Michelle Alvarez nascera em berço de ouro e não havia desculpa alguma para sua natureza malévola. Seus pais se amavam e eram apaixonados por sua filha única.
O pai era um oncologista de renome em Toronto. A mãe era bibliotecária no Havergal College, uma escola particular de elite só para moças que Michelle frequentara da educação infantil ao ensino médio.
Michelle também frequentou a escola dominical. Foi crismada na Igreja Anglicana. Estudou o Livro de Oração Comum, de Thomas Cranmer, mas nada disso tocou seu coração.
Aos 15 anos, descobriu o imenso poder da sexualidade feminina e logo essa passou a ser não só sua moeda de troca, mas também sua arma favorita. Sua melhor amiga, Janika Zingler, tinha um irmão mais velho, muito bonito, chamado Ryan. Era ex-aluno do Upper Canada College, uma escola particular só para rapazes que servia aos membros da velha aristocracia canadense.
Ryan tinha cabelos pretos, olhos castanhos e era alto e sarado. Fazia parte da equipe masculina de remo da Universidade de Toronto. Poderia muito bem ter estampado várias peças de publicidade. Michelle costumava admirar Ryan a distância, mas, por ser quatro anos mais velho, ele nunca havia reparado nela. Até que certa vez, bem tarde, quando foi passar a noite na casa de Janika, Michelle topou com Ryan a caminho do banheiro.
Ele ficou fascinado por seus longos cabelos negros, grandes olhos castanhos e seu corpo jovem, porém maduro. Ele a beijou com carinho no corredor e roçou dedos titubeantes pelo seu seio. Então tomou sua mão e a convidou para o seu quarto.
Após meia hora de amassos e carícias por cima das roupas, ele quis ir além. Michelle hesitou, pois era virgem, então Ryan começou a fazer promessas disparatadas e extravagantes: presentes, encontros românticos e, por fim, um relógio de inox Baume & Mercier que seus pais a tinham dado de presente quando fizera 18 anos.
Michelle adorava aquele relógio. Conhecia-o bem, pois era a menina dos olhos de Ryan. Na verdade, desejava mais o relógio do que seu dono. Quando Ryan o colocou em seu pulso, Michelle olhou-o, maravilhada com a sensação fria do aço em sua pele e com a facilidade com que ele deslizava para cima e para baixo em seu braço fino. Era uma prova. Um sinal de que o desejo de Ryan por ela era tão intenso que ele estava disposto a lhe dar um de seus bens mais preciosos. Isso fez Michelle se sentir desejada. E poderosa.
– Você é tão linda – sussurrou ele. – Não vou machucá-la. Mas, por Deus, como quero você. Prometo que vou lhe dar prazer.
Michelle sorriu e deixou que ele a deitasse em sua cama estreita, como um sacrifício inca num altar, entregando-lhe sua virgindade em troca de um relógio de 3 mil dólares. Ryan manteve sua palavra: foi gentil; não teve pressa.
Beijou-a, explorando sua boca com carinho. Venerou seus seios. Preparou Michelle com os dedos, testando-a para se certificar de que ela estava pronta para ele. Quando a penetrou, foi com cuidado. Não houve sangue. Apenas mãos grandes deslizando em seus quadris e uma voz grave que murmurava que ela devia relaxar, até que o desconforto passou
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Como prometido, ele lhe deu prazer. Fez com que ela se sentisse bonita e especial. E, quando acabaram, ele a abraçou forte a noite inteira, pois, por mais que fosse impulsionado por suas necessidades carnais, não tinha a alma perversa.
Eles repetiriam esse ato várias vezes ao longo dos três anos seguintes, apesar de outros envolvimentos românticos. Antes de penetrá-la, Ryan sempre lhe dava um presente. Pouco depois de Ryan, foi a vez do Sr. Woolworth, o professor de matemática de Michelle no 11º ano.
Os encontros dela com Ryan lhe haviam ensinado muito sobre os homens, como interpretar seus anseios e desejos, como seduzi-los, provocá-los e deixá-los na palma de sua mão. Ela atiçou o Sr. Woolworth de forma impiedosa até que ele não aguentasse mais e implorasse a ela que o encontrasse em um hotel depois da aula. Michelle gostava quando os homens imploravam. No modesto quarto de hotel, seu professor a surpreendeu com um colar de prata da Tiffany.
Prendeu o fecho delicado em volta de seu pescoço e beijou-a de leve. Em troca, Michelle o deixou explorar seu corpo por horas a fio até ele adormecer, exausto e saciado. Ele não era tão atraente quanto Ryan, mas era muito mais experiente. Para cada presente que recebia, Michelle permitia que ele a tocasse não só como antes, mas de outras e novas maneiras.
Quando o caso deles terminou e Michelle foi estudar na Universidade de Willian, em Quebec, havia ganhado uma imensa quantidade de joias e um amplo conhecimento sexual. Acima de tudo, tinha se tornado uma das poucas mulheres que achava que o papel da sedutora devoradora de homens devia ser seguido.
Ao completar o mestrado em Estudos Renascentistas na Università degli Studi di Firenze, Michelle já havia estabelecido um padrão para os seus relacionamentos. Preferia homens mais velhos, em posições de poder. Relações proibidas a excitavam: quanto mais improváveis e impensáveis, melhor. Passou dois anos tentando seduzir um padre que trabalhava no Duomo, em Florença – e conseguiu pouco antes de se formar.
Ele a possuiu na cama de solteiro de seu minúsculo apartamento, mas, antes de tocá-la, fez os dedos longos e quentes dela se fecharem em volta de um pequeno ícone pintado por Giotto. Era inestimável. Mas ela também era, pensou Michelle. Ela permitiria que os homens a possuíssem, mas a um preço.
E, no fim das contas, sempre ia para a cama com os homens que queria. Até seu primeiro ano como doutoranda na Universidade de Toronto, quando conheceu a professora Maya Bishop. Ela era de longe a mais atraente e sexy de todos que ela já havia conhecido. E parecia adorar sexo. Cada poro do seu corpo emanava uma sensualidade tórrida e brutal.
Michelle quase conseguia sentir o cheiro dela. Ela a observou caçar em seu bar preferido, o Lobby. Notou sua abordagem sorrateira e sedutora e a maneira como as mulheres reagiam a ela. Estudou-a do mesmo modo como estudava italiano e pôs em prática o que aprendeu. Mas ela a rejeitou. Nunca olhou para o seu corpo. Fitava seus olhos com frieza, como se ela nem fosse mulher. Michelle começou a vestir roupas mais provocantes. Bishop nunca lançou um olhar sequer abaixo de seu pescoço.
Tentou ser doce e autodepreciativa. Maya se mostrou impaciente. Michelle assou biscoitos para ela e começou a deixar guloseimas anônimas em seu escaninho. Essas coisas permaneciam intocadas por semanas até a Sra. Natasha, a secretária do departamento, jogá-las no lixo por medo de uma infestação de insetos.
Quanto mais a professora Bishop a rejeitava, mais ela a queria. Quanto mais ficava obcecada em conquistá-la, menos se importava em receber presentes em troca. Seria capaz de se entregar a Bishop de graça, se ao menos ela a olhasse com desejo.
Mas ela não fazia isso. Então, no outono de 2017, quando teve a oportunidade de encontrá-la na Starbucks para discutir sua tese, ela esperou, ansiosa, que a reunião terminasse com um jantar e, quem sabe, uma visita ao Lobby. Ela se comportaria da melhor forma possível, mas tentaria seduzi-la. Com alguma sorte, ela não resistiria.
Preparando-se para a reunião, ela gastou 600 dólares num chemise da marca Bordelle e comprou também uma cinta-liga e meias finas pretas. Não se incomodou em acrescentar calcinha. Sempre que sentia a pressão da cinta-liga em sua pele, ela tinha a sensação de estar em chamas.
Perguntou-se como seria quando a professora Bishop soltasse a meia das presilhas, de preferência com os dentes. Para azar de Michelle, Gabriela e Carina tinham escolhido ir à mesma Starbucks, na mesma hora.
Michelle tinha certeza de que seus colegas notariam qualquer impropriedade da sua parte. A professora também sabia disso e por esse motivo seria muito mais profissional do que de costume. Então, quando Michelle confrontou Gabriela e Carina, estava furiosa.
Ela queria insultar as duas para que fossem embora antes que a professora chegasse. Fez tudo o que pôde para garantir que isso acontecesse. Mesmo assim, sua tentativa de intimidar as colegas de curso foi um desastre. A professora Bishop chegou mais cedo do que o esperado e escutou tudo o que ela disse.
– Srta. Alvarez. – Maya apontou uma mesa vazia bem longe de Gabriela e Carina e indicou que Michelle deveria segui-la.
– Professora Bishop, eu lhe comprei um venti latté com leite desnatado. – Ela a tentou entregar a bebida, mas Maya recusou com um gesto.
– Só os bárbaros tomam café com leite depois do desjejum. Você nunca foi à Itália? A propósito, Srta. Alvarez, leite desnatado é para idiotas.
Ela deu meia-volta e foi até o balcão pedir seu próprio café, enquanto Michelle tentava bravamente esconder sua fúria. Carina, sua desgraçada.
A culpa é toda sua. E dessa freira. Pensou Alvarez.
Michelle se sentou na cadeira que a professora Bishop havia apontado, sentindo-se quase derrotada. Mas não por completo, pois, de onde estava, tinha uma visão perfeita do traseiro da professora em sua calça de flanela cinza. Suas nádegas eram redondas como duas maçãs. Maduras e deliciosas. Ela queria mordê-las.
Algum tempo depois, a professora voltou com seu maldito café. Embora tecnicamente as duas ainda estivessem na mesma mesa, ela se sentou o mais longe possível dela e a encarou com um olhar severo.
– Precisamos conversar sobre o seu comportamento. Mas antes quero deixar uma coisa bem clara: concordei em encontrá-la aqui hoje porque eu queria tomar um café. Daqui para a frente, nos encontraremos no departamento, como de costume. Suas tentativas óbvias de engendrar compromissos sociais entre nós duas serão inúteis. Entendido?
– Sim, senhora.
– Uma palavra minha e a senhorita terá que arranjar uma nova orientadora. – Ela pigarreou. – Daqui para a frente, vai me chamar apenas de professora Bishop, mesmo quando estiver falando de mim para outra pessoa. Fui clara?
– Sim, professora Bishop. – Ohhhh, professora.
Você não faz ideia de quanto quero gritar o seu nome. Professora, professora, professora... Pensou Michelle.
– Acima de tudo, a senhorita vai parar de fazer comentários pessoais sobre meus outros alunos, em especial sobre a Srta. Deluca. Fui clara?
– Sim, professora Bishop.
Foi então que Michelle começou a ficar ligeiramente irritada, mas conteve sua reação. Ela pôs toda
a culpa em Carina. Queria que ela fosse expulsa da pós-graduação. Só não sabia como faria isso. Ainda.
– Por fim, qualquer coisa que me ouvir falar sobre outro aluno ou outra pessoa ligada à universidade deverá ser considerada confidencial e a senhorita não contará a ninguém. Do contrário terá que encontrar outra orientadora. Acha que é inteligente o bastante para respeitar essas regras simples?
– Sim, professora.
Michelle se zangou um pouco com aquele tom condescendente, mas a verdade é que também achava a rabugice dela sexy. Queria provocá-la até ela desaparecer. Seduzi-la a fazer coisas indizíveis com ela, a...
– Qualquer outro abuso direcionado a alunos será comunicado ao chefe do departamento, o professor Bell. Acredito que conheça bem as regras que governam o comportamento do corpo discente. Não preciso recordá-la das proibições contra maus-tratos, preciso?
– Mas eu não estava maltratando Carina, estava só...
– Poupe-me da sua ladainha. E duvido que a Srta. Deluca tenha lhe dado permissão para chamá-la pelo primeiro nome. A senhorita irá se dirigir a ela dá forma adequada ou então nem lhe dirija a palavra.
Michelle baixou a cabeça. Aquele tipo de ameaça não era sexy. Ela havia se esforçado muito para entrar para o doutorado na Universidade de Toronto e não iria pôr tudo a perder.
Não por causa de uma putinha patética que estava tramando algo com a assistente de pesquisa da professora.
Maya notou sua reação, mas ficou calada, bebericando devagar seu espresso. Não sentiu remorso e estava começando a se perguntar o que mais poderia fazer para levá-la às lágrimas.
– Estou certa de que a senhorita conhece a política da universidade a respeito de assédio. É uma política de mão dupla. Professores podem apresentar queixa se acharem que estão sendo assediados por um aluno ou uma aluna. Se passar dos limites comigo, vou arrastá-la para a sala do reitor tão depressa que sua cabeça vai ficar girando. Entendido? – Michelle ergueu o queixo e a encarou com olhos arregalados e assustados.
– Mas nós... eu achei que...
– Não tem "mas"! – estourou Maya. – A não ser que esteja delirando, vai perceber que não existe nós. Não vou me repetir. A senhorita sabe onde está pisando. – Ela olhou para Carina e Gabriela uma última vez. – Agora que já terminamos com as amenidades, gostaria de lhe dizer o que achei da sua última proposta de tese. Estava um lixo. Em primeiro lugar, sua tese não tem nada de original. Em segundo, a senhorita não tentou sequer fornecer uma revisão da literatura que chegue minimamente perto de ser adequada. Se não puder corrigir sua proposta para sanar esses problemas, terá que procurar outra orientadora. Se decidir me entregar uma versão revisada, faça isso em duas semanas. Agora, se me dá licença, tenho outra reunião que não é uma perda de tempo. Boa tarde.
Maya saiu da Starbucks bruscamente, deixando Michelle um tanto abalada e com o olhar perdido. Ela ouviu parte do que sua professora disse, é claro, mas sua mente estava concentrada em outras coisas. Primeiro, iria fazer algo para se vingar de Carina.
Não sabia o que nem quando. Mas iria fazer picadinho (metaforicamente falando) daquela vadia. Segundo, reescreveria a proposta de tese e, com sorte, conquistaria a aprovação acadêmica da professora Bishop. Terceiro, iria redobrar seus esforços para seduzi-la.
Agora que a virá nervosa, a coisa que mais desejava era vê-la com raiva dela – sem roupas. Ela iria fazê-la mudar de ideia. Iria romper sua casca grossa. Iria vê-la ajoelhada diante dela, implorando por ela, e então... Claramente, os saltos de 10 centímetros e a lingerie da Bordelle não eram suficientes. Michelle teria que ir à Holt Renfrew comprar um vestido novo. Algo europeu. Sexy. Um Versace. Então iria ao Lobby para pôr seu terceiro plano em ação...
***
Na cobertura de um hotel de luxo em Florença, havia roupas jogadas por toda a sala de estar, descrevendo uma trilha, como se fossem migalhas de pão, da entrada até uma parede que não estava mais vazia.
Gemidos e ritmos indiscretos ecoavam no ar, flutuando por sobre elegantes sapatos femininos feitos à mão, um sutiã preto, um terninho sob medida largado sobre a mesa de centro, um vestido de tafetá que formava no chão uma poça azul Santorini... O ar estava repleto dos aromas de flor de laranjeira e Aramis, misturados ao cheiro almiscarado de suor.
O quarto estava escuro. Nem mesmo o luar que vinha do terraço alcançava a parede onde dois corpos nus se agarravam. Maya estava com as costas eretas e segurava Carina no colo, que envolvia os quadris dela com as pernas ao mesmo tempo que sentia os dedos de sua amada entre elas.
– Abra os olhos.
O pedido de Maya foi entrecortado por uma cacofonia de sons: pele deslizando contra pele, gemidos desesperados abafados por lábios, breves sorvos de oxigênio e o leve baque das costas de Carina na parede.
Ela conseguia ouvi-la gemer a cada investida, mas sua capacidade de falar tinha se perdido, concentrada numa só sensação: prazer. Cada movimento da sua amante lhe dava prazer, até mesmo o atrito entre seus seios e a sensação das mãos dela a sustentando.
Ela oscilava à beira do êxtase, ofegante, à espera de que o próximo movimento a fizesse cair.
Quase lá, quase, quase, quase... Pensou Carina.
– Você... está... bem? – Maya estava ofegante e sua última palavra soou como um gemido, quando Carina girou os tornozelos de leve, pressionando os saltos afiados na carne dela.
Carina jogou a cabeça para trás e soltou alguns sons incoerentes ao chegar ao orgasmo, ondas intensas irradiando de onde elas estavam conectadas e disparando por seus nervos, até que todo o seu corpo estivesse vibrando.
– Você me deixou preocupada – sussurrou Maya, pouco depois.
Estava deitada de costas no centro de uma cama grande e branca, enquanto sua amante sonolenta se enroscava ao seu lado, a cabeça dela descansando sobre sua tatuagem.
– Por quê?
– Você não abria os olhos. Não falava nada. Fiquei com medo de ter sido forte demais nos movimentos.
Ela correu os dedos pela barriga de Maya, sentindo sua textura.
– Você não me machucou. Foi diferente desta vez... mais intenso. A cada vez que você movia os dedos, uma sensação incrível atravessava o meu corpo. Eu não conseguia abrir os olhos. – Maya sorriu para si mesma, aliviada, e pressionou os lábios na testa dela.
– Esta posição é mais profunda. E ainda houve as preliminares no museu. Não consegui tirar as mãos de você durante o jantar. Você gostou?
– Muito. No começo tive medo, que você pudesse me deixar cair. Mas seus braços são tão fortes e firmes. – Disse deslizando os dedos sobre a pele macia de seus braços.
– Eu nunca deixaria você cair. É uma posição cansativa, admito, mas sexo na parede com você, é a melhor sensação que eu poderia sentir.
– Com você, cada vez é melhor do que a anterior – sussurrou ela. O rosto de Maya ficou melancólico.
– Mas você nunca diz meu nome.
– Digo seu nome o tempo todo. Fico surpresa que ainda não tenha me pedido que use um apelido carinhoso, como May, Dante ou professora.
– Não é disso que estou falando. O que quero dizer é que você nunca diz meu nome... quando goza.
Ela ergueu o queixo para ver o rosto dela. Sua expressão combinava com seu tom de voz, melancólica e momentaneamente vulnerável. A máscara de confiança havia caído.
– Para mim, seu nome é sinônimo de orgasmo. Vou passar a chamá-los de Mayagasmos.
Ela riu alto, uma gargalhada gostosa, que fez seu peito chacoalhar e obrigou Carina a se sentar na cama. Ela riu também, grata por seu momento de melancolia ter passado.
– Você tem um senso de humor muito peculiar, Srta. Deluca.
Ela se esticou para beijá-la uma última vez antes de relaxar nos travesseiros e adormecer. Carina ficou acordada por mais algum tempo, refletindo sobre a garotinha ansiosa e insegura que se revelava raras vezes e nos momentos mais inesperados.
Na manhã seguinte, Maya presenteou Carina com seu café da manhã predileto no Caffé Perseo, uma excelente gelateria na Piazza della Signoria. Elas ficaram do lado de dentro, pois a temperatura típica de dezembro havia voltado e o tempo estava chuvoso e frio.
Qualquer um poderia ficar sentado na praça o dia inteiro, todos os dias, e observar o mundo passar. Ela é cercada de edifício antigos – a Galleria degli Uffizi ficava bem na esquina. Há uma fonte impressionante e belas esculturas, que incluem uma reprodução do Davi de Michelangelo e uma estátua de Perseu segurando a cabeça decepada da Medusa em frente a uma linda loggia. Carina evitou olhar para Perseu enquanto tomava seu gelato. Maya evitou olhar para as legiões de florentinas lindas para observar sua amada. Com voracidade.
– Tem certeza de que não quer provar? Framboesa e limão combinam muito bem. – Ela estendeu uma colher em que os dois sabores se misturavam.
– Ah, eu quero provar, sim. Mas não isso. – Os olhos dela brilharam. – Prefiro algo um pouco mais exótico. – Ela colocou seu expresso de lado e pegou a mão dela. – Obrigada por ontem à noite e por hoje de manhã.
– Eu que lhe agradeço, professora. – Carina apertou a mão dela e se ocupou do seu café da manhã, por assim dizer. – Estou surpresa que meu corpo não tenha deixado uma marca na parede do nosso quarto. – Ela deu uma risadinha, estendendo-lhe uma pequena colherada de sorvete.
Maya permitiu que ela lhe desse de comer e, quando a língua dela despontou para lamber os lábios, Carina ficou zonza.
Uma enxurrada de imagens daquela mesma manhã invadiu sua mente. E uma em especial ficou gravada nela.
Ó deuses das namoradas, que são deusas do sexo e gostam de dar prazer às suas amantes, obrigada pela manhã de hoje. Pensou Carina.
Ela engoliu em seco.
– Foi a primeira vez, sabia?
– Prometo que não vai ser a última.
Maya tornou a lamber os lábios só para provocá-la, louca para fazê-la se contorcer. Ela se inclinou para a frente, no intuito de dar um beijinho em seu rosto. Mas Maya não quis saber disso. Deslizou uma de suas mãos até a nuca de Carina e a puxou para perto.
Sua boca estava doce por conta do sorvete e do gosto próprio de Carina. Ela gemeu quando a soltou, desejando poder levá-la de volta ao hotel para repetirem o que haviam feito na noite anterior, ou talvez para o museu...
– Posso lhe perguntar uma coisa? – Carina se ocupou de seu pote de sorvete para não ter que encará-la.
– Claro.
– Por que disse que eu era sua noiva?
– Fidanzata tem vários significados.
– Mas o principal deles é noiva.
– Ragazza não expressa a profundidade do que sinto por você.
A boca dela se contorceu enquanto Maya pensava no que dizer em seguida, se é que deveria dizer mais alguma coisa. Decidiu ficar calada, remexendo-se em sua cadeira, sentindo-se desconfortável. Carina percebeu o que julgou ser um desconforto físico.
– Desculpe-me pelos saltos.
– Como?
– Vi as marcas na sua bunda quando você estava se vestindo hoje de manhã. Não quis machucá-la. – Ela sorriu com malícia.
– É um risco que correm os obcecados por saltos altos. Carrego minhas cicatrizes amorosas com orgulho.
– Vou ser mais cuidadosa da próxima vez.
– Nem pensar.
Carina arregalou os olhos diante do repentino lampejo de paixão na expressão dela. Bishop capturou os lábios dela com os seus antes de sussurrar em seu ouvido:
– Vou lhe comprar um par de botas com saltos ainda mais altos, então verei o que você consegue fazer com elas.
Enquanto elas atravessavam a Ponte Vecchio debaixo de um só guarda-chuva, Maya a arrastou de loja em loja, tentando convencê-la a aceitar algum presente ou uma joia extravagante: reproduções etruscas, moedas romanas, colares de ouro, etc.
Mas ela se limitava a sorrir e recusar as ofertas, apontando para os brincos de diamantes de Katherine e dizendo que eles eram mais do que suficientes.
A falta de apego a coisas materiais que Carina demonstrava só fazia com que Maya tivesse mais vontade de empilhá-las a seus pés. Quando chegaram ao meio da ponte, Carina puxou-a pelo braço e a conduziu até à beirada para que pudessem observar o rio Arno.
– Tem uma coisa que eu gostaria que você me desse, Maya.
Ela a encarou com um olhar intrigado, o ar frio de Florença ruborizando as faces de Carina. Ela era a encarnação da bondade, da luz, da ternura e da doçura. Mas era extremamente teimosa.
– Diga. – Carina fez uma pausa para correr a mão pela barreira que a separava do parapeito da ponte.
– Quero tirar minha cicatriz.
Ela ficou quase surpresa. Sabia que ela sentia vergonha da marca da mordida de Owen. Maya a havia surpreendido aplicando o corretivo naquela manhã e os olhos dela ficaram marejados quando ela lhe perguntou o que era aquilo. Ela evitou encará-la e prosseguiu:
– Não gosto de olhar para ela. Não gosto do fato de você ter que olhar para ela. Quero que desapareça.
– Encontraremos um bom cirurgião plástico, quando formos passar o Natal em casa.
– Teremos tão pouco tempo com eles. Não poderia fazer isso com o meu pai. Nem com Melissa.
Maya trocou o guarda-chuva de mão e a puxou para um abraço. Ela a beijou, descendo os lábios pelo seu pescoço até tocar a cicatriz.
– Será um prazer fazer isso por você e muito mais. Só precisa pedir. Mas gostaria que fizesse algo por mim.
– O quê?
– Gostaria que conversasse com alguém. Sobre o que aconteceu. – Carina baixou os olhos.
– Eu converso com você.
– Estou falando de alguém que não seja uma cretina. Posso pagar um médico para remover a cicatriz da sua pele, mas ninguém pode remover as marcas de dentro de você. É importante que perceba isso. Não quero que se decepcione.
– Não vou me decepcionar. E pare de chamar a si mesma desse tipo de coisa. Isso me aborrece. – Ela assentiu, como se admitisse que Carina tinha razão quanto ao último ponto.
– Acho que poderia ajudar se você tivesse alguém com quem conversar... sobre tudo. Vincenzo, sua mãe, ele e eu. – Maya lançou-lhe um olhar angustiado. – Sei que sou uma pessoa difícil. Acho que, se você tivesse alguém com quem conversar, seria bom. – Ela fechou os olhos.
– Está bem, mas só se você concordar em fazer a mesma coisa. – Maya ficou tensa. Ela abriu os olhos e começou a falar depressa: – Sei que você não quer e, acredite, eu entendo. Mas, se vou fazer isso, você também tem que fazer. Você ficou muito irritada ontem à noite e, embora saiba que não estava com raiva de mim, fui eu que tive que aguentar as consequências.
– Tentei recompensá-la depois – disse cerrando os dentes. Carina ergueu a mão para acariciar seu maxilar retesado.
– É claro. Mas me incomodou que você tenha ficado tão transtornada por conta de uma cantada de um estranho. E que tenha achado que o sexo aliviaria sua raiva e me marcaria como sua. – O rosto de Maya ficou chocado, pois ela nunca tinha interpretado sua atitude dessa forma.
– Eu jamais machucaria você. – Ela apertou a mão dela.
– Eu sei.
Maya pareceu angustiada e o pânico em seus olhos não diminuiu quando Carina ergueu a mão para acariciar seus cabelos.
– Somos uma dupla e tanto, não? Com nossas cicatrizes, nossas histórias e todos os nossos problemas. Um romance trágico, imagino. – Carina sorriu, tentando fazer graça da situação delas.
– A única tragédia seria perder você – disse beijando-a de leve.
– Você só vai me perder se deixar de me amar.
– Então sou uma mulher de sorte, pois ficarei com você para sempre. – Ela tornou a beijá-la, tomando-a nos braços. – Fui obrigada a fazer terapia durante a reabilitação. Continuei me consultando com um terapeuta por mais ou menos um ano depois disso, além de frequentar reuniões de autoajuda semanais. Já passei por isso antes. – Carina franziu a testa.
– Você está em recuperação e não vai às reuniões. Eu não quis tocar nesse assunto, mas é um problema sério. Além do mais, você ainda bebe.
– Eu era viciada em cocaína, não alcoólatra.
– Nós duas sabemos que os Narcóticos Anônimos sugerem enfaticamente que viciados não bebam. – Ela suspirou. – Por mais que eu tente ajudar, algumas coisas estão fora do meu alcance. Por mais que goste de fazer sexo com você, não quero me tornar sua nova droga favorita. Não posso consertar as coisas.
– É isso que você acha? Que eu uso o sexo para consertar as coisas? – Sua pergunta era séria e Carina resistiu ao impulso de responder com sarcasmo.
– Acho que já usou o sexo para consertar as coisas, sim. Você mesma já admitiu isso, lembra? Que usava sexo para combater sua solidão. Ou se punir. – Uma sombra cruzou o semblante de Maya.
– Não é assim com você.
– Mas, quando uma pessoa fica perturbada, antigos padrões de comportamento vêm à tona. Isso também se aplica a mim, só que meus mecanismos de defesa são diferentes. – Ela a beijou com carinho, mas por tempo suficiente para que seu pânico diminuísse e ela retribuísse o beijo. Quando suas bocas se desgrudaram, elas continuaram abraçadas até Carina decidir quebrar o silêncio:
– A sua palestra ontem à noite me fez lembrar de uma coisa. – Ela sacou seu telefone da bolsa e passou rapidamente por uma série de fotos. – Aqui.
Maya pegou o telefone da mão dela e olhou para a bela pintura. Santa Francisca Romana ninava um bebê com a ajuda da Virgem Maria, enquanto um anjo observava a cena.
– É linda – disse entregando-lhe o telefone.
– Maya – falou ela com brandura – Olhe para o quadro.
Ela obedeceu. E foi invadida por uma sensação muito estranha. Carina começou a falar em voz baixa:
– Eu sempre adorei esta pintura. Achava que era por causa das semelhanças entre Gentileschi e Caravaggio. Porém é mais do que isso. Santa Francisca perdeu alguns de seus filhos para a praga. A pintura busca retratar uma de suas visões do que aconteceu com essas crianças. – Carina vasculhou os olhos de Maya para ver se ela havia entendido o que ela queria dizer. Mas ela não entendera. – Quando olho para esta imagem, penso na sua filha, Luz. Katherine a está segurando, cercada de anjos. – Carina apontou para as figuras no quadro. – Está vendo? O bebê está em segurança e é amado. O Paraíso é assim. Você não precisa se preocupar. – Carina ergueu os olhos para o rosto dela, angustiado e belo. Os olhos de Maya estavam cheios de lágrimas. – Sinto muito. Muito mesmo. Estava tentando consolar você. – Ela passou seus braços em volta do pescoço dela, apertando-a com força.
Algum tempo depois, ela enxugou os olhos. Escondeu o rosto em seus cabelos, sentindo-se grata e aliviada. Na tarde seguinte, a chuva parou. Então o casal pegou um táxi até a Piazzale Michelangelo, que oferecia uma vista panorâmica da cidade.
Elas poderiam ter pegado um ônibus turístico, como turistas normais, mas Maya não era exatamente normal. (Poucos especialistas em Dante são.)
– O que Melissa dizia no e-mail? – perguntou Maya enquanto elas admiravam o telhado ladrilhado do Duomo. Carina brincou com suas próprias unhas.
– Ela e Jack mandaram um abraço. Queriam saber se estávamos felizes. – Maya estreitou os olhos.
– Só isso?
– Hum... não.
– E? – Ela deu de ombros.
– Parece que Mason está namorando. Basicamente foi isso.
– Bom para Mason. – Ela deu uma risadinha. – Mais alguma coisa?
– Por que está perguntando? – Ela inclinou a cabeça de lado.
– Porque percebo quando você está escondendo alguma coisa.
Bishop começou a correr os dedos para cima e para baixo pela carne macia da cintura de Carina, um lugar em que ela sentia mais cócegas do que o normal.
– Você não vai fazer isso em público.
– Ah, vou sim. – Ela sorriu e começou a mover os dedos com determinação, fazendo cócegas. Carina começou a rir e tentou se desvencilhar dela, mas Maya a segurou com firmeza. – Vamos, Carina. Conte o que Melissa falou.
– Pare de fazer cócegas – falou ela, ofegante – Que eu conto. – Maya parou de mover as mãos. Ela respirou fundo. – Ela queria saber se nós já tínhamos... hum... dormido juntas.
– Ah, é? – Os lábios dela se curvaram em um meio sorriso. – E o que você disse?
– A verdade. – Ela a encarou.
– Mais alguma coisa?
– Ela disse que esperava que você estivesse se comportando e que eu estivesse feliz. E eu respondi que sim, para as duas coisas. – Ela esperou alguns instantes, pensando se deveria ou não mencionar o e-mail de uma certa loura de Vermont.
– Mas não foi só isso. Continue. – Ela ainda tinha um sorriso indulgente estampado no rosto.
– Bem, Gabriela me mandou um e-mail. – O sorriso de Maya sumiu.
– O quê? Quando?
– No dia da sua palestra.
– E por que não me contou antes? – perguntou ela, furiosa.
– Por isso. – Ela gesticulou para a óbvia irritação em seu rosto. – Sabia que você ficaria irritada, e não queria fazer isso quando você estava prestes a se apresentar diante de um salão cheio de pessoas importantes.
– O que ela dizia?
– Que você aprovou a proposta de tese de Michelle.
– O que mais?
– Ela me desejou um Feliz Natal e disse que enviaria um presente para o meu endereço de São Francisco. – As narinas de Maya se dilataram.
– Por que ela faria isso?
– Porque é minha amiga. Deve ser uma garrafa de xarope de bordo, que ficarei feliz em dar para o meu pai. Gabriela sabe que eu tenho namorada e que estou muito, muito feliz. Posso encaminhar o e-mail para você, se quiser.
– Não precisa. – Os lábios de Maya se crisparam numa linha fina. Carina cruzou os braços diante do peito.
– Você me deu o maior apoio para passar tempo com Gabriela quando a professora Agonia estava por perto.
– Aquilo foi diferente. E não tenho a menor intenção de voltar a falar sobre ela, nunca mais.
– Para você é fácil. Não fica topando o tempo todo com mulheres que me levaram para a cama. – Maya a fuzilou com o olhar. Carina cobriu a boca com a mão. – Desculpe. Não deveria ter dito isso. Foi horrível.
– Como deve se lembrar, já topei com pelo menos um homem com quem você esteve envolvida.
Ela lhe deu as costas e se afastou, aproximando-se do parapeito do mirante. Carina a deixou sozinha por alguns minutos, então parou a seu lado e encaixou com cuidado seu dedo mindinho entre os dela.
– Desculpe. – Maya não respondeu. – Obrigada por me salvar de Owen. – Maya fez uma careta.
– Você sabe que eu tenho um passado. Pretende ficar trazendo-o à tona? – Ela baixou os olhos para os próprios sapatos.
– Não.
– Aquele comentário estava abaixo do seu nível.
– Desculpe.
Maya manteve seu olhar fixo na cidade que se estendia diante delas. Telhados vermelhos brilhavam sob o sol, enquanto o domo de Brunelleschi dominava a paisagem. Carina decidiu mudar de assunto:
– Michelle estava estranha na sua última aula. Parecia ressentida. Você acha que ela sabe sobre nós duas?
– Ela está azeda porque não recebi com bons olhos suas investidas escandalosas. Mas cumpriu o prazo de entrega de sua proposta revisada e o trabalho estava aceitável.
– Então ela não... chantageou você?
– Não vejo todas as outras mulheres como rivais suas – retrucou ela, perdendo a paciência e afastando a mão de Carina. Os olhos dela se arregalaram de surpresa.
– Esse comentário está abaixo do seu nível.
Depois de alguns instantes, a raiva de Maya pareceu diminuir. Ela encurvou os ombros.
– Me perdoe.
– Não vamos perder nosso tempo brigando.
– Concordo. Mas não gosto da ideia de Gabriela ficar lhe mandando e-mails. Embora imagine que você poderia ser amiga de gente pior. – Maya soou mais afetado do que o normal. Ela sorriu e lhe deu um beijo no rosto.
– Esta é a professora Bishop que eu conheço e amo.
Maya pegou o telefone para tirar uma foto dela com aquela linda vista ao fundo. Carina estava rindo. Ela tirava uma foto atrás da outra quando seu telefone começou a tocar. O som não muito melodioso ressoou entre elas. Carina a encarou com um olhar de desafio. Ela fez uma careta e a puxou para um beijo intenso.
Então aninhou o rosto dela em sua mão, determinada a separar os lábios de Carina com os seus e enfiar a língua com carinho em sua boca. Ela retribuiu o beijo, envolvendo a cintura dela com os braços para puxá-la mais para perto. E, durante todo esse tempo, o celular não parava de repicar.
– Não vai atender? – ela enfim teve a chance de perguntar.
– Não. Já disse que não vou falar com ela.
Bishop tornou a pressionar os lábios nos de Carina, mas apenas por alguns instantes.
– Tenho pena dela – declarou Carina.
– Por quê?
– Porque ela concebeu uma filha sua. Porque ela ainda a deseja, mas a perdeu. Se eu perdesse você para outra pessoa, ficaria arrasada. – Maya bufou, impaciente.
– Você não vai me perder. Pare com isso. – Carina abriu um sorriso fraco.
– Hum, preciso lhe dizer uma coisa. Quero que saiba que só vou falar isto porque me preocupo com você. – Ela a encarou com uma expressão séria. – Tenho pena de Margot, mas é óbvio que ela está jogando nas suas costas todo o peso do que aconteceu para que você continue fazendo parte da vida dela. Chego a me perguntar se ela não arranja problemas só para que você vá salvá-la. Acho que está na hora de ela desenvolver um apego emocional por outra pessoa. Alguém por quem possa se apaixonar.
– Não discordo – respondeu ela, tensa.
– E se ela não conseguir ser feliz até se libertar de você? Você se libertou dela e me encontrou. Seria misericordioso da sua parte permitir que Margot se liberte também, para que possa encontrar a felicidade.
Maya assentiu, e beijou a testa dela, mas se recusou a continuar falando daquele assunto.
O restante da estadia do casal em Florença foi feliz, uma espécie de lua de mel. Elas visitavam diversas igrejas e museus durante o dia, entremeando com passadas no hotel, onde faziam amor, algumas vezes devagar, outras loucamente.
Todas as noites Maya escolhia um restaurante diferente para o jantar e, em seguida, elas voltavam a pé, parando em alguma das pontes para namorar como duas adolescentes em meio ao ar frio da noite. Na última noite delas em Florença, Maya levou Carina ao Caffé Concerto, um de seus restaurantes favoritos, que ficava às margens do rio Arno.
Elas passaram horas saboreando um jantar de vários pratos, conversando preguiçosamente sobre as férias e sobre o relacionamento sexual que surgia entre as duas. Ambas confessaram que a semana anterior tinha sido uma espécie de despertar – para Carina, um despertar para os mistérios de eros; para Maya, um despertar para os mistérios do entrelaçamento dos quatro amores.
Durante a conversa, ela revelou que tinha uma surpresa para Carina. Havia alugado uma vila na Úmbria para a segunda semana de férias delas. Prometeu levá-la a Veneza e a Roma na próxima viagem, possivelmente no verão, depois que visitassem Oxford. Após o jantar, Maya a levou uma última vez ao Duomo.
– Preciso beijá-la – sussurrou ela, puxando o corpo dela para junto do seu.
Ela iria responder, iria lhe dizer para levá-la ao hotel e marcar seu corpo de uma forma mais profunda, mas foi interrompida.
– Moça bonita! Não tem um dinheirinho para um velho? – chamou uma voz, vinda dos degraus de entrada do Duomo.
Sem pensar, Carina se inclinou em volta de Maya para descobrir quem estava falando. O homem continuou implorando por dinheiro para comprar algo de comer. Maya agarrou o seu braço antes que ela pudesse se aproximar dos degraus.
– Vamos embora, amor.
– Mas ele está com fome. E está fazendo tanto frio!
– A polícia vai aparecer para levá-lo embora. Eles não gostam de pedintes no centro da cidade.
– As pessoas são livres para se sentarem nos degraus de uma igreja. É um santuário... – refletiu ela.
– O conceito medieval de santuário não existe mais. Os governos ocidentais o aboliram, a começar pela Inglaterra no século XVII – resmungou Maya enquanto ela abria sua bolsa e sacava uma nota de 20 euros.
– Tanto assim? – disse fechando a cara.
– É tudo o que tenho. E olhe, Maya. – Ela gesticulou para as muletas do homem. – Muito engenhoso – reclamou ela. Carina lançou um olhar desapontado para sua amante.
– Eu sei o que é passar fome. – Ela deu um passo na direção do mendigo, mas Maya a puxou de volta.
– Ele vai gastar o dinheiro em bebida ou drogas. Isso não vai ajudá-lo.
– Até um viciado merece um pouco de gentileza. – Maya se encolheu. Ela olhou para o pedinte. – São Francisco de Assis era incondicional em sua caridade. Ele dava a qualquer um que pedisse.
Maya revirou os olhos. Era incapaz de vencer uma discussão com Carina quando ela invocava São Francisco de Assis. Seria impossível para qualquer um rebater um argumento desses.
– Se eu lhe der algo, ele vai saber que alguém se importa o suficiente para ajudá-lo. Não interessa se vai fazer algo de bom com o dinheiro ou não. Não me prive de uma oportunidade de ser caridosa.
Ela tentou passar por Maya, mas ela bloqueou seu caminho. Tirou a nota da mão dela e acrescentou algo do próprio bolso, então entregou o dinheiro para o mendigo. Os dois trocaram algumas palavras inaudíveis em italiano, então o pobre homem jogou beijos para Carina. Maya voltou, tomando o braço dela e levando-a para longe dali.
– O que ele disse?
– Para eu agradecer ao anjo pela sua misericórdia. – Carina a fez parar e beijou seu rosto emburrado até ela sorrir.
– Obrigada.
– Não sou o anjo de que ele estava falando – rosnou ela, beijando-a de volta. Na manhã seguinte, uma limusine foi buscar o feliz casal na estação ferroviária de Perúgia. O motorista as conduziu pelas estradas sinuosas até uma propriedade perto de Todi, um vilarejo medieval.
– Esta é a vila?
Carina ficou maravilhada enquanto elas subiam o longo passeio particular em direção ao que parecia uma mansão no topo de uma colina. Era uma construção de pedra de três andares, erguida em meio a um terreno de vários acres, salpicado de ciprestes e oliveiras.
Maya apontou um grande pomar que, quando o clima estava mais quente, dava figos, pêssegos e romãs. Ao lado da vila, havia uma piscina sem borda cercada de arbustos de alfazema. Carina quase conseguia sentir o cheiro das flores de dentro do carro e prometeu a si mesma que colheria alguns ramos para perfumar os lençóis da cama delas.
– Gostou? – Olhava para ela com ansiedade, esperando que a surpresa a tivesse agradado.
– Adorei. Quando você disse que tinha alugado uma vila, não imaginei que fosse tão luxuosa.
– Espere até ver por dentro. Eles têm uma lareira e uma banheira aquecida no terraço do andar de cima.
– Eu não trouxe roupa de banho.
– E quem disse que vai precisar? – Ela arqueou as sobrancelhas de modo sugestivo e Carina riu.
Um Mercedes preto estava estacionado na entrada para carros, para que elas pudessem visitar os vilarejos vizinhas, incluindo Assis, destino pelo qual Carina tinha um interesse especial. O caseiro havia abastecido a cozinha com comida e vinho. Carina revirou os olhos ao descobrir na despensa várias garrafas de suco de cranberry importado. Professora Maya "Superprotetora" Bishop volta a atacar.
– O que você acha? – perguntou Maya, pousando a mão na cintura dela, as duas lado a lado na cozinha grande e completamente equipada.
– É perfeito.
– Tive medo de que você não fosse gostar de estar no meio da Úmbria. Mas achei que seria bom passarmos alguns dias tranquilos a sós. – Carina arqueou uma sobrancelha.
– Nossos dias a sós não costumam ser tranquilos, professora.
– Isso porque você me enlouquece de desejo. – Ela a beijou com paixão. – Vamos ficar em casa hoje à noite. Podemos cozinhar juntas, se quiser, e talvez relaxar diante da lareira.
– Acho ótimo. – Ela a beijou de volta.
– Vou levar nossas malas lá para cima enquanto você explora a casa. A banheira aquecida fica no terraço, bem em frente ao quarto principal. Encontro você nela daqui a quinze minutos. – Ela concordou com um sorriso. – Ah, Srta. Deluca...
– Pois não?
– Nada de roupas pelo resto da noite. – Ela deu um gritinho e subiu correndo as escadas.
A decoração da casa era de muito bom gosto, com seus vários tons de creme e branco, e no segundo piso havia um quarto principal bastante romântico, cujo destaque era uma cama com dossel. Carina se deitou para testar a cama por alguns instantes, antes de levar sua nécessaire para o banheiro.
Ela arrumou seus produtos de beleza e colocou o xampu e o gel de banho no boxe grande e aberto. Prendeu o cabelo e tirou todas as roupas, enrolando-se numa toalha cor de mármore. Nunca havia nadado nua, mas estava louca para experimentar. Enquanto dobrava as roupas e as guardava na penteadeira, ouviu uma música vindo do quarto. Reconheceu a canção: "Don't Know Why", de Norah Jones. Maya pensava em tudo. Sua voz à porta do banheiro confirmou isso:
– Trouxe alguns antipasti e uma garrafa de vinho, caso esteja com fome. Estou esperando lá fora.
– Já vou – respondeu ela.
Carina se olhou no espelho. Seus olhos brilhavam de excitação e suas faces exibiam um saudável tom rosado. Ela estava apaixonada. Sentia-se feliz. E, ao que tudo indicava, estava prestes a batizar a banheira aquecida com sua amada sob o céu negro da Úmbria. Enquanto se encaminhava para o terraço, viu as roupas de Maya penduradas nas costas de uma cadeira.
A brisa fresca da noite soprava pela porta aberta, despenteando os cabelos de Carina e fazendo sua pele ficar ainda mais corada. Maya estava nua, à sua espera. Ela saiu para o terraço e esperou até ter toda a atenção dela para si. Só então largou a toalha.
Nos arredores de Burlington, Vermont, Gabriela embrulhava os presentes de Natal sobre a mesa da cozinha da casa de seus pais: presentes para a sua família, para sua irmã e, por fim, para a mulher por quem seu coração sofria.
Uma garrafa de xarope de bordo, uma vaca Holstein de pelúcia e dois bonecos estavam orgulhosamente dispostos à sua frente. Os bonecos eram uma curiosidade que ela havia encontrado numa loja de revistas em quadrinhos de Toronto. Um representava Dante, vestido como um cruzado com a cruz de São Jorge estampada no peito da cota de malha; o outro era uma anacrônica Beatriz loura de olhos azuis, vestida como uma princesa medieval.
Infelizmente, a empresa que produzia os brinquedos não se deu o trabalho de fazer um de Virgílio. (Virgílio, pelo jeito, não merecia participar da brincadeira.) Gabriela discordava, então decidiu escrever para a empresa para alertá-la daquela lamentável omissão.
Ela embrulhou cada item com atenção e os colocou numa caixa de papelão com plástico-bolha. Escreveu algumas palavras num cartão de Natal, esforçando-se ao máximo para soar casual e disfarçar seus sentimentos cada vez mais intensos, e fechou a caixa com fita adesiva, endereçando-a com uma letra caprichada à Srta. Carina Deluca.
Depois de momentos muito agradáveis na banheira aquecida, Maya preparou um jantar típico da região da Úmbria. Bruschetta con pomodoro e basilico, tagliatelle com azeite de oliva e trufas pretas colhidas na propriedade, uma tábua de queijos artesanais da região e pão.
Elas comeram à vontade, rindo e bebendo um delicioso vinho branco de Orvietto à luz de velas. Depois do jantar, Maya preparou um ninho de cobertores e travesseiros no chão diante da lareira da sala de estar. Conectou seu iPhone no aparelho de som para que continuassem ouvindo sua lista de músicas intitulada "Fazendo Amor com Carina".
Então a tomou nos braços e elas ficaram sentadas assim, terminando suas taças de vinho, os sons de cânticos medievais rodopiando ao redor delas. Estavam nuas, envolvidas pelas cobertas e sem nenhum pudor.
– Que música linda! Como se chama? – Ela fechou os olhos e se concentrou nas vozes femininas, que cantavam a cappella.
– "Gaudete", do grupo The Mediæval Bæbes. É uma cantiga de Natal.
– Que nome curioso para uma banda.
– Elas são muito talentosas. Fui ao show quando estiveram em Toronto pela última vez.
– Ah, é? – Maya abriu um sorriso malicioso para ela.
– Está com ciúmes, Srta. Deluca?
– Deveria?
– Não. Tenho tudo o que quero nos meus braços.
Elas começaram a se beijar. Logo seus corpos nus estavam entrelaçados diante da lareira. Sob o brilho das chamas alaranjadas, Carina se deitou Maya de costas e montou seus quadris. Ela sorriu enquanto a deixava assumir o controle, recebendo de braços abertos sua recém-descoberta confiança.
– Não é tão assustador assim ficar por cima, é?
– Não. Mas agora estou mais à vontade com você. Acho que o sexo na parede do hotel acabou com as minhas inibições.
Ela se perguntou em silêncio de que outras inibições poderiam libertá-la fazendo sexo em outros lugares, como no chuveiro, por exemplo. Ou, talvez, o cálice sagrado do coito doméstico: sexo na mesa da cozinha. A voz dela interrompeu seus pensamentos:
– Quero lhe dar prazer.
– Você já me dá. Muito. – Carina estendeu a mão para trás e tocou de leve a virilha dela.
– Com a boca. Eu me sinto mal por ainda não ter retribuído. Você tem sido muito generosa. – O corpo de Maya reagiu à voz sussurrada dela e à sua mão hesitante.
– Carina, isso não é uma troca de favores. Eu faço isso com você porque quero. – Os lábios dela se curvaram num meio sorriso. – Mas, já que você está oferecendo...
– Quero que sinta prazer, assim como você me faz sentir. – Ela encolheu os ombros. – Mas, não tenho certeza se farei melhor do que você.
– Sexo bem-feito sempre vai ser melhor. Em comparação, todo o resto não passa de um amuse-bouche. – Ela piscou de um jeito safado, apertando o quadril dela para enfatizar o que dizia.
– Esta posição está boa? Com você deitada ou...?
– Está ótima – sussurrou ela, os olhos subitamente incendiados.
– Acho que vai ser melhor do que se eu ficar de joelhos. – Pelo canto do olho, Carina observou a reação dela.
– Exatamente. Eu, por outro lado, ficaria feliz em me ajoelhar diante da minha Princesa para lhe dar prazer, como já provei em outras ocasiões. – Carina riu baixinho. Mas então seu sorriso desapareceu.
– Preciso lhe contar uma coisa. – Maya ergueu um olhar curioso para ela. – Eu tenho ânsia de vômito.
Um vinco surgiu entre as sobrancelhas de Maya. Carina evitou a expressão intrigada no rosto dela enquanto descia beijando seu corpo.
– Com muita facilidade. – Maya acariciou os cabelos dela.
– Não vai ser um problema, querida. Eu prometo. – Ela apertou a mão de Carina.
Ela desceu mais um pouco e Maya começou a entrelaçar os dedos em seus cabelos, puxando-os de leve, brincando com eles. Carina congelou. Distraída por um instante, ela continuou a brincar com seus cabelos longos e sedosos. Então percebeu que ela não estava se mexendo.
– O que foi?
– Por favor, não force minha cabeça para baixo.
– Eu não pretendia fazer isso, só está segurando seus cabelos para vê-la melhor. – respondeu ela, parecendo perturbada.
Carina ficou totalmente imóvel, esperando. Maya não sabia pelo quê. Por fim, soltou os cabelos dela para erguer seu queixo.
– Querida?
– Hum... é só que nãoquerovomitaremcimadevocê. – Carina falou muito rápido, não contendo seu nervosismo.
– Como? – Ela baixou a cabeça.
– Eu já... vomitei... antes.
– Como assim? Depois?
– Hum, não. – Maya ficou calada por alguns instantes, então estreitou os olhos.
– Eu sei que você teve... momentos íntimos com aquele cretino. Mas me responda, Carina. Você passou mal porque se engasgou ou porque aquele desgraçado segurou sua cabeça à força?
Ela se encolheu, assentindo de forma quase imperceptível com a cabeça. Maya praguejou, ardendo de raiva. Ela se sentou depressa, esfregando o rosto com as mãos.
No passado, não tinha sido muito carinhosa com suas parceiras, embora se orgulhasse de sempre ter mantido algum vestígio de boas maneiras. Menos quando usava cocaína.
Apesar de ter participado de orgias, festas que por vezes se aproximavam da decadência romana, ela nunca havia segurado a cabeça de uma mulher à força até ela vomitar.
Ninguém fazia isso. Nem mesmo os traficantes e viciados com os quais costumava andar – e olhe que eles eram o tipo de pessoa que não tem limites ou escrúpulos.
Só mesmo um filho da puta incrivelmente doentio, pervertido e misógino teria prazer em humilhar uma mulher daquela forma. Submeter Carina a uma coisa dessas, com seus olhos bondosos e sua linda alma... Uma criatura tão tímida que tinha vergonha de engasgar.
O filho do senador tinha sorte por estar escondido na casa dos pais, em Georgetown, com sua sentença suspensa e sua ação cautelar. Do contrário, Maya teria batido à sua porta para continuar a briga que havia começado.
E a conversa entre eles terminaria com mais do que alguns socos. Ela afastou aqueles pensamentos homicidas da cabeça, pondo Carina de pé e envolvendo-a em um dos cobertores.
– Vamos subir.
– Por quê?
– Porque não posso ficar sentada aqui depois do que você me contou.
As faces de Carina ficaram vermelhas de vergonha e seus olhos grandes se encheram de lágrimas.
– Ei. – Maya pressionou os lábios na testa dela. – A culpa não é sua. Entende o que eu digo? Você não fez nada de errado.
Ela abriu um sorriso fraco, mas estava claro que não acreditava nela. Maya a conduziu ao andar de cima e atravessou o quarto até a suíte, fazendo-a entrar antes de fechar a porta atrás de si.
– O que está fazendo?
– Algo de bom. Pelo menos é o que espero. – Ela deslizou o polegar pela curva do rosto dela.
Maya abriu a ducha, testando a temperatura da água até ficar satisfeita. Ajustou o fluxo até a água cair gentilmente do chuveiro de teto estilo "banho de chuva". Retirou devagar o cobertor do corpo de Carina e segurou a porta do boxe aberta, esperando que ela entrasse, para só então acompanhá-la. Ela parecia confusa.
– Quero mostrar que amo você – sussurrou. – Sem levá-la para a cama.
– Por favor, me leve para a cama – implorou Carina. – Para que nossa noite não seja um completo desastre.
– Nossa noite não é um desastre – disse ela, irritada. – Mas nunca deixarei, de forma alguma, que voltem a machucá-la. – Ela acariciou seus cabelos com as mãos, separando-os e movendo-os para que cada mecha ficasse molhada.
– Você me acha suja.
– Pelo contrário. – Maya tomou a mão dela e a pressionou na tatuagem em seu peito. – Você é a coisa mais próxima de um anjo que terei a chance de tocar. – Ela fitou os olhos de Carina sem piscar. – Mas acho que nós duas precisamos nos purificar dos nossos passados.
Ela afastou os cabelos dela para o lado e deu um beijo em seu pescoço. Recuando um passo, despejou um pouco do xampu de baunilha de Carina na palma da mão. Espalhou o líquido no couro cabeludo dela, esfregando devagar, deslizando os dedos pelos cachos até as pontas. Seus movimentos eram cuidadosos.
Nunca tivera oportunidade de demonstrar, através de seus atos, que seu amor por ela era muito mais profundo do que uma atração sexual. Aquele era o momento. Conforme Carina começava a relaxar, sua mente voltou a uma das poucas recordações felizes que tinha da mãe. Ela era uma garotinha e Lúcia lavava seus cabelos numa banheira.
Ela se lembrava de as duas estarem rindo. Lembrava-se do sorriso da mãe. Ter Maya lavando seus cabelos era muito melhor. Era uma experiência profundamente afetuosa e íntima. Ela estava nua diante dela, que lavava toda a sua vergonha. Maya também estava nua, mas tomava o cuidado de não a sufocar. O que interessava ali não era o sexo, mas fazer com que Carina se sentisse amada.
– Sinto muito por ter ficado tão emotiva – falou ela, baixinho.
– Sexo deve ser emotivo. Você não precisa esconder seus sentimentos de mim. – Maya envolveu a cintura dela com os braços. – Também tenho emoções muito fortes com relação a nós duas. Esses últimos dias foram os mais felizes da minha vida. – Ela descansou o queixo no ombro dela. – Você era muito tímida aos 17 anos, mas não me lembro de estar tão machucada.
– Eu deveria tê-lo largado na primeira vez que ele foi cruel comigo. – A voz dela ficou trêmula. – Mas não fiz isso. Não fui capaz de me defender e as coisas pioraram.
– Não foi culpa sua. – Ela se encolheu.
– Eu fiquei com ele. Agarrei-me às vezes em que ele era gentil ou atencioso, esperando que os momentos ruins fossem desaparecer. Sei que você ficou enojada com o que eu disse, mas, Maya, acredite: ninguém poderia ter mais nojo de mim do que eu mesma.
– Carina – atalhou ela com um suspiro, virando o rosto dela para que a encarasse. – Não tenho nojo de você. Não importa o que tenha feito, ninguém merece ser tratado assim. Está me ouvindo? – Uma chama perigosa brilhou em seus olhos. Ela cobriu o rosto com as mãos.
– Queria fazer algo por você. Mas não sirvo nem para isso. – Maya puxou os punhos dela, baixando suas mãos.
– Preste atenção. Nós nos amamos e tudo o que existe entre nós, inclusive o sexo, é uma dádiva. Não um direito, uma obrigação ou uma cobrança, mas uma dádiva. Quando estiver pronta, faremos o que você quiser fazer. Você tem a mim agora. Liberte-se dele.
– Ainda ouço a voz dele na minha cabeça. – Ela secou uma lágrima solitária.
Maya balançou a cabeça, movendo-as para que elas ficassem no centro da ducha, a água quente se derramando sobre seus corpos.
– Você se lembra do que falei em minha palestra sobre A primavera de Botticelli? – Ela assentiu. – Há quem pense que A primavera é sobre o despertar sexual, que parte da pintura é uma alegoria para um casamento arranjado. A princípio, Flora é virgem e está com medo. Quando está grávida, parece serena.
– Sempre achei que Zéfiro a houvesse estuprado. – O rosto de Maya ficou tenso.
– E estuprou mesmo. Apaixonou-se por Flora depois e se casou com ela, transformando-a na deusa das flores.
– Não é uma boa alegoria para o casamento.
– Não, não é. – Ela engoliu em seco. – Carina, embora algumas de suas experiências tenham sido traumáticas, você ainda pode ter uma boa vida sexual. Quero que saiba que está segura nos meus braços. Não quero que faça nada de que não goste e isso inclui sexo oral.
Maya passou um braço em volta da cintura dela, sentindo a água quente escorrer por seus corpos nus antes de respingar nos azulejos aos seus pés.
– Só estamos dormindo juntas há uma semana. Temos a vida inteira para nos amarmos, de várias maneiras.
Com uma esponja, ela ensaboou a nuca e os ombros dela, em silêncio e com ternura. Então percorreu suas costas, deslizando pela coluna, detendo-se vez por outra para pousar os lábios onde a espuma já havia sido enxaguada.
Lavou a base das suas costas e as duas covinhas que marcavam o início de sua bunda. Sem hesitar, ensaboou as nádegas de Carina, massageando a parte de trás das suas pernas. Chegou até a lavar seus pés, pegando-lhe a mão para apoiá-la em seu ombro para que ela não perdesse o equilíbrio enquanto ela limpava entre os seus dedos.
Carina nunca havia se sentido tão bem cuidada na vida. Em seguida, Maya se dedicou à parte da frente do seu pescoço e ao relevo dos seus ombros. Lavou e acariciou-lhe os seios, colocando a esponja de lado enquanto os beijava. Então tocou-a com carinho entre as pernas, de um jeito não sexual, mas reverente, enxaguando a espuma que havia se acumulado entre seus pelos negros e, por fim, colando sua boca ali também.
Quando terminou, tomou Carina nos braços e a abraçou como uma adolescente tímida, de forma casta e simples.
– Você está me ensinando a amar e suponho que eu esteja lhe ensinando a amar também, de certa forma. Não somos perfeitas, mas podemos ser felizes. Não podemos? – Ela recuou para fitar seus olhos.
– Podemos – respondeu ela, os olhos cheios de lágrimas.
Maya a apertou contra o peito e enterrou o rosto em seu pescoço, deixando a água caír sobre elas. Emocionalmente exaurida, Carina dormiu até o meio-dia.
Na noite anterior, Maya tinha sido muito carinhosa, muito gentil. Havia prescindido daquilo que Carina sempre acreditara ser a necessidade básica um relacionamento – sexo oral – e lhe oferecera algo que só poderia ser descrito como a purificação da sua vergonha.
O amor e a aceitação tinham alcançado o efeito pretendido, de serem transformadores. Ao abrir os olhos, ela se sentiu mais leve, mais forte e mais feliz. Carregar os segredos de como ele a havia humilhado tinha se mostrado um fardo muito pesado. Quando o peso foi retirado de seus ombros, ela se sentiu uma nova pessoa.
Embora talvez fosse uma blasfêmia comparar sua experiência com a parábola cristã do Progresso do peregrino, ela via semelhanças importantes entre suas redenções. A verdade liberta, mas o amor expulsa o medo.
Em seus 23 anos, Carina ainda não havia percebido como a graça estava em tudo e como Maya, que se considerava uma grande pecadora, poderia ser um catalisador dessa graça. Isso era parte da divina comédia – o senso de humor de Deus reforçando os mecanismos internos do universo.
Pecadores ajudavam outros pecadores a se redimirem, fé, esperança e caridade triunfavam sobre a descrença, o desespero e o ódio, enquanto uma que chama todas as criaturas para Si observava e sorria.
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HEAL
Fanfic- Você implorou para que eu a encontrasse, que a procurasse no Inferno. Foi exatamente onde achei você. E, por mim, pode ficar para sempre onde está. - Do que você está falando? - Nada. Para mim chega, professora Bishop. - Por que escreveu aquele b...