25. Vontade

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Me tua mão,
o teu desejo é sempre o meu desejo,
vem, me exorciza.” - Tom Jobim (Luísa)
 

— Será sempre assim, não é? – sibilei, afastando a cabeça do vidro e encontrando os olhos doces de Robert  já esperando pelos meus.
Não consegui respirar.
Deus, como era possível alguém possuir um rosto como aquele?
As luzes todas do sol infiltravam-se na transparência sólida do vidro, todas correndo para tocar o anjo do outro lado. Como eu as invejava! Uma mistura singela de cores iluminadas pairando ao redor daquele que era divino, que era belo, adorável e eterno. Raios suaves cor de ouro fragmentando o ar a sua volta, revelando minúsculas partículas volteantes de poeira dourada e faiscante. Uma visão onírica e perturbadora, que penetrava em mim a cada instante com tristeza e desconsolo.
Ele era lindo.
E como eu o amava.
Como o desejava...
— Nunca teremos nada além disso? Nada além de sentir nosso calor através de um vidro? – murmurei infeliz, sentia-me tão incapaz de conter a tristeza em minha voz que não me importei com o que Robert poderia pensar e isso certamente foi um erro.
Ele suspirou profundamente, a face, de repente, tomada por um brilho soturno devastador.
— Isso não é justo. – murmurou, tocando o vidro exatamente onde meu rosto se moldava, novamente  quase pude sentir seu toque. — Não é justo pra você...  estou te privando de tantas coisas...
— O quê? – interrompi, alarmada com sua confissão inesperada. — O que está dizendo?
Robert sorriu tristonho, os olhos fugindo dos meus.
— Não posso te dar coisas simples, Ísi, – revelou angustiado. — coisas simples como
caminhar pelas ruas de mãos entrelaçadas, afagar seus cabelos numa tarde de sol, tocar seu rosto, abraçá-la toda manhã quando te pego pra ir à escola, ou como a coisa mais simples e mais desejada de todas as coisas. – Robert voltou a me encarar e seus olhos agora estavam intensos. — Não posso... te beijar! – sua voz era carregada de culpa.
— Não pode dizer que está me privando das coisas... – arfei com urgência.
— E não estou? - ele me interrompeu, sério demais.
Sem hesitar abri a porta, correndo-a pelos trilhos, e passei para o lado de dentro num segundo.
— Não quero que pense assim! – grunhi encarando-o.
Ele riu. Um riso amargo, que me doeu na alma.
— E por que não? Quando poderei te dar essas coisas? Quando se nem ao menos posso tocá-la sem lhe causar uma dor torturante?
Engoli em seco essa realidade.
— Eu... eu não me importo em ter nada disso. – menti, num sussurro de voz quase sumido.
— Ah! – ele balançou a cabeça irônico. — Está me dizendo que não se importa em ter um relacionamento onde tudo se baseia em apenas olhar e ser olhada? – sua ironia era dolorida.
Inspirei o ar com força antes de responder.
— Não. Eu o me importo. – menti novamente, mas dessa vez quase pareceu verdade.
— E até quando? Até quando acha que suportará esse tipo de relacionamento? – sua voz era um sussurro reprimindo sua dor.
A pergunta me pegou desprevenida, desviei os olhos para minhas mãos, que começavam, nervosas, se entrelaçarem uma na outra, como sempre costumavam fazer quando eu não sabia o que responder.
— Até quando, Ísi? – insistiu, obrigando-me a pensar em alguma resposta, mas a verdade é que eu não tinha nenhuma. — Por favor, não me diga que não se importa porque eu sei que se importa... e o quanto se importa!
— Robert... – era tolice querer jurar o contrário — eu não trocaria nosso relacionamento por nenhum dos relacionamentos convencionais que conheço. – jurei. — E... mesmo que eu... às vezes... me importe com algumas coisa que “nos” faltam, eu sei que consigo suportar. Sei que posso agüentar, porque estar com você é tudo o que eu preciso, é a única privação que eu não suportaria. – sibilei, pressentindo uma falha aguda em minha voz.
— Eu sei! – garantiu ele com olhos amáveis. - E sinto tanto que seja assim pra você.
— Nossa, você fala como se eu fosse uma vítima. Você me deu opção, lembra? Tive a chance de escolher e escolhi você, mesmo sabendo de nossas limitações. Então não fale como se eu estivesse sendo forçada a ficar ao seu lado, sofrendo privações e implorando pra ser salva.
Robert respirou fundo, os olhos dentro dos meus, os lábios firmes, crispados, contradizendo silenciosamente cada uma de minhas palavras.
— Seria tão mais fácil se... – ele se interrompeu contrariado.
— Se?
— Se eu fosse como você!
— Está querendo dizer... humano? – indaguei.
Ele concordou com um aceno.
— Infinitamente mais fácil. – murmurou, quase consigo mesmo.
— É o que você queria? Ser como eu agora? – indaguei sem ar, perdendo-me nas facilidades que esta hipótese nos traria, surpreendendo-me com a rapidez de minha criatividade exagerada e com a facilidade para criar cenas de amor. Se pudéssemos nos tocar... Ah!
— Acho melhor te levar pra casa. – murmurou Robert, depois de um longo minuto em silêncio, interrompendo minha cena perfeita pela metade.
Voltei a respirar.
— Mas... eu acabei de chegar, e além de tudo tenho duas horas a mais pra ficar com você,
lembra? – reclamei, minha voz ridiculamente afetada pela má receptividade que todo meu corpo sofrera com a ideia de me afastar dele antes da hora. Cada pedacinho de mim já se rejubilava com o bônus de algumas horas a mais. Ele não podia me levar pra casa.
— Ísi, por favor... – agora ele estava com os olhos fechados, os dedos prendendo com força a ponte do nariz. Parecia lutar para abrandar as expressões, por isso não consegui decifrar nenhuma das contorções em seu rosto de anjo.
— Não pode me levar embora. – insisti. — Não quero ficar longe de você!
Robert abriu os olhos, virando-se para mim.
Tremi!
Seus olhos eram quase furiosos, ardiam em seu rosto com tamanha... fúria e... desejo, que quase me assustaram. Ele prensou-me no vidro – sem me tocar, claro, apenas usando o próprio corpo para repelir-me até eu encostar na porta. Pousou as mãos na superfície fria do vidro, criando uma gaiola a minha volta.
“Ah!”, estava tão próximo, ele não devia fazer isso, devia saber o quanto aquela proximidade era perigosa, a qualquer momento eu sabia que poderia me atirar em seus braços e...
— O que está sentindo agora? – sussurrou ele, o hálito fresco e saboroso roçando meu rosto, embriagando-me completamente.
Eu simplesmente não conseguia pensar.
__ O que está sentindo agora, Ísi? – insistiu, e aquilo era quase uma ordem.
Reuni todas as minhas forças para conseguir responder.
— Vontade... – murmurei meio inconsciente.
— Vontade? – repetiu ele num sussurro, levando meu raciocínio embora.
— É, vontade de... tocar em você. – consegui formar uma frase, minha voz falhando um
pouco. — Vontade de... sentir você... só um pouquinho... – inclinei o rosto para ele, mas
Robert recuou rapidamente, não muito. As mãos ainda permaneceram no mesmo lugar.
— E você acha que pode resistir... se eu permanecer... assim por muito tempo? – ele voltou a aproximar o rosto do meu. Novamente senti seu hálito tocar meu rosto, deixando-me grogue.
Respirei fundo, precisava encontrar as palavras para responder sua pergunta.
— Hmmm, acho que seria pedir demais dos meus nervos. – murmurei fechando os olhos, fraca. 
— Então será que pode entender o porquê quero te levar pra casa? – perguntou, o rosto
circulando o ar ao meu redor, inalando meu cabelo com o mínimo de distância permitida. — Triplique sua... vontade. – sugeriu — Consegue entender o que eu estou sentindo só por estar perto de você agora? Estou mantendo o controle para não agarrar você agora mesmo, Ísi, para não... te beijar sem nenhum pudor. – Sua voz saía entre os dentes, baixa e um pouco irracional.
— Não me importaria se você perdesse o controle. Acho que na verdade não seria tão ruim! – confessei, içando-me para ele, e então... ele já estava longe.
— Não seria tão ruim? – repetiu num rugido revoltado. — Quanto tempo acha que uma
pessoa sobrevive segurando um fio desencapado? Três minutos? Quatro? Talvez cinco? – eu entendia sua metáfora.
— Preciso de  menos do que isso, Robert, muito menos já me basta.
— Não vou... o posso te ferir outra vez. Não suportaria vê-la se contorcer de dor apenas para saciar alguns caprichos...
— Não são caprichos – interrompi ofendida – e a dor nem é tão horrível assim se quer saber! – tentei não me lembrar de como era, precisava ser convincente. — Nada que eu não possa aguentar, nada que possa ser pior do que continuar sentindo... isso. – murmurei, completamente sem graça por estar sendo terrivelmente sincera.
Robert encarou-me cético quando terminei de falar.
— O que está dizendo? Que não se importa de reviver aquela dor em troca de que...
— Você me beije! – completei para que não restassem dúvidas. — Eu sei que pode parecer loucura, mas eu posso aguentar Robert, sei que posso... – implorei desesperada, avançando um passo para ele, mas Robert foi mais rápido e já estava no meio da sala, perto do sofá, antes que eu pudesse pensarem dar o segundo passo.
— A que ponto chegamos? – ele estava irritado, não comigo, era o que eu esperava, mas com a situação. Seu olhar era inescrutável enquanto ele me fitava. — Está tentando barganhar um beijo, mesmo sabendo que isso pode deixar marcas em você?
— As marcas vão acabar sumindo, sabe disso – ofeguei. — Mas o desejo... pelo contrário, só
vai ficar mais forte, mais profundo a cada dia. – eu devia estar mesmo enlouquecendo. A lembrança da dor em minha mente era revoltante, mas eu não me importaria em senti-la novamente se isso incluía senti-lo também.
— Realmente já é hora de te levar pra casa! – disse ele, sério demais.
— Não... – tentei insistir.
— Por favor, não faça isso comigo. – pediu ele, caminhando para mim novamente, mas não chegou tão perto quanto eu gostaria. — Por favor, Ísi, não posso machucá-la, não quero machucá-la, e às vezes ficar perto de você...
— Eu te torturo, não é? – eu disse baixando os olhos, evitando a tentação.
Ele havia dito para eu triplicar minha vontade e imaginei que se eu pudesse fazer isso certamente seria o mesmo que sentir todo meu corpo consumir-se em chamas de dentro para fora.
— Me desculpe! – murmurei, sabendo que era incapaz de sentir o que ele sentia
— Não, não se desculpe. Você não tem culpa de nada, eu é que deveria me desculpar por te fazer estar sempre se controlando, sempre em alerta...
— Pode parar. – eu o interrompi. — Se não posso me desculpar, você também não pode. Se não tenho culpa, você também não tem. Serei mais cuidadosa daqui pra frente. – prometi.
— Não vê? Esse é o problema, Isi. Você tem que sempre ser cuidadosa quando está perto de mim, não pode ser espontânea sem correr o risco de se machucar e isso não é justo.
— E não é justo que eu te torture... desse jeito. Vou controlar meus desejos adolescentes, assim você não sofrerá e talvez minha presença se torne mais tolerável pra você. – jurei dessa vez.
Robert encarou-me por um instante com “aquele” olhar que me desconectava do mundo.
— Acha mesmo que pode se controlar? – perguntou num sussurro. Minha pulsação subiu para o espaço. Ele não devia fazer isso comigo, não ajudava em nada. — Acha que pode controlar o que sente? – não era exatamente uma pergunta, era mais a afirmação de algo que eu já sabia.
Não, eu não seria capaz de me controlar e mesmo que eu esfriasse, até onde conseguisse, odesejo que sentia, ainda assim seria demais para ele. O desejo sempre seria demais para ele,
porque sempre era demais em mim.
Não respondi, ele não precisava de uma resposta oficial.
Saí pela porta de vidro. Confusa, angustiada.
Eu teria que aprender a me controlar, de alguma forma, se quisesse evitar que
nosso namoro se tornasse quase que insuportável de tão magnífico. Mas como me controlar?
Como domar a vontade que exercia um poder sobrenatural em mim sempre que eu estava perto dele? Sempre que... pensava nele?

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