38. Vazio

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- Bom, agora que já respondemos suas perguntas, vou preparar um chá pra você. - disse Robert, levantando-se.
- Não, não vá. Não me deixe... - implorei. Não queria ficar longe dele, nem mesmo por um segundo.
- Não vou demorar. - prometeu ele, a voz meio triste. - Sofia ficará com você. - ele sorriu para mim, e eu sabia que também não lhe agradava ficar longe de mim por qualquer tempo que fosse. Mas, talvez, estivesse sendo doloroso demais para ele me ver naquelas condições.
Acho que eu não tinha muita idéia de como devia estar minha própria aparência.
- Robert... - ainda assim, eu quis insistir.
- Dê esse prazer a ela, crianças adoram se sentir úteis. - Sofia mostrou a língua para ele, mas Robert não chegou a ver, já estava fora do quarto. Ele saiu antes que eu pudesse voltar a protestar.
Suspirei, derrotada.
Sofia estava de joelhos ao meu lado na cama, olhando-me fixamente. Seria uma cena
constrangedora ou até mesmo assustadora, não fosse ela possuir aquele rostinho angelical, incapaz de me causar medo.
- O que foi? Por que está me encarando assim? - perguntei com naturalidade, tentando ajeitar minha cabeça no travesseiro sem causar dor em nenhum fio de cabelo.
- Você é tão... linda! - disse ela, quase num sussurro. Ruborizei automaticamente.
- Obrigada. É um belo elogio vindo de alguém que possui um rosto como o seu. - comentei.
Ela não reagiu às minhas palavras, permaneceu com os olhos fixos em mim.
- Não é difícil entender o porquê ele é apaixonado por você. - murmurou, depois de um minuto em silêncio. - Não é difícil entender o porquê escolheu ficar com você, apesar de... - ela se interrompeu, pensativa.
- Apesar do quê? - indaguei, a preocupação invadindo minha voz.
- Talvez fosse mais fácil se... mas... e você também é apaixonada por ele, então... - ela
definitivamente não estava conversando comigo.
- Que bom que isso é perceptível. - eu disse tentando controlar minha ansiedade. Porque ela não havia respondido minha pergunta?
- O que você seria capaz de fazer, Ísi, para ver Robert feliz? - A voz de Sofia ganhara um tom inexpressivo. Não consegui entender o verdadeiro sentido de suas palavras, mas algo dentro de mim deixou-me alerta e cautelosa.
- Eu sou a felicidade dele! - arfei, num murmúrio dolorido, sem me importar com qualquer modéstia, sem dar a mínima se estava sendo pretensiosa ao extremo.
Sofia ainda mantinha os olhos presos em mim e o rosto já não era mais tão angelical quanto antes.
- Até onde você iria para mantê-lo... seguro. - pressionou ela, a voz fria e racional.
Não fui capaz de captar o teor daquela pergunta, fiquei olhando para ela e tentando não me assustar com o quanto seu rosto parecia diferente de repente.
- Ísi, você precisa saber, o que aconteceu na festa... Ogue te manipulou. - ela estava sendo pragmática ao falar, soltando cada palavra lentamente. - Ogue usou sua maior fraqueza contra você mesma. Fez com que acreditasse que te separaria de Robert... ele não podia te atingir, pelo menos não diretamente, e então encontrou o meio perfeito de fazer com que você mesma cavasse a própria cova.
- Mas ele não conseguiu o que queria - garanti - Robert ainda está comigo. Então... eu venci.
Ela riu de minha petulância infantil.
- Ogue é mais esperto e astuto do que você possa imaginar. Ele realmente esperava que este plano desse certo, não usará a mesma artimanha da próxima vez.
Próxima vez? Minha cabeça girou com a possibilidade.
- Estarei preparada para ele! - afirmei com segurança.
Novamente ela riu. Será que eu era assim tão ingênua?
- Você acha que é o alvo principal, não é? - ela me encarava, balançando a cabeça lentamente, demonstrando o quanto me achava idiota e infantil.
- E não sou? - indaguei. - Não é a... pureza de minha alma que tanto incomoda Ogue?
- Isso é apenas uma parte do problema - assegurou Sofia. - Ele não suporta ver vocês dois juntos, mais do que apenas protetor e protegida, se é que você me entende.
- Acho que ele terá que se conformar com isso.
Sofia suspirou longamente, parecia impaciente.
- Você realmente não entende - a voz dela era urgente. - Ele já te atacou! - suas palavras eram muito sugestivas. Senti o coração gelar dentro do peito.
- Ele não se atreveria a fazer qualquer coisa contra Robert. - interrompi, sem ar.
- E por que não? Quem irá impedi-lo? Você?
- De todas as formas que me forem possíveis! - garanti.
- Tem certeza? - os olhos dela brilhavam intimidadoramente. - Porque, se isso for mesmo verdade, existe uma maneira de você evitar que Ogue ataque Robert.
- Qual?
- Sabe muito bem qual?
Tive um insight instantâneo.
- Não... nunca...
- Ísi...
- Não. Eu nunca o deixarei. Jamais me separarei dele. - sibilei. - E, mesmo que eu
quisesse, isso seria impossível. Eu pertenço a Robert e não posso, nem pretendo, mudar esta condição.
- Ogue não desistirá até conseguir o que deseja. Espero que não se esqueça disso...
Nesse momento Robert entrou no quarto, segurando uma bandeja com uma xícara fumegante de chá. Meus olhos fugiram dos de Sofia.
- O que foi? - perguntou ele, sentando-se ao meu lado na cama, com muito cuidado.
Senti quando Sofia lançou-me um olhar sugestivo, eu sabia que devia manter em segredo nossa "conversinha", ele não perdoaria a irmã se soubesse a proposta que ela acabara de me fazer.
- Vou deixar os pombinhos a sós! - Sofia disse, num tom contrariado, enquanto sumia pela porta do quarto.
Robert e eu rimos das palavras dela, uma coisa que eu devia ter feito com mais cuidado, pois uma onda de dor assolou com força cada centímetro de meu corpo.
- Argh! - reclamei, interrompendo imediatamente o riso.
- Muita dor? - perguntou Robert, tenso, interrompendo o riso também. Não queria deixá-lo preocupado, mas não tinha como mentir e dizer que estava tudo bem.
- Éh, um pouco. - confessei - Piora quando me esqueço de que não devo me mexer.
- Trouxe um analgésico pra você, tome, vai ajudar. - disse ele. O rosto estava vincado,
insatisfeito com meu estado, tentando esconder suas emoções por detrás das palavras calmas.
Obedeci como uma boa paciente, peguei o comprimido branco que ele me estendera e
coloquei-o na boca. Não gostava de tomar remédio, de nenhum tipo, mas em breve eu estaria com Lena e não poderia ficar choramingando perto dela, aquele comprimido era ne necessário,
Robert me passou a xícara.
- Cuidado, está quente. - avisou-me, num sussurro.
Soprei o líquido rosado algumas vezes antes de levá-lo à boca - maçã e canela -, o sabor era incrível. Permanecemos em completo silêncio enquanto eu tomava meu chá. Ele parecia pensativo e não quis incomodá-lo com tagarelice desnecessária. E também porque eu estava cansada demais para conversar.
- Estava muito bom, obrigada! - eu disse, depositando a xícara na bandeja em cima do
criado mudo ao lado da cama. Robert me sorriu como resposta e eu não consegui sorrir de volta.
De repente as palavras de Sofia estavam zunindo em meus ouvidos. E se ela tivesse razão? E se Ogue não estivesse mais interessado em mim? E se seu alvo principal "da próxima vez" fosse Robert? Ah, eu nem conseguia imaginar isso.
Eu seria capaz de um sacrifício para protegê-lo?
- O que foi? - perguntou ele, o rosto preocupado, analisando minha expressão.
Esperei um segundo antes de falar, precisava ser forte para fazer aquela pergunta.
- Você me abandonaria? Se afastaria de mim, para me manter... segura? - minha voz era um murmúrio calculado, não queria que ele desconfiasse os reais motivos de minha indagação.
Robert manteve os olhos nos meus por um momento mínimo, talvez tentando entender aonde exatamente eu queria chegar com aquilo.
- Por que está me perguntando isso?
- Você não respondeu minha pergunta. - reclamei. O controle da voz escapava com a
necessidade de obter uma resposta.
- Ísi, olhe para você. Dê uma boa olhada em seu atual estado. Lembre-se do que aconteceu na festa e analise o que vem acontecendo em sua vida nos últimos meses, mais especificamente depois que nos conhecemos: os pesadelos, as noites mal dormidas ouvindo barulhos pela casa que a perturbam, a inimizade de Beatriz, a constante ameaça de Ogue... Acha que isso é o que acontece na vida de uma pessoa que está segura?
Não respondi, não conseguia encontrar minha voz para dizer qualquer coisa.
- Não, não é. - respondeu ele à própria pergunta. - E, no entanto... estou aqui, não estou? - ele balançou a cabeça como se estivesse se recriminando por isso. - Mesmo com todos os riscos, eu ainda me mantenho, e me manterei, em sua vida. Simplesmente porque não tenho outro motivo ou razão para estar aqui, que não seja você. Então não importa o que aconteça, Ísi, nunca, nunca irei te deixar. - ele deu um risinho triste e resignado.
- Promete? - foi só o que consegui dizer. As palavras de Sofia sendo carregadas para o
esquecimento.
- Ísi, - ele olhou-me profundo nos olhos - podem pegar uma árvore arrancar-lhe todos seus frutos e ela continuará viva; podem arrancar-lhe todas as folhas, todos os galhos e ela continuará viva; podem até cortar-lhe o tronco, ainda assim ela continuará viva, mas se lhe cortarem a raiz ela não resistirá. O mesmo acontece comigo, podem me tirar tudo, eu suporto... só não posso suportar... - ele hesitou por um segundo - Não posso viver sem minha raiz, sem o que me mantêm neste mundo! - seus olhos eram duas estrelas radiantes, e eu poderia ficar olhando para elas eternamente.
- Obrigada! - consegui dizer antes que as primeiras lágrimas me escapassem.
Robert não cogitava a ideia de me abandonar, qualquer que fosse o preço a ser pago. Como eu poderia abandoná-lo? Mesmo que nossas vidas estivessem em risco, minha vida na verdade, isso nada significava, pois não havia vida para nós longe um do outro. Ficaríamos juntos, para sempre.
- Que horas são? - perguntei, lembrando que para sempre não seria uma boa ideia pra Lena.
- Quatro e trinta e dois! - respondeu Robert sem consultar nenhum relógio. Ele não
precisava, podia sentir o passo de cada segundo.
- Hoje é domingo, não é? - perguntei, buscando algum calendário perdido no fundo de minha memória. Parecia que Robert havia me buscado em casa para uma festa na semana passada.
Ele confirmou com a cabeça
- Precisa me levar pra casa agora, hoje minha irmã chega às cinco. E a história de que passei a noite na casa da Ana não vai ter muita credibilidade se ela me vir chegando com você! - anunciei, jogando os lençóis para longe de mim e tentando sair da cama, sem muito sucesso.
- Tem certeza de que está pronta pra ir pra casa? - questionou Robert, preocupado com
minha falta de capacidade para mover o corpo.
- Nunca estou pronta pra ficar longe de você, - sibilei, concentrando-me em sair da cama sem parecer um soldado voltando da guerra - mas se eu quiser te ver outra vez na vida, acho melhor estar em casa antes das cinco.
Robert balançou a cabeça para meu esforço quase inútil e então Sofia apareceu na porta do quarto, bem na deixa, correndo para me ajudar. Ela serviu de escoramento para o meu corpo pesado e dolorido por todo trajeto até o jipe.
Fiquei aliviada quando, finalmente, Robert colocou o carro em movimento, disparando para longe dali. Lena não era o único motivo para eu querer ir embora da casa dele, pela primeira vez, por vontade própria. Eu temia que Clarice voltasse a qualquer momento e eu ainda estivesse lá. Como eu a encararia outra vez? Como olharia em seus olhos
depois de saber que ela tinha motivos para me achar uma adolescente imprudente?
Enquanto Robert dirigia em direção ao Botafogo, sob um soul baixo de Aretha Franklin, que preenchia o silencio a nossa volta, um vazio começou a tomar meu coração indistintamente. Ele já estava lá quando acordei no quarto de Sofia, mas era apenas uma gota inofensiva, um vento fraco.
Agora o vazio em meu coração tornava-se uma tempestade, um tornado enfurecido que bagunçava tudo dentro de mim.
Fiquei confusa. Eu devia estar feliz, e realmente estava, afinal estava viva e ao lado da pessoa que era tudo em meu mundo. Eu não devia estar triste, mas estava, pois algo me perturbava, algo me dizia, num sussurro quase maligno, que na vida real as histórias não podem terminar com final feliz... nunca terminam com um final feliz.
Não conseguia entender a oscilação de emoções dentro de mim. E isso me deixou perturbada.

Robert estacionou na frente do prédio, junto ao meio fio. Ficamos em silêncio por um momento, não queríamos nos separar. Ele me olhou com profunda ternura e o rosto retorcido por uma dor que não era minha.
- Vai ficar tudo bem, seja forte. - murmurou, inclinando-se para mim. Meu coração doeu terrivelmente.
- Está tudo bem, já acabou! - murmurei de volta, tentando sorrir para tirar aquela tristeza de seus olhos.
Não funcionou.
Saí do carro com dificuldade, Robert não podia me ajudar. Fui para a porta de entrada assim que o carro entrou em movimento. Subi as escadas com uma lentidão exagerada, não queria arriscar sentir qualquer tipo de dor. O analgésico que Robert me dera começava a fazer efeito
e isso era bom, me ajudaria a disfarçar a dor na frente da minha irmã.
Peguei a chave reserva em baixo do tapete da porta e, quando a virei na fechadura percebi que já estava destrancada.
"Ah, não, Lena já está em casa?"
Respirei fundo e entrei, tentando parecer normal e bem disposta.
Ela me esperava sentada em sua poltrona, parecia tensa, as mãos estavam estendidas sobre as pernas rígidas, o corpo ereto, como uma tábua, e os olhos fixos em meu rosto.
Eu estava perdida, ela sabia de tudo, sabia que eu havia passado a noite na casa de Robert.
Sua expressão deixava isso claro demais. Mas como ela descobriu? Como?
Ah, claro! Com certeza deve ter ligado para casa da Ana, para falar comigo, me dar qualquer recomendação desnecessária, ou apenas para "verificar" se estava tudo bem, e quanto pediu para me chamar, descobriu que nunca estivera lá. E então, obviamente, presumiu que eu havia lhe aplicado o mais
antigo dos golpes, dizer que vai passar a noite na casa de uma amiga, para passar a noite com o namorado. Daí todo o plano de Robert e Sofia havia sido jogado por água a baixo, deixando-me agora numa enrascada sem tamanho.
Droga!
Um mês de castigo seria pouco como punição, eu podia me preparar pra ficar um ano inteiro sem ver a luz do sol, e certamente só participaria de outra festa na vida depois dos trinta anos de idade.
Pensei em me justificar antes que ela desse a sentença final. É claro que Lena jamais acreditaria que havia dormido no quarto da irmã de Robert e não no quarto dele, com ele, mas eu precisava tentar, talvez meus argumentos diminuíssem a pena em alguns dias.
Fechei a porta atrás de mim e respirei fundo.
- Lena, escuta, eu...
- Ísi... - ela me interrompeu, e sua voz não era severa como eu esperava que fosse. - Eu... sinto muito! - murmurou. O corpo ainda rígido sobre a poltrona.
Fiquei totalmente perdida. Por que ela estava dizendo aquilo? Por que estava me dizendo que sentia muito? Pelo o quê ela sentia muito?
- Ísi... eu... não sei o que te dizer... não sei... como te dizer...
- O que houve? - perguntei, ainda mais perdida.
Seu rosto estava pálido de pesar, não consegui imaginar o que de tão ruim ela teria pra me dizer que a estava afetando daquela maneira.
- Vai ficar tudo bem, Ísi. Seja forte. - disse ela com tristeza.
Robert me dissera a mesma frase minutos atrás. O que estava acontecendo?
- Tá, você está começando a me assustar? - arfei controlando o desespero, enquanto caminhava em direção ao meio ds sala - Pode me dizer o que está acontecendo?
Lena suspirou.
- Mamãe acabou de ligar e...
- A mamãe... ligou? - eu a interrompi aparvalhada. O desespero aumentou. Minha mãe me ligara uma única vez desde que eu chegara ao Rio, e por azar eu nem estava no apartamento para atender. E agora ela havia ligado outra vez? Por quê? Pra quê? Doralice não era uma mãe assim tão preocupada para fazer duas ligações no mesmo semestre. Havia alguma coisa errada aí, alguma coisa muito errada.
E por que Lena parecia estar sofrendo? Por que protelava tanto em dizer de uma vez o que tinha pra me dizer?
Minha mãe e meu pai viviam brigando, as brigas mais terríveis que um casal que se odeia, mas que é obrigado a conviver, pode ter. Sempre temi pela segurança deles, sabia que mais dia, menos dia, um dos dois perderia a cabeça e... Não, eu não podia acreditar!
Será que...?
- O que houve com o papai? - perguntei alarmada, com um choque de conclusão.
Lena piscou atrapalhada, contraindo o rosto.
- Ísi...
- Fala logo, Lena. O que houve com o papai?
Ela correu para mim e me abraçou apertado. Senti minha respiração falhar. Agora eu podia entender aquele estranho vazio alojado no fundo do meu coração, desde que eu saíra da casa de Robert.
Lena apertou-me ainda mais em seus braços protetores.
- É tão ruim assim? - murmurei, com medo de ouvir sua resposta.

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