7. Convite (II parte)

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Pegamos a estrada e Robert ligou o rádio do carro. De minuto em minuto eu checava o
espelho retrovisor. Marcos, muito provavelmente, poderia estar nos perseguindo. Esta idéia me deixou aflita.
- O que foi? - perguntou Robert ao meu lado, quando sondei nossa retaguarda pela décima quinta vez.
Eu devia ter disfarçado melhor.
- Só estou me assegurando de que não há ninguém atrás de nós.
- Uma bicicleta?
- Exatamente. - me entreguei.
- Está aflita porque acha que seu amigo pode estar nos perseguindo com uma bicicleta? - Robert estava rindo.
- Às vezes Marcos tende a ser cuidadoso um pouco além da conta, então não me
surpreenderia se, de repente, ele aparecesse colado no seu carro.
- Acha mesmo que ele pedala tão rápido assim? - indagou, me fazendo ver como aquilo era realmente absurdo - E se ele nos seguir, o que poderá fazer? Invadir minha casa?
Minhas aflições quanto a Marcos estar atrás de nós não duraram mais que alguns minutos, porque logo percebi que estava sentada ao lado de Robert Castro, dentro de seu carro e indo direto para sua casa.
Ah, como eu poderia me sentir aflita com qualquer outra coisa?
Robert dirigia com uma precisão incrível. Meus olhos eram traiçoeiros e não tinham noção alguma do que era passar dos limites.
Enquanto eu lutava para manter o rosto grudado na janela do carro, evitando assim o constrangimento de não conseguir evitar olhar para ele, percebi que a paisagem mudava gradativamente do lado de fora. A medida que entravamos no bairro das Laranjeiras as casas modestas e os edifícios residenciais do Botafogo foram substituídos por algumas capas de
revista de decoração.
Após alguns metros da entrada do bairro, viramos a direita, numa curva leve, e então estávamos numa estradinha de paralelepípedo, sem saída, onde tudo o que se via era, a quase cem metros a frente, uma
enorme construção na cor amarela, graciosa e imponente, que dividia espaço com as árvores ao redor.
Enquanto Robert dirigia em direção a casa amarela e quase sorridente, um pavor involuntário me dominou. Percebi o que eu estava fazendo. Eu estava indo para casa dele. Onde morava a família dele. E eu nem imaginava o que esperar disso.
E se eles não gostassem de mim? Se me achassem uma caipira sem graça? E se fossem um bando de riquinhos esnobes e nojentos?
__ Vamos? - disse Robert sorrindo enquanto desligava o motor.
Ah! Tarde demais pra pedir para ir embora?
Respirei fundo e desci do carro.
O interior da casa era amplo e calmo. Olhei ao redor, analisando o ambiente. A sala de visitas, um dos únicos cômodos que consegui ver, era reluzente. Havia no centro um jogo de sofá de couro branco, que apenas de olhar deduzia-se que era extremamente confortável; entre os sofás uma mesa de centro com tampo de vidro me chamou a atenção - seu sustentáculo era
uma estátua de bronze de uma mulher nua em posição de oração mulçumana. Uma verdadeira obra de arte. As cortinas, em tons pastéis, deixavam o ambiente ainda mais claro e outras obras de arte se espalhavam pelas paredes e estantes.
__ Pode me explicar porquê está matriculado num colégio público, e não numa dessas escolas privadas que ensinam francês e alemão desde a pré escola? - indaguei parando para encará-lo - É sério, porque a julgar por essa casa, não faz sentido você estudar na mesma escola que eu, sabia?
Robert olhou-me sorrindo.
__ Princesa Isabel é um dos melhores colégios do Rio!
__ Acho que já me disseram isso! - resmunguei sorrindo, depois voltei a olhar ao redor - É uma bela casa! - elogiei, tentando manter a atenção em uma única direção. Não queria ser indelicada e ficar olhando tudo ao mesmo tempo. - Caramba... aquilo é um Monet! - tentei conter meu entusiasmo ao me ver diante daquela tela pregada no alto de uma das paredes.
- Sim, "Impression, soleil levant". - disse Robert, e nós dois encaramos o quadro por um instante.
Um amanhecer capturado no porto, chaminés de fabricas, o mar, névoa, velas de barcos e um sol nascendo ao fundo. A tela em si não parece grande coisa e a primeira vista é bem provável que se pense que foi pintada sem vontade, porém basta segurar o olhar no sol por alguns minutos para sentir a paixão de Monet ao criar tal cenário. O nascer do sol, principalmente
sobre o mar, sempre foi um dos instantes de maior beleza para mim.
__ É lindo demais! - murmurei.
__ Sim, mas, pelo o que andei vendo outro dia, não sei se você se encaixa bem no
Impressionismo.
__ Bom, prefiro pintar entre quatro paredes, é verdade. Mas gosto dessa coisa de captar a
primeira impressão deixada pela luz do sol.
__ Isso quer dizer que gosta de Monet?
__ Ele não é meu pintor favorito, mas não posso negar que grande parte de suas obras me fascinam e, se não fosse por ele, eu jamais entenderia o Impressionismo. Essa tela, por exemplo, é sublime, é quase real, é... linda demais!
__ Mas não se iluda, esta não é a original. - destacou Robert, como um alerta.
__ Sei que não. - garanti - A original está no museu Marmottan, em Paris. Mas mesmo assim, é uma representação perfeita.
Robert assentiu enquanto seguíamos pela sala.
O silêncio ali dentro da casa parecia o de uma igreja numa manhã de segunda-feira. O que me fez ficar tensa.
- Parece meio vazio aqui! - comentei casualmente, apavorada com a possibilidade de esbarrar com algum membro da família.
- Meu tio está na concessionária, e minha tia, provavelmente, na casa de alguma amiga com minha irmã. - explicou ele indiferente.
Então estávamos... sozinhos?
Senti-me estranha, sem saber por que de repente tremia toda por dentro.
Respirei fundo e continuei com os olhos atentos a cada detalhe, da forma mais discreta que pude encontrar para fazer isso.
- Você tem uma casa realmente muito bonita! - repeti o elogio, incapaz de pensar em algo mais sensato para dizer.
- Bom, na verdade não moro aqui. - disse Robert, andando para a porta dos fundos da
cozinha.
Eu o segui.
- Não?
Saímos num imenso jardim nos fundos.
- Moro na casa da piscina! - respondeu, apontando para a casa que ficava há alguns metros dali.
Caminhamos até lá, passando pelos canteiros bem cuidados de lilases, rosas,
bromélias, e uma variedade de outras flores que eu não conhecia pelo nome. Minha mãe
ficaria encantada com o cuidado e a beleza desse jardim.
- Bom, tecnicamente, esta é minha casa. - anunciou Robert, quando chegamos a casa da piscina.
Uma imensa porta de vidro dava acesso ao interior do ambiente decorado no mesmo estilo da casa principal: cortinas de pano fino, tapetes felpudos, obras de arte decorando as paredes e a estante.
- Ainda assim, é uma casa bem bonita. - insisti no elogio.
Robert meneou a cabeça, devia ouvir isso sempre que alguém entrava. Se é que alguém entrava ali.
__ Outro Monet? - perguntei, indicando o quadro na parede a nossa direita. - Aposto que também não é original! - brinquei, fingindo repulsa.
__ Se fosse não estaria mais aqui! - nós dois rimos de sua afirmação. Depois Robert encarou o quadro por alguns segundos - "Céu de Baunilha", é incrível como a efemeridade da luz do sol sobre uma paisagem é capaz de alterar tão rapidamente nossa perspectiva da realidade, não
é? Tudo muda tão depressa como se nem mesmo o "para sempre" fosse suficiente.- ele soltou um suspiro pesado, quase como se estivesse cansado demais, depois abanou a cabeça e olhou para mim. - Certo! Agora venha, vou te mostrar a biblioteca.
- Espere aí, você tem uma biblioteca em casa? - minha voz era de deboche.
- Não é grande coisa, mas pode servir para o nosso trabalho. - eu ri com a depreciação em sua voz, enquanto o seguia.
Viramos a esquerda num corredor estreito, onde havia duas portas fechadas.
- Aqui estamos. - disse Robert, abrindo uma delas."A outra deve ser o quarto dele!", pensei involuntariamente.
- Nossa! - exclamei surpresa, entrando no cômodo. Aquela era uma biblioteca particular invejável. - Realmente, não é grande coisa! - debochei.
Ele riu.
- Eu definitivamente não sairia de casa para nada se tivesse uma biblioteca como essa! - comentei, seguindo para uma das estantes de livros, passando os olhos em cada título.
- Não precisa sair daqui... se não quiser! - disse ele. Virei-me para encará-lo, mas Robert mantinha os olhos nos livros enfileirados em outra estante, por isso fiquei sem saber o que exatamente aquelas palavras queriam dizer.
Abanei a cabeça para me livrar de suposições otimistas demais e continuei lendo os títulos de cada livro.
- Minha mãe costumava ler para mim toda noite quando eu era pequena - comentei
espontaneamente - e quando aprendi a ler, ela me dava livros em meu aniversário. - senti uma dor no coração ao me lembrar da época em que eu sabia o que era ter uma mãe.
Forcei minha atenção em não me lembrar de nada que me fizesse sofrer. Definitivamente eu não devia ter me lembrado disso.
- Tem alguma preferência de gênero... para o trabalho? - perguntou Robert, como se
percebesse meu abalo, e quisesse me ajudar, mudando completamente de assunto. Fiquei
agradecida por isso.
- Bom, na verdade não!
- Algum autor em especial?
- Também não!
- Prefere trabalhar com o contemporâneo ou os clássicos do passado?
- Hã, acho que tenho uma quedinha pelos clássicos! - confessei.
- Posso te fazer uma pergunta? - disse ele, depois de uma breve pausa.
Eu o encarei.
- Já percebeu que você me fez varias perguntas? Por acaso está competindo com a Rainha de Sabá?
Ele riu, balançando a cabeça com minha comparação.
- E você já percebeu que é assim que as pessoas conversam?
- E você já percebeu que isso só seria uma conversa se eu também lhe fizesse perguntas, mas que, na verdade, isso é um interrogatório?
Robert riu novamente.
- Tudo bem! - disse ele, encaminhando-se para uma estante de madeira do outro lado do cômodo, e voltando em seguida segurando algo com as duas mãos.
- Um tabuleiro de damas? - exclamei.
- Exatamente! - respondeu ele, com um brilho intrigante nos olhos.
- Esse jogo não é para... crianças? - provoquei - Não seria mais adequado um tabuleiro de xadrez?
- Sabe jogar? - disparou ele, ignorando minhas palavras.
- Acabei de dizer que é um jogo para crianças. Está duvidando da minha capacidade mental ou é impressão minha?
- Se você diz que sabe... - ele deu de ombros e riu.
- Mas afinal, pra que esse tabuleiro agora? - indaguei sentando no tapete, diante da mesa de centro de madeira, imitando seu movimento.
- Você reclamou que te faço muitas perguntas e que só seria uma conversa se você também me fizesse perguntas, certo?
Concordei com a cabeça. Ele continuou.
-- Então, vamos jogar uma partida de damas. A cada peça que você ganhar terá direito de me fazer uma pergunta. Da mesma forma, a cada peça que eu ganhar terei direito a uma pergunta. E aí, o que acha, parece justo pra você?
- Não. - retruquei - Parece loucura. É assim que conversa com as pessoas que vem na sua casa?
- Não, porque não trago outras pessoas na minha casa. - "por que será que eu já imaginava isso?" - Vai querer jogar ou não? - perguntou ele, com um sorriso iluminado e olhos encantadores.
Como eu poderia negar?
- Acho que não tenho escolha se eu quiser tirar alguma coisa de você, não é?
- Ótimo. - ele pareceu satisfeito. - Eu fico com as pedras pretas, você com as brancas, e, por cavalheirismo, pode começar.
- Auto lá! - eu disse, o dedo indicador em riste.
- O que foi? - perguntou ele alarmado.
- Não pode escolher as peças! - protestei.
- E por que não?
- O tabuleiro é seu, certamente escolherá as pedras que te dão mais sorte.
- Sorte? - ele riu. - Quem precisa de sorte em um jogo para criança?
- Então não se importará que eu fique com as pretas, você com as brancas, e que eu recuse seu ato de cavalheirismo e te deixe começar, não é?
Robert meneou a cabeça, analisou por uma instante minha expressão e então, em silêncio, começou a organizar as peças brancas no tabuleiro. Também organizei minhas peças em silêncio. Eu simplesmente não conseguia pensar em nada além de que estava sentada de frente pra ele, prestes a iniciar um jogo de damas com perguntas e respostas.
Algo dentro de mim gritava de felicidade e de puro medo. O que aquele momento queria
dizer, o que significava tudo aquilo?

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