Adeus, Carina.

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O velho Pruitt Herrera olhou pelo olho mágico e não viu nada fora do comum. Tinha ouvido vozes, duas mulheres discutindo, mas não conseguiu ver ninguém. Chegara até a escutar um nome: Beatriz. Mas não conhecia nenhuma moradora chamada Beatriz naquele andar. E agora o corredor parecia vazio. Já havia saído uma vez naquela manhã, para devolver o jornal de sábado da vizinha que não conhecia, deixado por engano em sua porta. Os Herrera não assinavam o jornal, mas a Sra. Herrera sofria de demência e o pegara e escondera no apartamento deles no dia anterior. Ligeiramente irritado por sua manhã de domingo ter sido interrompida por uma baderna no corredor, o Sr. Herrera abriu a porta e pôs a cabeça para fora. A menos de quinze metros de distância, viu uma mulher apoiada na porta do elevador se lamentando. O Sr. Herrera ficou constrangido com aquela visão patética, mas também momentaneamente hipnotizado. Não reconheceu a mulher e não estava disposto a se apresentar. Sem dúvida, uma mulher adulta zanzando descalça pelo trigésimo andar de um prédio residencial, vestida como se estivesse dentro de casa e.... fazendo fosse o que fosse, não era o tipo de pessoa que ele gostaria de conhecer. Mulheres da geração dela nunca choravam feito idiota em lugares públicos. Nem ficavam se lamentando no corredor de um prédio. O Sr. Herrera recuou depressa, fechou e trancou sua porta e interfonou para denunciar ao porteiro que uma mulher descalça estava chorando no corredor depois de ter uma discussão acalorada com outra mulher chamada Beatriz.

[***]

Era fim de outubro e já fazia frio em Toronto. Carina caminhava lentamente de volta para casa, triste, sem nada quente por baixo do casaco, pois havia deixado para trás o suéter sujo da professora Bishop. Abraçou o próprio peito com força, limpando do rosto lágrimas de raiva e resignação. As pessoas passavam por ela e lançavam lhe olhares de compaixão. Os canadenses eram assim: compassivos, mas educadamente distantes. Carina se sentiu grata pela compaixão e mais ainda por ninguém parar e perguntar por que ela estava chorando. Sua história era longa e tortuosa demais para ser contada.

Carina nunca se perguntava por que coisas ruins aconteciam com pessoas boas, pois já sabia a resposta: coisas ruins aconteciam com todo mundo. Não que isso servisse de desculpa ou justificativa para fazer mal a outro ser humano. Ainda assim, todos tinham uma experiência em comum: a do sofrimento. Ninguém deixava este mundo sem verter uma lágrima, sentir dor ou navegar pelos mares da tristeza. Por que a vida dela deveria ser diferente? Por que ela receberia um tratamento especial, privilegiado? Até Madre Teresa sofreu, e ela era uma santa.

Deluca não se arrependia de ter cuidado da professora Bishop quando ela estava bêbada, mesmo que sua boa ação tivesse sido punida. Pois, se você realmente acredita que um gesto de bondade nunca é um desperdício, deve se agarrar a essa crença mesmo quando sua bondade é retribuída com patadas. Estava envergonhada por ter sido tão burra, tola e ingênua a ponto de achar que Maya se lembraria dela depois de uma noite de bebedeira e que as coisas voltariam a ser (apesar de nunca terem sido de fato) como naquela noite no pomar. Carina sabia que havia se deixado levar pela fantasia romântica de um conto de fadas, sem pensar nem por um instante em como era o mundo real, a Maya real. Mas foi real – a antiga fagulha continuava ali.

Quando ela me beijou, quando me tocou, a eletricidade ainda estava lá. Ela deve ter sentido também, não foi só imaginação minha. Pensou Carina.

Carina se apressou em afastar esses pensamentos. Está na hora de crescer. Chega de contos de fadas. Maya não se importava o suficiente para se lembrar de você em setembro e agora tem Margot. Quando entrou em sua pequena toca de Hobbit, tomou um banho demorado e vestiu seu pijama de flanela mais velho e confortável – cor-de-rosa claro com estampa de corações vermelhos. Jogou a camiseta de Maya no fundo do armário, na esperança de esquecê-la ali. Enroscou-se na cama, abraçou seu coelhinho de pelúcia e adormeceu, física e emocionalmente esgotada.

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