"Para abraçar e para apunhalar é preciso
estar colado a vítima, do abraço ou do
punhal. Todo amigo é inimigo
Todo inimigo é amigo."
- Otto Lara ResendeEle era muito mais bonito do que em meu sonho e muito mais apavorante também. O rosto suave, calmo, olhos semelhantes aos que eu amava. Sua pele alva, era cremosa e opaca, quase leitosa; os cabelos negros caíam-lhe pelos ombros em cachos perfeitos que balançavam sob a brisa noturna. Um manto branco e leve descia-lhe pelo corpo até poucos centímetros do chão. As mãos longas e pálidas estavam entrelaçadas na frente do corpo, num amistoso gesto de impaciência.
Ele finalmente havia parado de se esconder de mim, e vê-lo ali, na minha frente, era o tipo de angustia que eu não estava preparada para sentir.
Fixei os olhos em sua imagem, ele não parecia um anjo, sua presença era opressora demais.
Senti minha respiração oscilar, enquanto seus olhos dissecavam-me completamente. Lembrei-me da noite em que ele estivera em meu quarto e de Robert me dizendo que talvez ele apenas estivesse curioso sobre mim.
Respirei fundo.
Eu poderia ficar ali e saciar sua curiosidade, se fosse só isso o que ele estivesse procurando, afinal, que mal poderia haver em um anjo querer saber um pouco mais sobre mim?- Heloísi Silva! - Ogue pronunciou meu nome, com um toque de reverência debochada na voz. Meu coração sentiu uma pontada brusca - Finalmente nos encontramos, não é mesmo? - disse, sorrindo com simpatia. Sua voz era doce, uma canção meiga e baixa, que exalava por seus poros.
Contiunuei em silêncio, tentando não me sentir apavorada.
- Estava ansioso para conhecê-la pessoalmente, não faz ideia do quanto ouvi falar de você! - ele falava, mas seus lábios não se moviam, seu sorriso não era desfeito, permanecia ali, imutável em seus lábios anêmicos. As palavras rolavam pelo ar a sua volta, como pensamentos bem audíveis.
Eu não piscava, não me mexia, apenas meus ombros subindo e descendo, seguindo o ritmo de minha quase respiração.
Ele deu alguns passos em minha direção, ou devo dizer, ele flutuou alguns passos em minha direção, parando na minha frente; encarando-me profundo, os olhos tornando-se o centro da minha visão.
Perdi-me por um instante naquele céu acinzentado. Perdi-me completamente. Uma depressão gigantesca brotou dentro de mim, meu coração diminuiu consideravelmente o seu ritmo incerto, as flores de minha primavera interior murcharam, definharam todas. Em um minuto não restava nada, apenas pétalas secas sendo levadas pelo vento de uma terrível solidão.
Ogue flutuou em torno de mim, inalando o ar a minha volta.
- Ah, que maravilha, - sussurrou ele, e seus lábios continuaram imóveis - o aroma da pureza, da inocência, da fé! - ele voltou a me encarar, os olhos mais cheios de nuvens ainda, mais infinitos e aterrorizantes.
Tentei manter a respiração regular.
- Você me causou alguns problemas sérios, mocinha. - sua voz era reprovadora, mas ele ainda sorria. - Por que não podia ser como a maioria? É tão mais fácil: mentiras, ganância, ira, um bocado de luxúria, um toque de inveja. Ah, tantas opções diferentes para se corromper. - ele suspirou. - Existe perdão para estes pecados, sabia? Não precisa ficar totalmente isenta deles. Eu teria menos problemas se você seguisse como a maioria. A porta mais larga é um caminho tão confortável, então por que querer a porta mais estreita? - ele me olhava como se estivesse estressado por um terrível dilema.
Eu devia estar enlouquecendo. Um anjo de verdade estava diante de mim, dizendo-me que eu lhe causaria menos problemas se fosse uma pecadora compulsiva? Se mentisse, roubasse e matasse? Eu começava a duvidar seriamente de que Ogue fosse mesmo um anjo.
- Admiro sua alma. - ele continuou. - Admiro cada pedacinho dela, cada fragmento de sua fé, cada centelha de esperança em seu coração. É realmente admirável o quanto sua alma é verdadeiramente pura e rara. Não existem muitos como você no mundo, Heloísi. São pouquíssimas as almas que possuem sua limpidez de sentimentos. - ele fez uma pausa, fitando-me com olhos curiosos.
Esperei pacientemente enquanto era analisada com cuidado, então ele continuou, dessa vez com a voz carregada de condenação.
- Mas, você deve saber que ser rara não a torna especial, e não
lhe dá o direito de fazer o que está fazendo. "O que eu estou fazendo?" Perguntei-me em silêncio.
Ogue sorriu, como se pudesse ouvir o que se passava dentro da minha cabeça.
- Não tem o direito de manter um anjo em cativeiro - respondeu ele à minha pergunta muda.
"O quê?"
Do que ele estava falando? Eu não mantinha Robert em cativeiro. Robert não era meu prisioneiro, estava comigo porque me amava.
- É claro que sabemos que ele te ama, afinal, como não amá-la, Ísi? - havia um toque melancólico na forma como ele pronunciou meu nome... me fez lembrar de Beatriz dizendo o nome de Robert.
Eu o encarei, enquanto tentava compreender o real sentido de suas palavras.
- Como não desejar permanecer ao seu lado por toda eternidade, minha querida, quando é adoravelmente desfrutável a sensação de estar com você? - suas mãos ergueram-se para o meu rosto, mas ele não me tocou, apenas acariciou o vazio a minha volta. Senti o calor de suas mãos próximas em minha pele, minhas bochechas formigaram com o toque ausente.
Ogue perambulou de um lado para o outro na minha frente, falando sozinho, como se tivesse se esquecido completamente de minha presença ali.
- Mas ele teria partido, sei que teria. Tudo isso poderia ser evitado. Mas não... não. - ele
parou e me encarou - Robert teria aceitado cuidar de outra alma, se sua alma, Heloísi, não fosse egoísta o bastante para não abrir mão de seu anjo da guarda. - aquelas palavras me feriram, mas não me surpreenderam.
Ogue não precisava me falar sobre meu egoísmo, eu tinha total ciência do tamanho dele.
- Egoísmo é um sentimento ruim, não é? - desafiei. Era a primeira vez que eu falava e nem sei onde encontrei minha voz. - Então não sou tão boa quanto diz, tenho lá meus pecados. - constatei, estranhamente aliviada por poder contradizê-lo, como se de repente apontar meus "pecados" fosse a coisa certa a fazer.
- Sim você tem pecados, é claro que tem. Todos vocês têm! - ele sorriu com satisfação. - Mas no seu caso isso é meio, digamos que, irrelevante.
- No... meu caso?
- Ah, minha querida, seria capaz de compreender se eu te dissesse que uma alma como a sua precisa de muito mais que um sentimento ameno como o egoísmo para passar por algum julgamento? - não, eu não era capaz de compreender.
Eu não era capaz nem de continuar respirando direito, com as palavras daquele anjo revirando minha cabeça. Por que ele estava dizendo aquelas coisas?
Nunca me achei uma pessoa boa e, especialmente nos últimos meses, com Beatriz, eu havia sido realmente sem escrúpulos, e nem ao menos me sentia arrependida por isso. Então por que ele estava dizendo que uma alma como a minha precisaria de muito mais para receber algum julgamento?
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Intrínseco
Fantasia"Será mesmo possível alguém se apaixonar pelo seu próprio anjo da guarda? Acredito que sim, pois eu estava, irreversivelmente, apaixonada pelo meu. E por mais bizarro e absurdo que pudesse parecer, por um milagre, ele também estava apaixonado por mi...