17. Choque

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- Não quero te ver chorando! - sussurrou Robert com voz rouca, aproximando-se ainda mais de mim, estendendo a mão direita e interrompendo com as costas do indicador o percurso de uma lágrima que começava a rolar salgada e quente pelo meu rosto.
Era a primeira vez que ele me tocava naquele dia. E no instante em que seu dedo encostou minha pele molhada, fui tomada por uma dor que não sei se sou capaz de explicar ou descrever fielmente. Senti a pele do meu rosto, onde o dedo dele havia tocado, queimando como se eu tivesse sido atingida por algum objeto em chamas, e num segundo a dor se espalhou por toda parte, como se bilhões de mini-bombas explodissem dentro de cada molécula do meu corpo, causando-me um tremor interno incontrolável. Era como se eu estivesse tomando um choque elétrico.
- Me desculpe! - disse Robert perturbado, afastando instantaneamente a mão de meu rosto.
Era tarde demais.
Como uma epiléptica descontrolada, eu me debati compulsivamente no banco do carro. Meus braços e pernas tremiam e queimavam terrivelmente. Eu quis gritar, talvez gritando a dor diminuísse, mas não encontrei minha voz, não encontrei uma maneira de fazer com que qualquer som saísse por minha garganta. Isso me deixou ainda mais apavorada.
O que estava havendo?

Meu sangue queimava, enquanto corria com velocidade fora do comum por minhas veias. Era como se lavas de um vulcão recém-desperto pulsassem em mim, remetendo-me àquela sensação incompreensível e torturante. Apenas meus olhos pareciam manter-se os mesmos de sempre, enxergando perfeitamente a imagem assustada de Robert ao meu lado, olhando-me estagnado. Como se ele próprio estivesse sentindo a mesma dor que eu. Seus lábios estavam trêmulos, e pareciam repetir incansavelmente "Me desculpe, me desculpe", Eu quis pedir a Robert que fizesse aquilo parar, porque, de alguma forma, eu sabia que aquilo tinha acontecido quando ele tocou meu rosto. Então ele devia saber o que fazer pra acabar com tudo, não é? Mas eu não encontrava minha voz. Como poderia pedir ajuda? Não, eu não poderia.
Suportei então, a tortura, agarrada com as unhas ao banco do jipe, os dentes trincados para diminuir a dor. Não duraria para sempre. Em algum momento chegaria ao fim, ou assim eu esperava. Assim eu desejava.
E chegou. Lentamente senti as ondas elétricas diminuirem, meu corpo ainda queimava, mas agora não parecia mais um choque, era mais como estar afundando num lago de águas quentes, numa tarde fria. A sensação era quase boa. Pouco a pouco, senti que me tornava capaz de retomar o controle de meus próprios sentidos. Pisquei algumas vezes, para ter a certeza de que estava novamente no comando.
Consegui controlar meus próprios pensamentos, apesar de não saber ao certo em quê deveria pensar.
Respirei fundo, me ajeitando no banco, percebendo que a dor diminuia cada vez mais.
Então me virei para o garoto sentado ao meu lado. Mas antes que eu pudesse dizer alguma coisa, antes que eu pudesse pensar em fazer qualquer tipo de questionamento, Robert inclinou-se para mim, encarando-me profundamente, com olhos encolerizados. Vi que o azul de seus olhos estava quase inexistente, o cinza tomara conta de tudo deixando o seu olhar quase que irreconhecível.
- Você está bem? - perguntou ele, a voz coberta de culpa, o rosto desolado.
- O que... o que foi isso? - indaguei sem ar, tentando entender a imensidão de seus olhos indescritíveis.
Robert manteve os olhos nos meus, analisando-me em silencio. Eu estava bem, ou quase, e ele percebeu isso. Seu rosto suavizou-se por um segundo, antes de voltar à mesma mascara culpada de antes.
- É melhor você entrar! - grunhiu tenso, as mandíbulas contraídas.
- Não! - murmurei. Eu não queria entrar, queria respostas, queria entender...
Robert abriu a porta do carro e desceu. Não era do feitio dele fugir assim. Desci do carro também, dando a volta rapidamente no veículo, e parando diante dele na calçada.
- O que aconteceu comigo? - insisti.
Seus olhos eram relutantes, evitando os meus. Não eram os olhos que eu conhecia. Uma estranha sensação de que aquele angustiante choque, realmente, havia sido provocado pelo toque de Robert tomou conta de mim numa proporção fora do normal. Instintivamente estendi a mão para tocar seu braço esquerdo, como que para tirar a prova de minha teoria insana. E, como que para provar que eu não estava enganada, Robert deu um passo atrás, num movimento reflexo rápido demais.
- Melhor não fazer isso! - alertou ele, com dor na voz, mas seu rosto era rigorosamente
severo, como um pai disciplinando a filha desobediente.
Então eu estava certa? Robert havia me provocado aquela estranha sensação?
- Acho que preciso de alguma explicação! - falei com firmeza, esperando que ele entendesse que eu merecia alguma resposta.
- É... realmente melhor você entrar agora. - murmurou ele novamente, a cabeça baixa, fitando os próprios pés. - Você... precisa descansar...
- Pare! - não aguentei conter o desespero - Olhe pra mim, Robert. - eu disse num pedido
suplicante. Ele ergueu seus olhos incrivelmente cinzas e me olhou - Eu preciso saber o que houve. Eu... você precisa... me explicar... se você tem a resposta... por favor... - murmurei.
Robert me encarou tão sério, os olhos tão sombrios, que senti um suor gelado escorrendo por minha espinha.
- Algumas coisas são melhores quando não são ditas, Heloísi. - foi a resposta dele, a voz doce e perturbada. Senti meu coração se apertar dentro do peito. - Acho que é melhor esquecer o que aconteceu. Será mais fácil assim. Vamos fingir que este momento não passou de um sonho ruim. Vamos enterrar essa história, tudo bem?
Fiquei levemente agradecida por ele, pelo menos, não ter tentado negar as evidências, por não tentar me convencer de que eu estava ficando maluca ou qualquer coisa do tipo.
- Não, eu não vou esquecer, e também não quero enterrar coisa alguma. E mesmo que eu quisesse, você acredita mesmo que eu seria capaz? - minha voz era um insulto. - Não, Robert, não dá pra esquecer o que acabou de acontecer. Não dá pra fingir que nada aconteceu, e... a menos que você
me diga a verdade... não posso continuar sendo sua... amiga - eu vacilei terrivelmente na última parte. - Não sei se posso manter qualquer tipo de relação com uma pessoa que esconde a verdade de mim.
Robert me olhou com uma profunda dor inundando o cinza de seus olhos. E percebi que a verdade devia ser muito mais do que eu podia imaginar, pois Robert me dizia, com aqueles olhos, o quanto sentia por perder minha amizade.
Tendo plena certeza de que ele não pretendia me dar qualquer tipo de explicação, respirei fundo, encarando a verdade aterradora e, sem dizer nenhuma palavra, corri em direção à porta de entrada do prédio, sem olhar para trás.
Ouvi a porta do jipe bater, estrondosa, e os pneus arranharem o asfalto quando Robert
arrancou com violência. Corri para o elevador o mais rápido que minhas pernas me permitiram, estava ocupado. Não suportei esperar, então me arrastei escada acima, até o quinto andar, e quando me preparava para abrir a porta do apartamento, Marcos apareceu no
corredor. "Que senso de oportunidade", pensei com ironia.
- O que aconteceu? - perguntou alarmado, vindo em minha direção. Eu sabia que estava num estado deprimente e visível de perturbação. Os olhos arregalados do meu amigo comprovavam isso. Parecia até, pela forma como ele me olhava, que eu estava toda ensanguentada e com uma faca atravessada na cabeça. Seria essa a imagem que veriam de mim se meu estado de espírito se materializasse.
Respirei fundo.
- Nada! - respondi, sentindo um iceberg crescendo em minha garganta.
- Tem certeza, Ísi... - Marcos era insistente.
Seria uma tortura ter que ficar alí tentando explicar a ele o que não tinha explicação nem mesmo para mim.
- Posso te pedir uma coisa? - interrompi, antes que ele me fizesse mais perguntas. Marcos assentiu com a cabeça. - Pode passar pra me chamar amanhã... para irmos para o colégio juntos?
Seus olhos estreitaram-se para mim.
- Mas, você não estava pegando carona com...
- Pode ou não passar pra me chamar?
- Claro! - garantiu, questionando mentalmente meus motivos.
- Obrigada, então... te vejo amanhã!
Eu estava entrando, quando ele me chamou de volta. Olhei para ele, mostrando o quanto eu não estava a fim de conversar naquele momento.
Marcos chegou bem próximo de mim e
me olhou por um segundo, analisando-me com cuidado.
- Que marca é essa no seu rosto? - perguntou, tocando minha bochecha, exatamente onde Robert havia tocado para enxugar a lágrima, antes de...
Foi a vez de meus olhos se arregalarem. O que haveria em meu rosto além da leve sensação de formigamento que eu ainda  sentia?
- Até amanhã, Marcos. - eu disse com rispidez desnecessária, apenas para fugir de sua presença e de sua pergunta sem resposta.
Corri para o espelho do banheiro. Vi uma garota, com olhos assustados e confusos. Aqueles não eram meus olhos, aquele quase não era meu rosto. O que mais me chamou atenção, naquele reflexo distorcido da minha imagem, foi uma marca do lado esquerdo do rosto, avermelhada e totalmente superficial. Era muito fina, mais fina que o dedo indicador que estivera ali, e seguia uma linha reta de menos de três centímetros. Toquei-a de leve. A garota parecida comigo imitou meu movimento.
O que significava aquilo? Por que Robert havia me...? Sei lá o que ele havia feito comigo. Eu só queria saber por quê havia feito.
Fui até cozinha e peguei um pouco de gelo para o meu rosto. O que eu diria a Lena? Talvez se eu evitasse que ela me visse durante alguns dias, não precisaria inventar nenhuma história para me justificar. "Não seria difícil mantê-la longe de mim", pensei com alívio, Lena vivia tão ocupada ultimamente.
Naquela noite eu disse que não queria jantar, inventei lições de casa extras para ficar presa no quarto e não precisar comer. Levei algumas barras de cereal para o quarto comigo, caso sentisse fome noturna. Foi muito fácil, eu sabia que não poderia evitar o jantar todas as noites, mas evitaria enquanto pudesse.
Dormi, como há muito tempo eu não dormia, tão profundamente, que acordei na mesma posição em que havia me deitado.
Quando saí do quarto, Lena já havia saído para o hospital, e isso foi realmente um alívio.
Marcos bateu em minha porta e caprichei na cara de mau humor, para que ele não quisesse conversar. Acho que funcionou.
Na escola, Beatriz pareceu-me feliz ao ver que eu não havia chegado de carro com Robert Castro, seu sorriso, enquanto eu trancava minha bicicleta, era de completa alegria.
Ela quis saber que marca era aquela em meu rosto e, obviamente, dei-lhe uma desculpa idiota.
__ Acidente com um baby liss. Acho que não tenho coordenação motora suficiente para usar esse tipo de aparelho. - resmunguei, enquanto seguíamos para sala. Beatriz não se aguentou de tanto rir.
Fiquei aliviada por ela acreditar tão facilmente. Eu havia dado a mesma desculpa a Marcos, quando ele me forçou a olhar para ele, ainda na porta do apartamento, aquela manhã, e disse que estava "esperando por uma resposta", falei sobre minha falta de coordenação, mas ele não pareceu engolir minha história.

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