Despedidas

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"Nada une mais duas pessoas do que uma separação." - Guillermo Cabrera Infante.

- É uma pena que você tenha que partir!
- É, - suspirei - é mesmo uma pena! - concordei desanimada, sem conseguir encarar os olhos miúdos e quase verdes dela.
O dia caía lentamente, como se adivinhasse o quanto eu temia o seu fim. O céu já perdia o azul para o avermelhado do entardecer, o vento soprava gelado, criando suaves marolas no leito pedregoso do rio, e nossos cavalos pastavam livres alguns metros dalí.
Em breve tudo isso ficaria para trás, eu trocaria minha cidadezinha, Campos do Jordão, aconchegante e sensível, no interior de São Paulo, por Rio de Janeiro, capital.
Há muito Campos do Jordão havia deixado de ser meu lugar preferido no mundo - não tenho nenhum lugar preferido agora - mas eu ainda gostava de viver aqui. Gostava da tranquilidade, na baixa temporada turística, da arquitetura das pousadas e restaurantes com seus tetos altos e charmosos, da vida típica que se tem na montanha. Eu, definitivamente, não queria partir. Mas ficar não era uma opção.
Ignorei o nó em minha garganta, obrigando as lágrimas a esperarem até o momento em que eu estivesse sozinha. Eu jamais me perdoaria se tivesse um acesso de choro na frente de Sara, ela já estava sofrendo o suficiente sem isso.
Balancei os pés na correnteza fraca do rio, era tão reconfortante. Eu sentiria falta disso. Sara estava sentada em uma pedra ao meu lado, seus pés também tocavam a água. Ela era minha melhor amiga, e eu com certeza sentiria falta dela. Falta de sua risada que mais parecia um soluço, da forma como costumava me cutucar com o cotovelo, falta de seus cabelos bagunçados, descendo até a cintura em espirais revoltadas - eu adorava aquele tom vermelho-alaranjado por composição genética, que Sara insistia em dizer que era "a pior cor do mundo", seria a cor que eu levaria comigo sempre que quisesse me lembrar dela.
- Quer saber? - disse ela baixinho, quebrando de repente o silêncio - Vai ser bom você morar em outro estado, - ela falava com cuidado, e também não ousava me olhar - pelo menos terei um lugar diferente para passar as férias!
Essa foi a desculpa que Sara encontrou para tentar nos convencer de que tudo ficaria bem quando eu estivesse longe o bastante para não poder segurar sua mão toda vez que ela precisasse aplicar insulina; quando a distância fosse grande o bastante para que a gente não pudesse rir até tarde da noite, como quando eu dormia em sua casa, ou rir aos cochichos quando uma de nós desse a resposta errada durante a aula de matemática. Essa foi a melhor desculpa que ela encontrou para fingir que nada mudaria quando tudo estivesse mudado.
Grande mentira.
Nada mais seria como antes, porque dalí em diante estaríamos separadas
Eu sabia que minha vida no Rio não seria fácil, isso era inquestionável, mas a vida que Sara teria depois que eu partisse tinha potencial o bastante para ser bem pior.
Nós duas nunca fomos muito populares no Colégio Cassiano Ricardo, nunca participamos dos eventos estudantis, nem nada do tipo. Não porque éramos excluídas ou coisa assim, mas simplesmente porque éramos felizes sendo só nós duas. Não precisávamos do resto deles para nos divertir, conversar ou dividir nossos segredos. Era apenas Sara e eu. E isso era o suficiente. Mas agora eu estava indo embora, e ela ficaria para trás.
Sozinha.
Nunca tive problemas em ficar sozinha, na verdade eu até gosto. Gosto do silêncio, gosto de poder organizar meus pensamentos, de poder estar comigo mesma. Detesto ter que "interagir" com o meio. Detesto a "obrigação" de conviver com outras pessoas. Talvez por isso eu tenha apenas uma única amiga. A única que conseguiu mergulhar mais fundo na minha "superficialidade social".
Sara é um pouco diferente de mim, mas não muito. Ela gosta de falar, de dançar, gosta de movimento. Ela é dinâmica e espirituosa, engraçada e muito direta - estas são algumas das características diferentes em nós - , mas Sara leva um tempinho até mostrar este seu lado descontraído e irreverente, antes disso é um poço profundo de reserva e ponderação. Talvez por isso ela também tenha apenas uma única amiga.
A amiga que a estava abandonando. E, ao contrário de mim, Sara nunca foi muito boa pra ficar sozinha. Ela precisaria de alguém que lhe emprestasse canetas, livros e anotações, que a lembrasse as datas para entrega dos trabalhos, alguém que colocasse seu nome nos trabalhos que ela se esqueceu de fazer. Sara precisaria de alguém que a escutasse, que risse de suas piadas, que discordasse de suas teorias futuristas, que também adorasse suas músicas prediletas e que preferisse as balas de goma vermelhas para que ela pudesse ficar com todas as verdes... Sara precisaria... de mim.
- Vou me virar sem você aqui, acredite!- disse ela, com um vestígio de incerteza na voz, como se pudesse ler meus pensamentos.
Às vezes a conexão entre Sara e eu era tão bizarra que seria assustadora se não fosse perfeita.
Não encontrei resposta para sua afirmação e as palavras dela ficaram pairando no ar por um longo tempo, quase como uma piada mal contada esperando para ser entendida.
O vento soprou forte, balançando todas as folhas das Araucárias centenárias. Nosso tempo estava acabando. Nossas últimas horas juntas, a última conversa séria, o último fim de tarde junto ao rio...
Fiquei feliz, de certa forma, por estar conseguindo controlar o choro tão bem, nunca fui muito boa nessa coisa de controlar as emoções. Geralmente meus olhos ficavam afogados antes mesmo que eu pudesse identificar o motivo pelo qual estava chorando.
Há alguns metros dali, acima do rio, Estrela relinchou alto, enquanto mergulhava as patas dianteiras na água. Estrela é égua Andaluz mais linda do mundo, e a mais divertida também, mesmo tendo quase nove anos de idade às vezes se comporta como um potrinho atrapalhado, e isso na maioria das vezes é bem engraçado. Seu pelo caramelo, curto e brilhante, a crina bem alinhada, a mancha branca no meio da cabeça... tudo faz de Estrela a égua mais perfeita de todas. Mas ela não é meu animal preferido.
Do outro lado do rio, lá estava ele. Sozinho, em silêncio, a cabeça baixa, as orelhas em alerta, como se prestasse atenção em minha conversa com Sara, os olhos negros e amigáveis, o pelo grosso e resistente cobrindo seu corpo numa mistura incrível de branco e preto. Sol, foi assim que eu o chamei quando o ganhei de presente em meu oitavo aniversário, porque seu pelo brilhava sob qualquer mínimo reflexo de luz, ofuscando a beleza de qualquer outro cavalo que estivesse por perto. O animal mais incrível e adorável. "Um verdadeiro Campolina pampa de preto" que eu estava prestes a deixar para trás.
Por sorte eu sabia que Sara cuidaria dele para mim, afinal ela já vinha me ajudando a fazer isso nos últimos anos. Foi muita bondade dos pais dela deixarem que meu cavalo morasse no estábulo do rancho deles, junto com Estrela e os outros seis cavalos da pequena hípica. Saber que meu Sol estaria em tão boas mãos era um alívio, uma coisa a menos para me deixar angustiada.
- Ele também sentirá sua falta! - disse Sara com doçura. Virei-me para encará-la, mas ela ainda não estava pronta para me olhar nos olhos. Permanecia com o olhar em meu cavalo, como se olhar para ele doesse menos do que olhar para mim.
_ Posso te fazer uma pergunta? – disparou ela de repente, ainda sem olhar na minha direção.
Encarei-a por um momento, Sara
nunca pedia permissão para fazer uma pergunta, a não ser...
– Sei que detesta tocar neste assunto! – completou ela rapidamente, diante de meu olhar curiosamente indagador. Como eu
disse, Sara nunca pedia permissão para me fazer uma pergunta, a não ser que fosse um assunto que eu detestasse tocar.
  Respirei fundo.
_ O que quer saber? – murmurei infeliz, eu já sabia qual seria sua pergunta. E também já sabia qual seria minha resposta. Estranhamente seria a mesma resposta dos últimos três anos.
Esperei por um segundo, enquanto Sara hesitava, buscando as palavras certas.
_ Tudo bem... – ela finalmente me encarou, parecia apreensiva. Esperei – Quero saber se... você continua tendo... aqueles sonhos? – perguntou ela por fim, curiosidade e preocupação impregnadas em sua voz.
"Eu sabia."
O que eu deveria responder?
Aqueles sonhos a que ela estava se referindo, era, na verdade, aquele sonho. Um único sonho que se repetia em minha mente nos últimos quase três anos de minha vida. Um único sonho que perseguira-me estranha e inexplicavelmente durante incontáveis noites.
Já ouvi dizer que pode ser bastante comum uma pessoa ter um mesmo sonho duas ou até mesmo três vezes na vida, mas ter o mesmo sonho durante quase três anos seguidos...?
  Ás vezes fico três ou quatro meses sem sonhar com coisa alguma, é verdade, mas quando sonho é sempre com a mesma coisa, nada muda. Nunca.
Em todos eles estou sempre buscando desesperadamente um rosto, sempre meio que correndo atrás de alguém – um garoto para ser mais exata –, por entre uma pequena multidão que dificulta minha passagem. No sonho o garoto caminha apressado, como se precisasse chegar a
algum lugar, ele não parece estar fugindo de mim – talvez nem saiba que eu o estou
perseguindo. Ele caminha cada vez para mais longe, enquanto busco desesperadamente romper a enxurrada de pessoas que atravessa meu caminho formando uma muralha entre nós. Mas não
importa o quanto eu corra, nunca consigo alcançá-lo, e para meu pavor, também não tenho voz para chamar por ele. Então passo o sonho todo correndo, caindo, levantando e buscando incansavelmente alcança-lo. A pior parte é quando, depois de muito esforço, finalmente estou a menos de um metro do garoto, a mão estendida para tocar-lhe o ombro, esperando que ele se vire para mim, mas então... neste ponto eu acordo. Sempre acordo. E nunca consigo ver seu rosto.
É frustrante!
É atordoante!
É inacreditável!
Eu nem ao menos sei por que estou atrás do tal garoto, apenas sinto que ele é... importante para mim.
Contei á Sara sobre o sonho depois da décima noite de repetição, e quando, pela décima vez ela me fez a mesma pergunta: “Com o que sonhou esta noite?”, eu simplesmente a proibi de tocar neste assunto, não queria que a história vazasse, por acidente, e eu tivesse que responder
a uma centena de perguntas dos meus pais, ou procurar um psicólogo, tomar remédios ou qualquer coisa do tipo. É claro que minha amiga sempre dava um jeitinho de burlar minha proibição, e tentar colher alguma inflamação sobre com o que eu andava sonhando.
Sara ainda encarava-me preocupada e curiosa, os olhos estreitos esperando por uma resposta que ela já sabia.
  Respirei fundo novamente.
_ Sim! – confessei desviando os olhos para a correnteza leve do rio. – Continuo tendo aqueles sonhos! – completei amargamente.     Foi a vez de Sara respirar fundo.
_ Sabe, eu... eu sinto que isso, essa sua mudança para outra cidade, de alguma forma será uma coisa boa... é serio, eu posso sentir, é como se de alguma forma essa mudança tivesse que acontecer, como se fosse uma coisa inevitável entende? Mais cedo ou mais tarde você teria que
partir, você acabaria partindo... você verá... eu sei... eu sinto. – sua voz era quase profética – Talvez longe daqui, esses sonhos enfim te deixem em paz! – completou esperançosa.
Ficamos em silêncio observando as pequenas marolas do rio. Eu espera que Sara estivesse certa.
Ela suspirou profundamente ao meu lado, e começou a enrolar uma mecha de cabelo com o dedo indicador. Sara fazia isso quando estava nervosa ou inquieta, era uma mania que tinha desde... sempre. Foi então que percebi o quanto eu sentiria falta dessas pequenas coisas, e, de repente, aquela "falta torturante", que sempre fez parte de mim, pareceu imensamente maior.
Eu nunca havia faldo desta "falta" à ninguém. Nem mesmo para a garota diante de mim, enrolando o cabelo no indicador e se esforçando, como eu, para não cair no choro. Eu nunca quis preocupá-la com minhas tolices sentimentais... Mas, por um bom tempo, esta seria nossa ultima conversa séria frente à frente, então...
- Sara...
- Sim?
Hesitei por um instante, mas tomei coragem e fui em frente.
- Já sentiu falta de algo que não conseguia saber o que era? - perguntei com indiferença, apenas para esconder a necessidade que eu tinha de uma resposta.
- Bom, já tive aquela sensação de querer comer algo e não saber exatamente o quê.
- Não, Sara. Não tem nada a ver com comida. Quero saber se você já sentiu como... se uma parte de você tivesse sido arrancada e arrastada para o mais longe possível... E por mais que você tentasse, por mais que se esforçasse, fosse incapaz de descobrir qual fora exatamente a parte que lhe arrancaram, e por isso fosse obrigada a seguir sua vida sentindo sempre o mesmo vazio, a mesma falta e desespero infinitos. - Minha amiga analisou um pouco a intensidade das minhas palavras. Eu mesma me surpreendi por soar tão dramática.
- Acho que não. - foi a resposta dela - Acho que nunca me senti assim!
- Sabe, - continuei - às vezes, muitas vezes, me sinto pela metade, como se eu tivesse que buscar essa outra parte para me sentir completa outra vez... Mas, não sei o que falta, não sei o que buscar, nem onde encontrar...
- Um dia você saberá... e encontrará! - garantiu, encarando-me com olhos carinhosos
- Promete?
- Prometo!
Sara voltou a encarar a correnteza, os lábios comprimidos numa linha firme. Não me agradava vê-la com aquela expressão distante e seria. Aquela não era minha Sara. Sempre divertida e sorridente, sempre tentando me mostrar o lado bom da vida.
Chutei a água com força, fazendo com que uma chuva cristalina a molhasse toda. Ela soltou um gritinho histérico de susto e, antes mesmo que eu terminasse de rir, preparou sua vingança. Chutou a água também, e uma chuva instantânea me molhou inteira. Foi o que bastou para começarmos uma guerrinha d'água.
Chutamos fervorosamente a água, molhando sem piedade uma a outra. Nossos gritos e risadas ecoavam pela tarde, enquanto meu coração reprimia a dor e eu tentava esquecer que em breve seria nosso momento do adeus.
- Chega! - gritei ainda rindo, tentando me defender das rajadas de água que ela me atirava.
- Foi você que começou! - gritou Sara de volta, sem aliviar o ataque.
- Ok, tudo bem, eu me rendo... Eu me rendo, agora chega! - O bombardeio cessou.
Estávamos ridiculamente encharcadas e riamos enquanto tentávamos, em vão, nos secar um pouco. Torci a barra da minha saia, enquanto Sara torcia seu cabelo.
- Minha mãe vai me matar quando eu chegar em casa toda molhada assim.
- Diga a ela que você, sei lá, se desequilibrou e caiu no rio. - sugeri.
- Fala sério, como se minha mãe fosse acreditar nessa história.
- Então diga a verdade, diga que eu te joguei no rio!
- Você não me jogou...
- Mas vou te jogar.
- Não! - Sara saiu correndo antes que eu pudesse segurá-la.
Corri atrás dela por alguns metros, mas eu sabia que nao tinha chances de alcançá-la, não sem estar montada em Sol. Com ele eu era sempre a mais rápida, sem ele qualquer um ganhava de mim na corrida.
- Tudo bem! - gritei ofegante, desistindo de capturá-la - não vou te arremessar no rio!
- Promete? - ela quis saber, enquanto já caminhava de volta na minha direção.
- Prometo, agora vamos voltar. Tá esfriando demais e com estas roupas molhadas vamos pegar um belo de um resfriado.
Calçamos nossas botas de borracha, montamos em nossos cavalos e começamos a cavalgar em direçao ao rancho dos pais dela.
Eu já podia ver Antares brilhando enquanto o céu escurecia, ganhando um tom turquesa deprimente, aquele tom meio sombrio, que indica o fim de mais um dia e começo de outra noite.
Fechei os olhos com muita força e, enquanto cavalgava a toda velocidade, sentindo o vento gelado tocar meu rosto, numa carícia doce de despedida, fiz uma prece à Deus aos sussurros.
"Por favor, por favor, a morte, é só o que Lhe peço."

E aí, o que acharam? Amanhã posto o 2° capítulo, ok?

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