37. Escuridão

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Sucumbi à inconsciência, mergulhada no vazio, minha alma afundando cada vez mais no negrume sólido que me envolvia, que obliterava a pequena e desconsolada chama de vida existente em mim; a perene chama que lutava para manter-se acesa, como o dançar melancólico da chama de uma vela sobre o túmulo.

Fiquei inerte, à deriva em meio as trevas. Uma solidão mágica e profunda corroendo meu espírito, devorando-o como um canibal faminto... Mas eu estava tranquila, eu estava à vontade com minha solidão. E poder senti-la pulsante em meu peito exânime era estranhamente bom. Como estar em uma cama macia, sob cobertas quentes em uma noite de inverno. Era tranquilo, fácil, e, por que não dizer também, doce. Eu
queria ficar na escuridão para sempre, alimentando minha nova e prodigiosa solidão. Não desejava ver a luz do sol outra vez. A escuridão me manteria, a escuridão era agora só o que eu tinha.

Sempre pensei que depois que você fechava os olhos pela última vez, você ja estava morto e pronto!
Mas não, o caminho até a morte é árduo, doloroso e apavorante.

Cambaleei pelos precipícios do medo e da dor, arrastei-me aos soluços pelas encostas do desespero, pelos penhascos de inglória paz vesânica. Resisti ao temporal de delírios, ao vendaval de perturbadoras alucinações, e sem me dar conta, perdida em meus próprios caminhos, em meus próprios passos errantes, cheguei aos imensos portões de ouro, que guardam o Vale das Sombras da Morte.
Contemplei, perplexa e maravilhada, aquele lindo vale de ossos secos, convidativo e solitário.
Sondei, pelas frestas de grade dourada, seus prados desérticos. Compadeci-me dos gritos e do pranto, do lamento e do ranger de dentes que ecoavam por aquela região inóspita. Sorri para a morte que se escondia ali dentro, enfim havíamos nos encontrado... Mas quando ela me chamou, com sua voz mansa e suave, estendendo-me as mãozinhas sensíveis e cansadas, abrindo as imensas grades douradas, liberando minha entrada no mundo dos mortos... eu me virei e parti.
Não entrei.
Eu não entrei.

Como poderia entrar? Como poderia me entregar? Quando existia ainda no mundo a beleza aterradora de um anjo como Robert Castro?
Não. Eu ainda não estava pronta morrer. Eu precisava voltar para ele...

Prendi-me às minhas melhores lembranças felizes, porque apenas assim seria capaz de ver o impossível se romper. Apenas assim saberia como encontrar o caminho de volta para o mundo dos vivos.

A tempestade, as palavras, o sorriso, os lábios, seus olhos... a voz de muitas águas, o perfume que enche a Terra, e a luz, e o sol, e o vento, e o mar, e a vida, e tudo mais que existia de verdadeiro e grandioso no mundo. Meu ar, meu chão. Minha alma e meu coração eram feitos dele, para ele, e por ele. E ainda que nada mais funcionasse, eu sabia que precisava me manter viva. Essa era minha única certeza agora, porque a imensidão daquilo que pulsava com fúria, desejo, esperança e fé dentro de mim, era a única coisa pela qual valia a pena morrer,
mas era também a unica coisa pela qual valia a pena continuar vivendo.

Um anjo havia desafiado seus próprios limites, quebrado todas as regras, feito o que nenhum outro anjo fora capaz de fazer, apenas para ficar comigo. Um anjo havia me amado...
Não.
Um anjo me amava. E eu não o deixaria. Eu não desistiria.

Lutei contra o torpor para abrir os olhos, mas as pálpebras pesavam uma tonelada e pareciam estar coladas com alguma super-cola. Tentei me mexer, mas havia dor em toda parte. Eu estava apavorada, tinha plena consciência de que possuía um corpo, mas não conseguia encontrar uma maneira de ter algum controle sobre ele. Concentrei-me para manter a calma.
Do que me adiantaria um surto de histeria agora?
Depois de alguns minutos colocando e expulsando o ar de meus pulmões, ficou mais fácil não entrar em pânico. Tentei abrir os olhos novamente e dessa vez obtive êxito.

A claridade me cegou, meus olhos arderam e se fecharam antes que eu fosse capaz de reconhecer qualquer coisa. Apertei as pálpebras por um instante e então resolvi tentar outra vez, com mais cuidado.
Um céu azul coberto de nuvens brancas estava acima de mim.
"Será que eu morri?"
Observei aquele céu procurando uma resposta. Era lindo, reconfortante, meio irreal e muito familiar. Eu sentia uma brisa batendo em meu rosto, fresca e branda. Continuei procurando por uma resposta. Havia alguma coisa errada com aquele céu ou talvez com aquela brisa.
Percebi que o ar fresco que me tocava era um jato preciso que vinha de uma única direção e não de todos os lados. Pendi a cabeça para a direita, na direção do vento, uma janela enorme estava aberta, e a brisa entrava calna, balançando as cortinas de renda.
"Não, eu não estou morta." Constatei aliviada.
Corri os olhos pelo ambiente, agora reconhecendo o grande guarda-roupa branco de madeira, as paredes cobertas por florzinhas delicadas, a penteadeira cor-de-rosa e... sentado numa poltrona... meu anjo da guarda.
Meu coração se perdeu em algum lugar dentro de mim, já não me lembrava da dor de um instante atrás, não me lembrava de nada, porque ele estava ali.

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