maya cobriu os olhos com as palmas das mãos, como se tentasse apagar o que via. Carina prendeu a respiração, esperando sua próxima revelação. 

– Segui o rastro de sangue e encontrei Margot caída numa poça vermelha no banheiro. Tentei tomar o pulso dela, mas não consegui. Achei que ela estivesse morta. – Ela ficou calada por alguns instantes. – Se tivesse ido ver como ela estava quando cheguei, poderia ter chamado uma ambulância. Mas não fiz isso. Estava chapada e apaguei, sem me importar com mais ninguém além de mim mesma. Quando eles me disseram que ela havia perdido o bebê, não tive dúvidas de que a culpa era minha. Aquilo podia perfeitamente ter sido evitado. Era como se eu a tivesse matado com minhas próprias mãos. – Ela ergueu as mãos diante do rosto e as virou devagar, como se as estivesse vendo pela primeira vez. – Sou uma assassina, Carina. Uma viciada assassina. 

Carina abriu a boca para contradizê-la, mas ela se apressou em interrompê-la: 

– Margot passou semanas no hospital, primeiro com problemas físicos, depois com depressão. Tive que pedir uma licença de Harvard porque estava drogada e bêbado demais. Devia milhares de dólares para algumas pessoas perigosas e não tinha como arranjar o dinheiro. Margot tentou se matar no hospital, então eu quis interná-la numa clínica psiquiátrica particular, onde ela seria bem tratada. Quando telefonei para os pais dela implorando ajuda, eles me disseram que eu era uma desgraça. Que só nos ajudariam se eu me casasse com ela. – Ela fez uma pausa. – Eu teria feito isso. Mas Margot estava instável demais para eu tocar no assunto. Então decidi cumprir minhas obrigações para com ela e depois me matar. Isso daria fim aos nossos problemas. – Maya levantou a cabeça para encará-la, seus olhos frios e sem vida. – Agora você entende, Carina? Sou uma dos "condenados". Minha indiferença perversa causou a morte de uma criança e destruiu de forma irreversível o futuro promissor de uma jovem mulher. Teria sido melhor se tivessem amarrado uma pedra ao meu pescoço e me atirado no mar. 

– Foi um acidente – disse Carina baixinho. – A culpa não foi sua. – Maya riu com amargura. 

– Não foi minha? Não fui eu que concordei com a gravidez, mesmo que não quisesse ser mãe? Não fui eu que a tratei como uma puta, fiz com que ela se viciasse em drogas e a pressionei a abortar? Não fui eu que cheguei chapada em casa e nem me importei em ver se ela estava no meu apartamento? – Carina pegou as mãos dela e as apertou com força. 

– Maya, preste atenção. Você contribuiu para a situação, sim, mas foi um acidente. Se ela sangrou tanto, é porque havia algo de errado com o bebê. Se você não tivesse chamado a ambulância, Margot poderia ter morrido. Você salvou a vida dela. – Maya não ergueu os olhos, mas ela moveu sua mão até o queixo dela e a obrigou a encará-la. – Você a salvou. Você mesma disse que queria o bebê. Não queria que a criança morresse. – Maya se encolheu diante do toque de Carina, mas ela se recusou a soltá-la. – Você não é uma assassina. Foi só um trágico acidente. 

– Você não entende. – A voz dela era fria, sem vida. – Sou exatamente igual a ele. Ele usou você e eu usei Margot. Fiz mais do que usá-la. Tratei-a como se ela fosse um brinquedo e lhe dei drogas, quando deveria tê-la protegido. Que tipo de demônio eu sou?

– Você não é nem um pouco parecida com ele – sibilou Carina, subjugada por suas próprias emoções. – Ele não sente o menor remorso pelo que fez comigo e, se tivesse uma chance, faria tudo de novo. Ou pior. – Cari respirou fundo e prendeu o ar. – Maya, você cometeu erros. Fez coisas terríveis. Mas se arrepende delas. Há anos que vem tentando compensar seus erros. Isso não conta para nada?

– Todo o dinheiro do mundo não vale o preço de uma vida. 

– Uma vida que você não tirou – retrucou Carina, seus olhos faiscando. 
Bishop escondeu o rosto nas mãos. Não esperava que a conversa fosse tomar esse rumo. Por que ela ainda está aqui? Por que ainda não me abandonou? Pensou Maya. Cos recuou um passo e a observou por alguns instantes. Conseguia sentir o desespero que vinha de dentro de Maya como uma onda enquanto tentava encontrar, freneticamente, um jeito de chegar até ela. 

– Você conhece Os miseráveis, de Victor Hugo? 

– É claro – Bishop balbuciou . – O que isso tem a ver com o assunto? 

– O herói se liberta do pecado e faz uma penitência, cuidando de uma garotinha como se ela fosse sua própria filha. Mas, ao mesmo tempo, é caçado por um policial, que está convencido de que ele não se regenerou. Você preferiria ser o homem que faz a penitência ou o policial? – Maya não respondeu. – Acha que deve sofrer por seu pecado para sempre? – Nenhuma resposta. – Porque parece que é isso que está dizendo. Não quer se permitir ser feliz. Não quer se permitir ter filhos. Você acha que perdeu sua alma. Mas e quanto à redenção, Maya? E quanto ao perdão?
 
– Não mereço nada disso. 

– Que pecador merece? – Ela balançou a cabeça. – Quando lhe contei o que aconteceu com ele, você me disse que eu deveria me perdoar e me permitir ser feliz. Por que não consegue fazer o mesmo? – Ela baixou os olhos para o chão. 

– Porque você era a vítima. Eu sou a assassina. 

– Digamos que isso seja verdade. Qual seria a penitência adequada, Maya? Como seria feita a justiça? 

– Olho por olho – murmurou. 

– Muito bem. Olho por olho significa que, já que você é responsável pela morte de uma criança, precisaria salvar a vida de outra. Para que a justiça seja feita, você precisa compensar esse mal com uma vida. Não com dinheiro ou presentes, mas com uma vida. – Maya ficou imóvel, mas Carina sabia que ela estava ouvindo. – Você salvou a vida de Margot, mas sei que em sua opinião isso não conta. Então precisa salvar a vida do filho de outra pessoa. Não estaria pagando pelo seu pecado dessa forma? Ou pelo menos oferecendo algum tipo de reparação? 

– Isso não traria Luz de volta. Mas já seria alguma coisa. Talvez me tornasse menos...mau. – Maya encurvou os ombros e baixou a cabeça. A dor em sua voz quase partiu o coração de Carina, mas ela prosseguiu bravamente.

– Você precisaria encontrar uma criança em perigo ou à beira da morte e salvá-la. Essa seria a sua redenção. – Ela assentiu com desânimo, abafando um gemido. Carina se ajoelhou e tomou as mãos dela nas suas. – Será que não entende, Maya? Eu sou essa criança. 

Maya levantou a cabeça e a encarou como se Carina estivesse louca, seus olhos marejados fitando os dela. 

– Owen poderia ter me matado. Ele ficou tão furioso quando lhe dei um tapa que arrombaria a porta do meu quarto e me mataria. Mesmo se eu tivesse ligado para a Emergência, eles nunca teriam chegado a tempo. Mas você me salvou. Arrancou Owen da frente da minha porta. Impediu que ele voltasse a entrar na casa. Se estou viva agora, é apenas por sua causa. Eu sou a garotinha de Vincenzo e você salvou minha vida. – Maya permaneceu imóvel, totalmente sem palavras. – Uma vida por uma vida, foi o que você disse. Você acha que ceifou uma vida, mas agora salvou outra. Precisa se perdoar. Pode pedir perdão a Margot, pode pedir perdão a Deus, mas precisa se perdoar. 

– Não é suficiente – ela sussurrou, seus olhos grandes e tristes ainda molhados de lágrimas. 

– Nada vai trazer sua filha de volta, é verdade. Mas pense no presente que deu a Vincenzo: sua única filha. Transforme a nossa dívida em penitência. Você não é um demônio, é um anjo. O meu anjo. 

Maya olhou para Carina em silêncio, tentando decifrar seus olhos, seus lábios, sua expressão. Quando terminou, estendeu a mão e a puxou para seus braços, acomodando-a em seu colo. Ela a abraçou pelo que pareceu uma eternidade, enquanto suas lágrimas escorriam pelo ombro dela. 

– Sinto muito – sussurrou Bishop. – Sinto muito por ter esperado tanto para lhe contar isso. Sinto muito que minha história seja verdade. Eu destruí sua fé em mim. Sei disso. 

– Ainda amo você. 

Deluca tentou consolá-la murmurando em seu ouvido, deixando-a extravasar seu sofrimento através das lágrimas. E, quando elas finalmente secaram, Carina tocou os botões da camisa branca dela e começou a abri-la depressa, antes que ela pudesse perguntar o que ela estava fazendo. Tirou a camisa dela, revelando seu sutiã branco, e correu os dedos em volta da tatuagem. 

Então, muito devagar, Carina baixou os lábios até o coração sangrento e a beijou. Quando recuou de volta, Maya a encarava em muda admiração. Ela tirou seu lenço e ergueu a mão dela com cuidado, para que tocasse a marca de mordida em seu pescoço, que já estava um pouco mais fraca, mas continuava ali. Maya se encolheu e fechou os olhos. 

– Nós duas temos cicatrizes. E talvez você tenha razão, elas não vão desaparecer. Mas eu sou a sua redenção, Maya. Minha vida é o seu presente para um pai que poderia ter perdido sua filha para sempre. Obrigada. 

– Sou uma hipócrita. – A voz dela estava rouca. – Falei a Vincenzo que ele era um pai terrível. Que tipo de mãe eu fui?

– Uma mãe jovem. Inexperiente. Deveria ter ficado longe das drogas. Mas queria Luz. Você mesma disso isso. – Ela estremeceu quando elas se abraçaram apertado. – Nada que eu diga irá trazê-la de volta. Mas, se servir de consolo, acredito que sua garotinha está cantando junto com os abençoados no Paraíso. Com Katherine. – Carina enxugou as lágrimas dela. – Tenho certeza de que Katherine e Luz gostariam que você encontrasse o amor e o perdão. Que elas rezariam pela sua redenção. Jamais pensariam que você é má.

– Como pode ter certeza disso? 

– Aprendi com você. O canto 32 do Paraíso de Dante descreve o lugar especial que Deus reservou para as crianças. Pois é delas o Reino dos céus. E, no Paraíso, existe apenas amor e perdão. Não há ódio ou maldade. Somente paz.

Maya a puxou para si e elas se abraçaram com força. Carina jamais poderia ter imaginado o segredo de Maya. E, embora estivesse alarmada com a maneira como o temperamento melancólico dela havia moldado seu sofrimento, não podia negar que esse sofrimento era real. Não foi ela que havia amado uma criança e depois a virá morrer. 

Portanto, foi tomada pela compaixão e pelo desejo de ajudá-la a reconhecer seu próprio valor e aceitar que podia ser amada, apesar dos pecados que cometera. Sentada em seu colo, com as lágrimas dela ainda molhando sua blusa, a imagem do que Maya Bishop era ficou clara como a água para Carina. Em muitos sentidos, ela não passava de uma garotinha assustada, com medo de que ninguém perdoasse seus erros. Ou a amasse apesar deles. Mas ela a amaria. 

– Maya, não é possível que você esteja confortável nesta poltrona. – Ela assentiu. – Venha. – Carina se levantou e pegou sua mão, colocando-a de pé. 

Conduziu-a até o sofá e a incentivou a sentar enquanto acendia a lareira. Maya tirou os sapatos e Carina fez com que ela se esticasse no sofá e pousasse a cabeça em seu colo. Cos traçou as sobrancelhas dela com os dedos e começou a corrê-los por seus cabelos desgrenhados. Maya fechou os olhos. 

– Onde está Margot agora? 

– Em Boston. Quando recebi minha herança, criei um fundo fiduciário para ela e lhe comprei um apartamento. Ela já entrou e saiu da reabilitação algumas vezes. Mas está sendo bem cuidada e voltou para Harvard em regime de meio-período um ou dois anos atrás.

– O que houve na noite em que ela telefonou durante o nosso jantar? – Maya lançou um olhar intrigado para ela antes de a compreensão iluminar seu rosto. 

– Tinha me esquecido de que você ouviu aquele telefonema. Ela tinha bebido e se envolveu num acidente de carro. Estava tão histérica ao telefone que pensei que teria que pegar um avião para lá. Ela só me liga quando está em apuros. Ou quando quer alguma coisa. 

– Então o que aconteceu? 

– Voltei correndo para o meu apartamento, mas, antes de sair para o aeroporto, liguei para o meu advogado em Boston. Ele a encontrou no hospital e me assegurou de que ela não estava tão gravemente ferida quanto me fizera pensar. Mas foi processada uns dois dias depois. Não tive escolha senão contratar alguém para defendê-la. Ela anda bem-comportada ultimamente, mas de vez em quando acontece uma coisa dessas.

Talvez fosse o brilho crepitante do fogo. Ou talvez o estresse de ter revelado seu segredo mais obscuro. Mas, naquele instante, Maya pareceu incrivelmente velha e cansada para os seus 30 e poucos anos. 

– Você a ama? – Maya balançou a cabeça. 

– Não acho que meus sentimentos por ela possam ser chamados de amor, embora sinta algo por ela, sim. Nunca me acostumei com ela, para minha grande vergonha. Mas não poderia abandoná-la. Não com a família dela tão longe e se recusando a ajudar. Eu fui a causa dos seus problemas e o motivo pelo qual ela provavelmente jamais terá outro filho. – A voz de Maya oscilou e ela estremeceu. 

– É por isso que decidiu não ter filhos. 

– Olho por olho, lembra? Quando ela chorou nos meus braços e me contou o que havia acontecido, tomei a decisão. Foi difícil convencer um médico a fazer a operação. Todos diziam que eu era jovem demais e mudaria de ideia. Mas, por fim, encontrei um que concordou. Estranhamente, eu me senti aliviada na época. – Ela estendeu a mão para acariciar a curva da face de Carina. – Contei a ela sobre você. Margot sempre foi ciumenta, mas sabe que não posso lhe dar o que ela quer. Nosso relacionamento é... complicado. Ela sempre fará parte da minha vida, Carina. Preciso que entenda isso. Isto é, se você ainda... – Deluca colou seus lábios aos dela. 

– É claro que ainda amo você. Você dá apoio a Margot e a ajuda quando ela precisa. É a coisa mais decente a fazer.

– Acredite, Carina, sou tudo, menos decente. 

– Você se importaria... de me contar sobre a sua tatuagem? 

Ela se sentou para tirar a camisa, que largou sem cerimônia sobre o tapete persa. Então se reclinou no colo de Carina e fitou seus olhos, que irradiavam aceitação e zelo. 

– Eu a fiz em Boston logo que saí da clínica de reabilitação. 

Carina tornou a beijar o coração muito, muito de leve. Ela respirou fundo ao sentir sua boca contra a pele nua. Cari moveu as mãos para acariciar seus cabelos, na esperança de que isso fosse consolá-la. 

– O que o coração representa?

– O coração partido sou eu, e os espinhos são as drogas e todo mal que acusei a quem me amava, os ferindo sem piedade. Luz sempre estará dentro dele. Você deve pensar que é horrível ter algo tão mórbido e feio no meu corpo. Para sempre.

– Não, Maya, não acho nada disso. É como... um memorial. 

– Margot estava grávida de uns cinco meses quando perdeu o bebê. Ela não estava com a cabeça no lugar, e nem eu, então não fizemos um funeral. Alguns anos atrás, mandei colocarem uma lápide para Luz em Boston. – Ela pegou a mão de Carina e beijou sua palma. – Ela não está enterrada lá – disse com uma voz angustiada. 

– Sua garotinha não estaria lá de qualquer forma, Maya. Ela está com Katherine agora. – Ela fez uma pausa e encarou Carina, seus olhos tornando a se encher de lágrimas. 

– Obrigada por dizer isso – sussurrou, pressionando os lábios nos dela outra vez. – Há dois anjos de pedra na lápide, um de cada lado. Queria que fosse bonito.

– Tenho certeza de que é lindo. 

– Você já recebeu parte do memorial dela. – Carina a encarou com uma expressão intrigada. – A sua bolsa. Eu a batizei em homenagem a ela: Luz Margot Bishop. – Carina enxugou uma lágrima que lhe escapou de repente. 

– Me perdoe por ter tentado devolvê-la. Eu não sabia. – Maya se ergueu para beijar seu nariz. 

– Sei que não, meu amor. Na época, não estava preparada para explicar como a bolsa era importante para mim. Só queria que você a recebesse. Ninguém mais era digno dela. – Ela tornou a beijá-la com carinho. 

– Devo confessar que perguntei a Melissa sobre essa história. Ela não fazia ideia do que se tratava. 

– A única pessoa que sabe sobre Luz e Margot é Lane. Katherine também sabia. A situação toda me causava muita vergonha. Eles acharam que já era suficiente que Mason e Melissa soubessem das drogas. Mas ninguém sabe sobre a tatuagem. Só você. – Ela emaranhou os dedos nos seus cabelos, instando-a a encontrar a paz. 

– O seu Puccini me assustou – sussurrou ela. 

– Me pareceu... apropriado. – Ela balançou a cabeça. – Foi como tratei Margot. Ela me amou por anos a fio e não fui capaz de retribuir. – Ela encolheu os ombros, desconfortável, e fitou Carina com intensidade. – Eu jamais trataria você como uma borboleta, como algo que eu tivesse capturado por diversão. Jamais a prenderia em uma folha de papel e arrancaria suas asas. – Ela balançou a cabeça, uma expressão de angústia atravessando seu rosto bonito. 

– Maya, por favor. Eu confio em você. Você não é o Pinkerton de Puccini. Eu sei disso.
 
Como prova de sua afirmação, ela a beijou, movendo sua boca em sintonia com a dela até precisar recuar para recuperar o fôlego.
– Não mereço você – sussurrou Bishop. 

– Talvez nós não mereçamos uma à outra, mas posso escolher quem amo. E escolho você. – Maya franziu o cenho como se não acreditasse nela. – Por favor, deixe-me amar você. – A voz dela falhou nas duas últimas palavras e uma lágrima desgarrada escorreu por seu rosto. 

– Como se pudesse sequer cogitar viver sem você. – Ela a puxou para si, a paixão desesperada de sua alma torturada unindo as duas. 

Carina a acompanhou movimento a movimento, tomando e recebendo tudo ao mesmo tempo enquanto se inclinava sobre a bela mulher que descansava a cabeça cansada em seu colo. A boca dela encontrou seus pulsos e deu beijos molhados neles, sugando com carinho a parte delicada em que as veias pálidas eram cobertas por uma pele fina como papel de arroz. 

– Me perdoe, Carina, mas preciso de você. Minha doce, doce amada. Preciso muito de você. – Os olhos dela eram duas chamas e sua voz estava áspera. 

Antes que Carina percebesse o que estava acontecendo, Maya mudou de posição para se sentar no sofá e Carina estava montada sobre ela. Seus troncos estavam colados, as mãos dela veneravam a leve inclinação da base das suas costas e a curva das suas nádegas por cima da calça de lã. Carina buscou no fundo de sua mente uma das fotografias em preto e branco do quarto de Maya. 

E, naquele instante, reconheceu através dos seus próprios olhos a beleza e a paixão que havia nela. Pôde ver todo o desejo, a necessidade, o desespero e o amor incondicional e profundo que tinham sido libertados pela revelação dos segredos mais sombrios. Maya sentiu o amor que havia no beijo dela, no seu abraço, na maneira como os seus dedos roçavam sua nuca e a superfície da sua tatuagem, traçando os contornos do seu peito como se o cobrissem de beijos. Ela lhe daria tudo. Faria qualquer coisa para afastar sua dor, incluindo oferecer a si mesma. 

Com os dedos trêmulos, Deluca abriu os botões da sua blusa e a tirou de sobre os ombros. Um leve arquejo escapou da boca de Maya, ecoando o som da seda que caía lentamente no chão. Ela era sua redenção. 



Carina acordou totalmente nua na manhã seguinte. 

Ao menos foi o que achou. As duas estavam entrelaçadas na cama de Maya. A cabeça de Carina descansava no ombro dela, que tinha o braço esquerdo estendido sobre o quadril direito dela, suas pernas encaixadas como duas tesouras e seus quadris colados uma na outra. 

Ela moveu uma das mãos pelas costas de Maya até encontrar o algodão macio que cobria suas lindas curvas, que Carina explorou sorrateiramente. Então olhou para o espaço entre as duas e notou que estava usando seu sutiã e sua calcinha cor-de-rosa. 

Em seu sonho, elas haviam se jogado nuas na cama e feito amor por horas e horas. Maya tinha colocado seu corpo sobre o dela e prendera seu olhar como um ímã enquanto a penetrava devagar com seus dedos ágios, até elas se fundirem. 

Um círculo eterno, sem começo e sem fim. Ela a havia venerado com seu corpo e suas palavras, e foi mais emocionante e encantador do que ela jamais ousaria imaginar. Mas foi apenas um sonho. 

Carina suspirou e fechou os olhos à medida que os acontecimentos da noite anterior lhe voltavam à mente. 

Tristeza e alívio se misturaram, espalhando-se por seu coração. Tristeza pela perda e pelo desespero de Maya; alívio pelo fato de todos os segredos das duas enfim terem sido revelados. 

Maya murmurou seu nome, os olhos dela se movendo debaixo das pálpebras em um sono profundo. A noite anterior a deixara esgotada, em cacos. Carina beijou seu rosto e se desvencilhou com cuidado dos seus braços, caminhando nas pontas dos pés até o banheiro. 

Quando se olhou no espelho, viu cabelos rebeldes e desgrenhados, maquiagem borrada em volta dos olhos e lábios inchados de tanto beijar. Vários chupões, de cores suaves e indolores, salpicavam-lhe o pescoço e o peito. Maya tinha sido uma amante gentil, porém ardente. Ela lavou o rosto e penteou os cabelos, prendendo-os num rabo de cavalo alto e trocando com ousadia seu roupão roxo por uma camisa de botão de Maya. 

Em seguida, foi até o corredor pegar o jornal e acenou um bom-dia tímido para o vizinho de Bishop, que parecia nervoso, mas não exatamente infeliz. O vizinho olhou através dos óculos sem armação para as pernas bem torneadas dela antes de recuar para seu apartamento como um rato assustado. 

Não estava acostumado a ver tamanha beleza tão cedo pela manhã, isso sem falar que estava vestindo apenas uma calça de pijama do Super-Homem, de origem duvidosa. 

Quando Carina entrou na cozinha, deparou com a bagunça que não haviam arrumado depois do jantar, suas mãos e mentes ocupadas demais para se lembrar de questões tão triviais. 

Depois de comer uma fatia de torta de maçã com queijo cheddar de Vermont, Carina se ocupou em deixar o apartamento de Maya impecável como antes. Demorou mais do que tinha previsto. Quando a cozinha estava um brinco, como Maya ainda não havia levantado da cama, ela se serviu de uma caneca grande de café e sentou-se com o jornal em sua poltrona favorita diante da lareira. 

A visão da camisa social dela e da sua blusa de seda caídas uma sobre a outra no chão fez suas faces corarem e levou um sorriso aos seus lábios. E isso, infelizmente, é mais do que teríamos logrado. Maya a havia impedido. 

Carina teria se entregado a ela alegremente, pois a amava. Para Carina, a questão não era se faria amor com ela, mas quando. Mas Maya tinha murmurado algo em seu peito nu e a fizera parar. Ela havia sentido muito medo de que Deluca a abandonasse ao descobrir sobre seu relacionamento com Margot e a trágica morte de sua filha. Mas, pelo contrário, a confissão dela as aproximou mais ainda. 

Pelo menos Carina conseguira deixar isso claro. E, em três dias, talvez, estarão tão juntas quanto um casal pode estar. Em dois dias, partiriam para a Itália e ela acompanharia Maya a sua palestra como sua namorada. 

E, quando a temporada delas em Florença chegasse ao fim, talvez viajassem para Veneza ou para a Úmbria como amantes. Apesar de tudo pelo que ela e Maya haviam passado, Carina se sentia muito à vontade vestindo sua camisa e sentada em sua poltrona. Elas eram feitas uma para a outra, Carina acreditava nisso. 

No entanto, a consciência de que Margot era capaz de deixar Maya transtornada com um único telefonema era perturbadora. Mais de uma hora depois, Maya surgiu na sala de estar, coçando a cabeça e bocejando. Seu cabelo estava desgrenhado, com exceção de um cacho errante e perfeito que parecia ter se apaixonado pela sua testa. Ela usava uma calça jeans desbotada, uma regata branca e mais nada. Não estava nem de meias. 

– Boa tarde, meu amor. – Ela acariciou o rosto dela com os dedos e se inclinou para lhe dar um beijo. – Gostei da sua... roupa. – Os olhos dela pousaram na pele nua visível logo abaixo da bainha da camisa. 

– Eu digo o mesmo. Seu estilo está bastante casual esta manhã, professora. – Maya se inclinou para a frente para encará-la com um olhar tórrido. 

– Srta. Deluca, você tem sorte de eu ter decidido me vestir. – Riu baixinho quando ela ficou vermelha como um pimentão, e desapareceu dentro da cozinha. 

Ó deuses de todas as virgens que estão planejando fazer amor com namoradas que são deusas do sexo (perdão pela blasfêmia), por favor, não me deixem entrar em combustão espontânea quando ela finalmente me levar para a cama. Preciso muito que Maya me leve ao orgasmo, principalmente depois de ontem à noite. Por favor. Por favor... Pensou Carina.
 
Poucos minutos depois, Maya reapareceu e se afundou no sofá com sua xícara de café. De onde estava, franziu o cenho na direção de sua amada. 

– Você está muito longe. – Ela afagou o próprio joelho, num convite. 

Carina sorriu e foi até Maya, permitindo que ela a acomodasse em seu colo. Ela puxou a camisa de Carina para cima e envolveu seus quadris com o braço, descansando-o à vontade sobre seu shortinho de renda. 

– E como está a Srta. Deluca esta manhã? 

– Cansada – suspirou. – Mas feliz. – Carina lançou um olhar para ela. – Se é que posso dizer isso. 

– Pode, sim. Também estou feliz. E, meu Deus, muito aliviada. – Ela fechou os olhos e recostou a cabeça, suspirando com muita força. – Estava certa de que iria perdê-la. 

– Por quê? 

– Carina, se formos analisar a relação custo-benefício, eu seria um investimento de alto custo, alto risco e baixo retorno.

– Que bobagem. Não é assim que vejo você. 

– Isso porque sua alma é generosa e compassiva. Embora deva admitir que, durante todo esse tempo, mantive ocultas minhas melhores qualidades e aptidões. – A voz dela ficou rouca e a fagulha familiar de sensualidade se acendeu em seus olhos. – Mas estou ansiosa para colocar todas elas a seu serviço repetidas vezes, até você estar cansada delas e de mim. E total e deliciosamente saciada. 

Carina engoliu em seco. Bishop se ergueu para beijar a testa dela, largando o café na mesa lateral para envolvê-la em seus braços. 

– Obrigada por ter ficado. 

– Eu amo você, Maya. Precisa entender que vou estar sempre do seu lado. – Ela a abraçou em resposta, mas permaneceu calada. – E não precisa me conquistar sexualmente, porque já me conquistou – sussurrou. – Sua melhor qualidade é seu coração, Maya, não suas habilidades sexuais. Foi pelo seu coração que eu me apaixonei.

Maya ficou tanto tempo em silêncio que Carina achou que a havia irritado. Ou insultado. Não é muito inteligente insultar as habilidades sexuais de uma amante em potencial antes de ter tido a oportunidade de experimentá-las. Ela abriu a boca para se desculpar, mas Bishop a interrompeu. Beijou-a com firmeza, de boca fechada, e o beijo logo se tornou um cabo de guerra de lábios, uma brincadeira carinhosa de línguas e uma troca de carícias. Quando

Maya recuou, ela a apertou contra o peito e sussurrou em seu ouvido: 

– Você me desnuda por inteira. Enxerga através de tudo. É a única que, depois de saber toda a verdade, ainda me quis. Só você foi capaz disso, minha amada.

Carina já sabia, por instinto, que Maya usava sua sexualidade como um escudo para manter afastada a intimidade e o amor verdadeiros. Mas, ao ouvir sua confissão, percebeu quanto todos aqueles anos deviam ter sido dolorosos e solitários para ela, e tudo isso depois de passar pelo sofrimento de ter sido invisível para sua própria mãe e de precisar se adaptar à realidade de ser uma criança adotada. Ao se dar conta de tudo isso, somado à tristeza que ela sentia por ter perdido Luz, Carina se esforçou ao máximo para conter as lágrimas, pois não queria aborrecê-la, mas não conseguiu. 

– Sssshhh, não chore – sussurrou Maya. Ela enxugou suas lágrimas e beijou sua testa. – Amo você. Por favor, não chore. Não por minha causa. 

Ela se aninhou em seus braços e tentou conter as lágrimas. Bishop esfregou suas costas, afagando-a com carinho repetidas vezes. Quando estava mais calma, Carina falou: 

– Eu amo você, Maya. E não posso deixar de pensar que Katherine estaria muito orgulhosa. 

– Não tenho tanta certeza disso. Mas ela certamente ficaria orgulhosa de você e de tudo que conquistou. – Carina sorriu. 

– Katherine tinha o dom da misericórdia. 

– Tinha mesmo. Interessante você ter escolhido essas palavras. Um dos livros preferidos dela se chamava A Severe Mercy, ou seja, uma misericórdia difícil. Ela passou anos tentando me convencer a lê-lo. Devo ter um exemplar em algum lugar no escritório. Talvez devesse procurá-lo. 

– É sobre o quê? 

– Um jovem casal. O homem acaba indo estudar em Oxford e, se não me engano, se torna um protégé de C. S. Lewis. É uma história real.

– Eu adoraria visitar Oxford, ver aqueles bares onde os escritores tomavam cerveja e elaboravam suas histórias. Miranda fala muito sobre Oxford. – Maya beijou sua testa.

– Eu adoraria levá-la. Posso lhe mostrar as estátuas no Magdalen College que inspiraram Lewis a escrever sobre os animais de pedra de O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. Podemos ir em junho, se você quiser. – Carina sorriu e retribuiu o beijo. 

– Se você me emprestar o livro de Katherine, posso levá-lo para a Itália. Vai ser bom ter algo para ler durante as nossas férias. – Maya sorriu com malícia e cutucou a ponta do nariz dela com um dedo.

– Acha mesmo que vou deixar você ter tempo para ler? – Ela ficou vermelha e balbuciou uma resposta evasiva, mas então Maya prosseguiu, com uma expressão grave no rosto: – Sinto muito por termos precisado parar ontem à noite. Não é justo que eu a provoque daquele jeito e simplesmente... – Ela vasculhou os olhos dela em busca de uma reação. Carina a envolveu com os braços e a puxou para si com ternura. 

– Foi uma noite cheia de emoções. Fiquei feliz por estar perto de você e dormir nos seus braços. Só queria consolá-la da melhor maneira possível. Não precisa se desculpar. 

– Carina, a sua presença já me consola. Mas eu estava exausta, e andei bebendo... ou seja, uma receita infalível para o desastre. Não queria que nossa primeira vez juntas fosse tão pesada, com os fantasmas do meu passado pairando no ar. Quero que estejamos em um lugar só nosso, para criarmos lembranças novas e felizes. 

– É claro. Embora eu deva dizer que fiquei muito feliz com as nossas interações da noite passada. – Ela riu baixinho e a beijou.

– Então não está chateada? 

– Maya. Vale a pena esperar por você. Que tipo de pessoa eu seria se desse um ataque porque você disse pare? Se fosse eu a dizer isso, esperaria que você aceitasse e não que ficasse nervosa. 

– Claro, Carina. Você sempre pode dizer pare. 

– Bem, o que vale para a mulher vale também para a menina.

– Quer dizer que agora eu sou uma menina? – Ela tornou a beijá-la. 

– Melhor do que ser uma vovó. 

– Ah, não. – Ela a apertou com força. – Nada de piadas sobre nossa diferença de idade. Já sou sensível o suficiente quanto a esse assunto. 

– Nossas almas devem ter mais ou menos a mesma idade. Então que diferença faz? 

– Você é incrível. É inteligente, engraçada e, minha nossa, é deslumbrante. Ontem à noite, enquanto eu beijava seus seios... – Maya pousou a mão com reverência sobre o coração dela. – Você rivaliza com a musa de Botticelli. 

– Botticelli? 

– Nunca notou que vários de seus quadros apresentam a mesma mulher? Ela é o tema da minha palestra na Galleria degli Uffizi: a musa de Botticelli. – Carina sorriu para ela com doçura, também pousando a mão em seu coração. 

– Mal posso esperar.

– Eu tampouco. 

Depois de um banho solitário, Carina teve que se esforçar para convencer Maya a deixá-la sair de perto dela para fazer umas compras. Ela insistiu em acompanhá-la. Mas quando ela finalmente explicou que queria comprar lingerie, sozinha, a loura cedeu. 

– Prometa que vai ficar comigo até viajarmos para a Itália – pediu, encarando-a. 

– Preciso fazer as malas. Minha mala e todas as minhas coisas estão no meu apartamento. 

– Quando acabar de fazer suas compras, pegue um táxi para casa e arrume sua bagagem. Depois peça ao motorista que a traga de volta para cá. Tenho que resolver alguns assuntos, mas você tem a chave e o cartão de segurança para entrar sozinha. 

– E que tipo de assunto a professora Bishop tem que resolver hoje? 

Ela lhe abriu um sorriso sedutor e Carina sentiu seu shortinho de renda escorregar pelos seus quadris como se quisesse se jogar no chão. 

– Talvez eu também precise comprar alguns, digamos, artigos de uso pessoal. – Ela se inclinou para a frente para colar os lábios à orelha dela, sua voz um sussurro aveludado: – Eu lhe disse que era uma boa amante, Carina. Confie em mim. Estarei preparada para todas as suas necessidades. 

Carina estremeceu por causa do modo como o hálito dela soprou por seu pescoço, quase fazendo tremular o lenço que ela tinha passado a usar sempre para esconder a cicatriz. Não fazia ideia do que Maya estava insinuando, mas foi seduzida pela maneira como aquelas palavras saíram de sua boca. Ela era sua, de corpo e alma. 


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