28• REALIDADE

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Clary Miller

Ver como me saí na última aula foi algo que me deixou ainda mais feliz comigo mesma. Perceber que não sou burra, como as gêmeas e Paloma sempre falaram, me deu uma sensação de alívio. Eu ainda não consigo falar como o Red, mas já entendo muito do que ele diz. Apesar de ter errado algumas vezes, continuamos estudando o resto da tarde.

Voltei para casa antes das seis e passei a noite toda imersa no livro que Dani me indicou. Não conseguia parar. Sentia uma ansiedade crescente pela protagonista, Adeline, e por Zade... Ele é um tipo de psicopata bom, se é que isso existe. Adeline passou por horrores com ele a perseguindo, mas, de alguma forma, acabei amando a história. Falta pouco para terminar, e mal posso esperar. Dormi tarde e, quando acordei, ainda me sentia cansada, mas precisava fazer o café da manhã.

Estava de volta à minha realidade. Dentro de casa, onde sou apenas eu, e elas são elas, tudo voltava ao normal na ausência do meu pai.

Enquanto terminava de preparar o café, ouvi passos descendo as escadas. Levantei o olhar e vi Paloma. Ela estava vestindo um robe e, sem me dirigir uma palavra, puxou uma cadeira e se sentou à mesa. Agradeci mentalmente por ela não falar comigo. Coloquei a garrafa de café e os pães na mesa para que ela pudesse se servir.

- Já comeu, garota? - sua voz me pegou de surpresa.

- Já sim - respondi, tentando manter a calma.

Ela levantou o olhar para mim enquanto passava geleia no pão. Seu olhar tinha algo de estranho, perturbador.

- Sente-se, quero conversar - disse, com uma frieza que me fez gelar por dentro.

Aquilo era mau, muito mau. Meu corpo ficou tenso, e minha mente começou a repassar rapidamente tudo o que fiz nos últimos dias. Não me lembro de ter feito nada errado. Tentei suavizar minha expressão, para que ela não percebesse meu nervosismo, e adotei uma postura neutra.

- Eu não sei...

- Garota, eu falei pra sentar! - Paloma me olhou com fúria nos olhos, elevando o tom de voz. Um nó se formou no meu estômago, e eu quis vomitar de medo.

Rapidamente puxei a cadeira e me sentei em frente a ela. Paloma voltou a mexer na xícara, como se eu não estivesse ali.

- Tenho percebido que você tem voltado para casa mais tarde que o normal.

Seu tom de voz mostrava claramente que estava irritada comigo, mas eu realmente não entendia o motivo. Não fiz nada que justificasse aquele comportamento. Ela só queria encontrar mais um motivo para implicar comigo.

- Eu estava estudando e no balé - tentei explicar, minha voz soando mais baixa do que eu gostaria.

Ela tomou um gole de café e, com uma calma perturbadora, depositou a xícara de volta à mesa, sem nunca desviar o olhar de mim.

- Não precisa mentir pra mim - disse, seus olhos fixos nos meus, fazendo meu corpo se encolher - Não sou palhaça. Olha, eu não me importo com você, mas se acontecer algo, seu pai vai me culpar.

- Mas eu não estou fazendo nada - tentei manter a calma na voz, mesmo que por dentro estivesse tremendo.

- Não me interessa. Se aparecer grávida, vou ter que resolver o problema. Se você sumir, não tem como eu resolver.

As palavras de Paloma eram venenosas. Ela nunca se importou comigo, e suas palavras deixavam isso claro. Sei que sua única preocupação é manter a aparência de boa madrasta para meu pai.

- Eu comuniquei ao seu pai os horários que você tem chegado.

Pisquei, confusa. Ela o quê? Com certeza está tentando me complicar com meu pai. Ele me ligou ontem, mas não mencionou nada. Isso quer dizer que ele está esperando que eu fale. Sempre confiou em mim, e agora ela quer abalar isso.

Respirei fundo e simplesmente balancei a cabeça em concordância. Quando me levantei para sair, ela voltou a falar.

- Lembre-se de limpar a casa toda. Quero o chão esfregado, os banheiros limpos. Não deixe nada fora do lugar.

Eu realmente comecei a achar que minha vida tinha mudado, mas aqui estou, agachada, esfregando o chão com o pano. Tentando deixar o piso o mais branco possível para que Paloma não reclame de nada.

As gêmeas estão deitadas no sofá, mexendo no celular e falando sobre uma nova boate que vai abrir. Paloma está lá em cima, como sempre, editando vídeos.

Meu joelho latejava de dor. Havia uma maldita mancha no piso que parecia impossível de tirar, e eu me esforçava ao máximo para deixá-la imperceptível. Tudo para evitar que Paloma tivesse mais um motivo para reclamar.

Aqui dentro, as coisas continuam como sempre foram. Mas fora daqui, as coisas parecem diferentes. Mesmo que minha vida dentro de casa permaneça a mesma, sinto que lá fora estou começando a ser eu mesma, e confesso que tenho gostado disso.

Aqui, continuo sendo a Clary empregada, a Clary que mal tem vida própria. Mas lá fora... lá fora, tenho descoberto um lado de mim que gosto. Um lado que me faz sentir viva.

Quando terminei de limpar, já passava das três da tarde. Mal conseguia ficar de pé, minhas pernas e costas doíam tanto que cada movimento parecia um sacrifício.

Peguei uma roupa para tomar um banho, mas, assim que saí do quarto, ouvi Paloma discutindo com Beatriz. Elas se calaram imediatamente ao me ver, e Paloma me lançou um olhar cheio de raiva.

- O que pensa que está fazendo? - perguntou, com a voz gélida.

- Vou tomar banho, eu terminei de limpar a casa - respondi, tentando esconder o cansaço na minha voz.

Ela olhou ao redor, inspecionando cada canto da casa. Seus olhos pararam em mim, e me encolhi sob seu olhar reprovador.

- Não parece. Limpe de novo.

- Mas eu...

- Não perguntei. Estou mandando você limpar de novo!

Paloma estava irritada, mas eu sabia que a raiva dela não era necessariamente comigo. Ainda assim, eu sempre acabava pagando o preço. Beatriz parecia à beira das lágrimas, mas manteve-se calada, assim como eu. Apenas assenti com a cabeça.

Não me restava outra opção. Teria que limpar a casa toda novamente e acabar com o resto da minha tarde. Mas, no fim das contas, eu também não tinha nada melhor para fazer, certo?

Paloma passou por mim, subindo as escadas com passos pesados e rápidos, deixando-me ali com Beatriz, que parecia triste e pensativa.

- Está tudo bem? - arrisquei perguntar.

- Está - ela suspirou, visivelmente irritada. - Não se mete, bruxa.

Ela passou por mim rapidamente, subindo as escadas em direção ao quarto da Bianca. Era raro Paloma e as filhas brigarem, e quando isso acontecia, geralmente era porque as gêmeas haviam feito algo que ela desaprovava.

Terminei de limpar novamente. Não queria irritar Paloma mais do que ela já estava, então preferi não arriscar e limpei a casa toda mais uma vez.

Quando terminei, resolvi preparar o jantar. Assim, poderia tomar um banho e finalmente descansar, talvez ler um dos livros que Dani havia me indicado. Quando Paloma apareceu, fiquei apreensiva, com medo que ela me mandasse limpar a casa de novo. Eu já estava exausta, e mais uma faxina com certeza me faria desmaiar.

Mas, para minha surpresa, ela apenas se sentou à mesa, mexendo no celular, sem sequer me olhar. Ficamos em silêncio, e continuei preparando o café para elas.

- Meu irmão ligou - disse Paloma, do nada. Virei-me para ter certeza de que ela estava falando comigo, mas não vi mais ninguém na cozinha, então prestei atenção. - Ele vai vir jantar de novo. Avise as meninas.

- Está bem - foi tudo o que consegui responder.

Paloma não parecia nada bem. Hoje, ela acordou mais irritada do que o normal, até com as filhas, o que era uma total surpresa.

- Vou fazer compras, já que ele vem.

Apenas balancei a cabeça em concordância, agradecendo mentalmente por ela parecer menos irritada. Mas, ao mesmo tempo, perdi totalmente a fome. Coloquei a garrafa de café na mesa e fui para o meu quarto. Não queria ficar perto dela ou das filhas naquele momento.

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