70• ALMAS QUEBRADAS

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Clary Miller

Saí do banheiro, sentindo o vapor ainda quente contra a pele, a água escorrendo pelos meus cabelos molhados, quando o vi ali, parado na janela. Meu coração deu um salto no peito, o susto me paralisando por um instante. Levei a mão ao peito, tentando acalmar a respiração acelerada.

- Meu Deus, que susto - murmurei, a voz saindo fraca, quase sem fôlego.

- Eu não queria te assustar, sinto muito - ele sussurrou, os olhos fixos no chão. A voz dele parecia afundada em algum tipo de dor, um peso invisível que o arrastava para as sombras.

Red estava encharcado, a chuva torrencial do lado de fora havia ensopado seu cabelo, agora colado à testa. A jaqueta pesada e úmida grudava em sua pele, deixando-o com uma aparência quase espectral, como uma figura perdida entre a realidade e o pesadelo. A cada respiração, eu podia sentir o ar ao meu redor ficar mais denso, como se a dor dele contaminasse o ambiente. Ele parecia uma sombra, uma imagem distorcida pela chuva e pelo sofrimento, lutando contra lágrimas que brilhavam sob a luz fraca da luminária. A angústia em seu rosto era uma ferida aberta, difícil de se olhar.

- Aconteceu alguma coisa? - Perguntei, minha voz tremendo. Seus olhos encontraram os meus, e foi como encarar uma tempestade muito pior do que a que rugia lá fora. - Vou pegar uma toalha.

Eu me virei, mas antes que pudesse dar um passo, senti seus braços ao redor da minha cintura, fortes e desesperados. O contato me congelou, e a umidade fria de seu corpo se misturou ao calor do meu pijama. Eu devia ter recuado, mas ao invés disso, deixei que ele me segurasse. Havia algo na maneira como ele me abraçava, uma urgência que me fez perceber o quanto ele precisava daquele contato, daquele alívio temporário de um peso que parecia insuportável. Minhas costas ficaram pressionadas contra o abdômen dele, senti a roupa dele molhando a minha. Mas não me importei.

Ele inclinou a cabeça, seus lábios quase tocando minha orelha, e sussurrou com a voz rouca, quebrada:

- Só um pouco, por favor, fique assim só um pouco.

Sua respiração quente e irregular contra o meu pescoço era como um grito silencioso. A cada movimento de seu corpo tremendo contra o meu, eu sentia o desespero dele se infiltrando em mim, cada espasmo transmitindo uma dor profunda. Meu coração apertou, e uma parte de mim queria absorver aquele sofrimento, tomar para mim o peso que ele carregava. O frio que emanava dele parecia um contraste feroz com o calor do meu corpo, uma batalha de sensações que refletia a confusão e a agonia que ele tentava esconder.

Fiquei parada, sem saber o que fazer, mas deixando que ele se agarrasse a mim como a uma tábua de salvação. Eu segurei seu braço, sentindo os músculos rígidos sob a pele molhada, e então, lentamente, me virei para encará-lo.

- Vamos tirar sua roupa molhada - sugeri num sussurro, com a voz baixa e hesitante. Ele me soltou com relutância, seus olhos carregados de algo que eu não conseguia decifrar. Aproximei minhas mãos de sua jaqueta, desabotoando-a com cuidado, meus dedos tremendo ligeiramente ao senti-la deslizar por seus ombros. Ele deixou que eu a tirasse, seus movimentos eram lentos e pesados, como se cada gesto custasse um esforço inimaginável.

Eu comecei a puxar a camiseta sobre a cabeça dele, os olhos fixos em cada cicatriz que se revelava, marcas que eu não havia notado antes. Ele ajudou, mas seus movimentos estavam descoordenados, quase como se estivesse em transe. Quando desci as mãos até a calça dele, Red foi mais rápido, tirando-a junto com as botas, seus olhos ainda perdidos em algum lugar distante. Seu cabelo molhado caía sobre a testa, formando pequenos rios de água que escorriam pelo rosto, criando uma imagem melancólica e perturbadora.

Conduzi Red até a cama, o silêncio entre nós apenas quebrado pelo som da chuva batendo contra a janela. Ele se deitou sem protestar, como se estivesse exausto demais para lutar contra qualquer coisa. Quando comecei a me afastar, ele agarrou minha mão com força, me puxando de volta. Eu tropecei e caí na cama, entre ele e o colchão. O espaço apertado fazia com que nossos corpos se encontrassem, uma proximidade esmagadora, quase sufocante.

Ele ficou com o rosto próximo ao meu, tão perto que eu podia ver cada linha de dor marcada em sua expressão. Seus olhos cinza, sombrios e carregados de tristeza, refletiam um abismo tão profundo que era difícil encarar. Ficamos ali, parados, nossos olhares presos um no outro, e eu desejei que pudesse arrancar dele todo aquele sofrimento.

Red passou o braço pela minha cintura, me puxando para ainda mais perto, e o toque, antes frio, agora parecia carregar uma necessidade desesperada. Ele se mexeu um pouco, seus lábios rachados roçando a minha bochecha enquanto começava a falar, sua voz apenas um sussurro frágil.

- Quando eu era criança - ele começou, a voz quebrada, cada palavra carregada de dor - meu pai... - Ele parou, engolindo em seco, e eu podia sentir o esforço que fazia para continuar. Toquei seu queixo, a pele áspera e cheia de cicatrizes de um homem que havia lutado muito, e ele pareceu tomar fôlego. - Ele me batia, me batia tanto, todos os dias. Eu não podia fazer nada certo, não podia sequer olhar para ele sem ser castigado.

As palavras dele eram como lâminas cortando o ar, e eu senti o peito apertar, a dor dele se tornando a minha. Minhas lágrimas começaram a se formar, e cada lágrima parecia uma gota de veneno, amargando ainda mais a dor que eu já sentia.

- Ele usava a fivela do cinto - continuou, a voz baixa, como se confessar aquilo fosse abrir uma ferida ainda mais profunda - e algumas dessas tatuagens são para cobrir as marcas que nunca cicatrizaram. Ele fez coisas piores com minha mãe, e um dia, quando ele a agrediu... Eu não aguentei mais. Eu suportava tudo comigo, mas não com ela. Eu tinha apenas quinze anos quando resolvi enfrentá-lo. Eu já era conhecido como o brigão da escola, e isso quase o matou porque ele estava bêbado... Era viciado em álcool e drogas.

Uma lágrima escapou dos meus olhos e Red a limpou com um gesto quase dolorosamente gentil. O relato dele me partia por dentro, e era impensável imaginar o que ele tinha passado tão jovem. Outra lágrima rolou pelo meu rosto enquanto ele continuava, cada palavra dele um peso esmagador.

- Um dia, uma garotinha do outro lado da rua tinha acabado de perder a mãe. Naquele dia, eu estava me sentindo terrivelmente triste. Ela deixou uma tulipa na minha janela. Ela havia vindo do enterro da mãe e me viu sentado ali, triste. Ela segurava a tulipa, que apareceu na minha janela.

As memórias vieram à tona como uma onda violenta, e eu me lembrei de Red, sentado sozinho, a tristeza estampada em seu rosto. Eu havia deixado aquela tulipa na janela dele, e a psicóloga me disse que bloqueei a maior parte das memórias daquela época por causa do trauma.

- Red, eu não lembrava - falei, minha voz embargada pela emoção.

Ele sorriu brevemente, o sorriso dolorosamente belo, e passou a mão pelo meu rosto com uma ternura que parecia impossível para alguém tão machucado.

- Eu sei - ele respirou fundo, e por um momento, os olhos dele brilharam com uma intensidade que fez meu coração parar. - Eu te amo. E se isso não bastar, saiba que não consigo respirar sem você. Não consigo dormir sem você. Você está na minha cabeça dia e noite. Você me assombra como uma maldita assombração, não me deixa em paz, então não me peça para te deixar em paz! Somos almas quebradas, Clary, mas se houver um pequeno resquício de algo em mim, é todo seu. Afinal, ela sempre foi.

As palavras dele eram como um golpe, doloroso e, ao mesmo tempo, incrivelmente reconfortante. Eu o amava de uma forma que era difícil colocar em palavras, e senti uma euforia, um amor que ameaçava transbordar em lágrimas. O medo ainda estava lá, uma sombra constante, mas eu levantei a cabeça e fechei os olhos, pressionando um beijo suave contra seus lábios. Ele respondeu com a mesma ternura, segurando minha cabeça com cuidado, o beijo leve, quase tímido, como se tivéssemos medo de quebrar o momento.

Deitei novamente, ajustando meu corpo ao dele na cama apertada. Red me abraçou com força, puxando-me para mais perto, e eu deixei, sentindo a necessidade dele, o conforto que ele oferecia. Ali, na penumbra do quarto iluminado apenas pela luz fraca, encontramos um pouco de paz, um no outro.

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