29. Momentos (II parte)

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Na tela da TV, um nascer do sol alaranjado aparecia, ganhando cada vez mais cor; a medida em que a música, uma velha conhecida dos meus ouvidos, uma canção num dialeto africano, cheia de vida e sentimento, embalava o nascer de um novo dia na savana. Um rinoceronte de olhos
amendoados, alguns antílopes e suricatos zebras, antílopes, girafas e guinús passavam
correndo na frente de meus olhos, levantando poeira no chão seco e quente da África. Todos os animais corriam na mesma direção e não, não estavam fugindo de uma fera ou tentando se proteger de um predador feroz. Não, eles corriam para celebrar o nascimento daquele que, mais tarde, seria "O Rei Leão".
- Você é impossível! - sussurrei, virando para encará-lo .
- Você disse que era seu filme favorito, pensei em assisti-lo com você! - justificou-se ele animado com minha animação.
- Quando vai parar de fazer todas as minhas vontades? - dessa vez eu olhava para ele.
- Quando não houver mais nenhuma vontade para satisfazer. - bradou, ignorando também as imagens que vinham do televisor.
- Sempre terei uma vontade que nunca poderá ser satisfeita por completo. - lá vinha eu novamente, a incontrolável.
Voltei meus olhos para o filme que seguia em frente. Precisava controlar meus impulsos. Isso facilitaria as coisas para Robert.
Assistimos ao filme, sentados lado a lado. Uma corrente elétrica passava do corpo dele ao meu. E eu sabia que não era uma coisa da minha cabeça, era sólido demais para que eu ignorasse.
O filme chegou ao fim, Simba e Nala vivendo felizes para sempre. Os créditos finais começaram a subir, a sala ficou na penumbra angustiante.
- Está chorando? - perguntou Robert incrédulo, tentando focalizar meu rosto no escuro.
Passei as mãos nos olhos para me livrar da umidade. Era a segunda ocasião em que eu chorava no mesmo dia, e isso não era muito comum em mim.
- Não posso evitar, sempre choro nesse filme. - confessei sem nenhum constrangimento.
- Pensei que já tivesse derramado lágrimas suficientes com a morte do pai de Simba. -
observou ele, ainda tentando olhar-me com clareza.
- Não é só a tristeza que faz as pessoas derramarem lágrimas, o finais felizes às vezes também pode fazer alguém chorar.
- Alguém... tipo você?
- Sim, alguém tipo eu. - concordei. - Já percebeu como é maravilhoso que o amor seja a natureza do mundo? Tudo o que existe precisa de amor para continuar existindo.
Ali, no escuro, os olhos de Robert arderam nos meus.
- Acho que nunca vou conseguir entender o porquê os humanos choram! - murmurou,
analisando de perto uma lágrima que escorria dos meus cílios inferiores.
- Vocês... não choram? - minha pergunta saiu um pouco atrapalhada pela surpresa.
- Anjos não sabem chorar! - confessou com um sorriso tímido.
- Não se preocupe, alguns humanos também não. - tranquilizei-o.
Era uma força de expressão, mas eu sabia que existiam humanos menos capazes de chorar do que Robert.
Nosso sorvete também havia chegado ao fim, levantei-me assim que meu cérebro conseguiu mandar um comando para minhas pernas amolecidas, pela intensidade dos olhos que me fitavam. Fui para a cozinha levando o pote vazio e as colheres comigo. Robert permaneceu na sala, talvez sentindo a necessidade que eu tinha de me afastar dele por um minuto para continuar me comportando.
Coloquei o pote em cima da pia, abri a geladeira e pegar um pouco de água gelada, tomar sorvete sempre me deixava com sede. Enchi um copo e quando fechei a porta da geladeira e me virei, ele estava ali, logo atrás de mim. Por pouco não derramei toda a água de puro susto.
- Me desculpe, não queria te assustar! - disse Robert sorrindo a poucos centímetros de mim.
Respirei fundo e o susto já dava lugar à outra emoção.
- Sempre me assusto quando te vejo, mas só por que é bonito demais, não consigo me
acostumar - murmurei aos arquejos.
Um vendaval de pensamentos felizes tomava conta de minha mente.
Baixei os olhos evitando me prender naquele céu azul por muito mais tempo. Robert mantinha uma das mãos escondida nas costa, a outra pressionava a porta da geladeira.
- O que tem aí atrás? - perguntei, me inclinando para o lado e tentando sondar.
Ele cerrou os olhos para mim, misteriosos e irresistíveis, e não me deixou ver o que era.
- Deve aprender a controlar sua curiosidade! - advertiu-me.
- Não posso evitar a curiosidade quando estão nitidamente escondendo alguma coisa de mim.
Ele estendeu a mão colocando-a a mostra bem diante do meu rosto.
- Pra você! - disse. E não estava mais sorrindo, seu rosto era sério, quase tenso, mas sua expressão era de agrado.
- É... linda! - exclamei como quem ganha a primeira boneca. Mas o que ele acabara de me dar não era uma boneca, era uma flor, uma linda margarida.
- Gosta?
- Claro, mas... onde conseguiu? - eu olhava a flor que ele segurava, e sabia que ele não havia chegado com nenhuma flor nas mãos, a menos que tivesse enfiado no bolso, mas, neste caso ela não estaria em tão bom estado. Não quis pegá-la das mãos dele, ela ficava ainda mais bonita estando, assim, em contato com ele.
Robert deu de ombros.
- Bom, sua mãe apanhou algumas flores esta tarde, para fazer um arranjo para mesa da cozinha. - explicou indiferente.
Eu o sondei, tentando entender o que ele parecia querer dizer.
- Ok, está dizendo que... enquanto eu abria a geladeira, você estava em...Campos do Jordão? Como assim?
Ele sorriu abertamente para mim, o que me fez perceber que, sim, eu estava certa.
- Não existe limite de espaço para nós, basta pensarmos em um lugar para estarmos lá. -
disse simplesmente.
- Caramba, isso... deve ser muito legal!
- É, não imagina o quanto é econômico viajar assim!
- Acho que imagino sim. - pudera eu visitar minha casa sempre que pensasse nela. - Então você esteve em Campos e roubou o arranjo da minha mãe? - indaguei fingindo espanto.
- Bom, foi uma florzinha só, e roubar é uma palavra tão forte, digamos que peguei emprestado.
- Quando pegamos algo emprestado temos a intenção de devolvê-lo. - informei-o.
- E quem disse que não tenho a intenção de devolver esta flor para o vaso de onde a peguei? Eu só a trouxe para te fazer uma... visitinha.
- Não vai levá-la de volta! - protestei.
- Então saiba que a culpa pelo furto recairá sobre os seus ombros. - avisou-me zombeteiro.
- Acho que posso conviver com isso. - garanti.
Inclinei o rosto para frente chegando bem perto do miolo amarelo da margarida. Eu queria sentir o perfume, distinguir seu cheiro entre o aroma que vinha da pele de Robert.
Era delicioso, suave. Um perfume que me fazia lembrar de casa. Fechei os olhos. E num minuto tudo passou para outra perspectiva. Eu não inalava mais o aroma da margarida buscando apenas seu perfume. Eu buscava sua textura, suas formas, seu toque. Buscava senti-lo, de alguma forma, através das pétalas macias daquela flor.
Robert entendeu imediatamente minha nova visão do momento. Com delicadeza deslizou a flor pelo meu rosto. Dava pra sentir uma leve eletricidade pinicando minha pele, mas nada que eu não pudesse suportar.
Imaginei que aquelas pétalas delicadas fossem os dedos me tocando com carinho, contornando meu queixo, descendo pelo meu pescoço. As pétalas tornaram-se muito mais macias e quentes. Agora não eram mais seus dedos em minha pele, eram os lábios, que deslizavam com cuidado por minha testa, pela minha bochecha até encontrarem minha boca.
Os lábios se afastaram antes da hora. Abri os olhos frustrada.
- Me desculpe! - disse Robert, diante de minha expressão, segurando a flor na frente do meu rosto. - Não queria te provocar!
- Não se desculpe. Não por isso. - eu disse, tomando a flor de sua mão com um sorriso. - Feche os olhos! - pedi em sussurro.
Robert ainda me encarou por mais alguns segundos antes de ceder ao meu pedido. Depois lentamente suas pálpebras cor de lavanda cobriram o azul de seus olhos cautelosos.
Com suavidade, deslizei as pétalas brancas da margarida pela pele macia do rosto dele, como ele havia feito comigo. Robert estremeceu um pouquinho, então eu soube que ele estava sentindo o mesmo que eu havia sentido. Acariciei seu rosto, tocando sua testa, seus olhos, sua bochecha e finalmente seus lábios.
Afastei a flor depois de um minuto demorando-me ali. Ele abriu os olhos para me encarar.
Sua expressão era de prazer.
- Acha que devo me desculpar? - perguntei sugestivamente.
- Não. Com certeza não! - afirmou ele.
Assenti com a cabeça e, contrariando todas as minhas vontades naquele momento, bocejei como um hipopótamo.
- Acho que é hora de te colocar na cama!
- Não estou com sono! - afirmei, mas antes que eu pudesse conter, bocejei outra vez.
- Sei que não está. - zombou - Só estou usando isso como desculpa para te levar pro quarto. - ele sorriu maliciosamente e não pude evitar o riso, a piada era um tanto quanto agradável.
Escovei os dentes e me enfiei em minha camisola de florzinha - era a que eu mais gostava.
- Pensei que você havia dito que não podia entrar em meu quarto! - provoquei-o por
diversão, enquanto fazia uma trança em meu cabelo.
- As circunstâncias são favoráveis e tenho certeza de que você deve ter prometido a sua irmã que não faríamos nada que ela desaprovasse. Então não vejo problema nenhum em estar aqui.
Enrosquei-me na cama e Robert me cobriu como a um bebê. Foi só então que percebi, ali deitada em minha cama confortável e embaixo do lençol, o quanto eu estava
cansada e com sono. Bocejei três vezes seguidas assim que minha cabeça tocou o travesseiro.
- Por favor, por favor, por favor, não me deixe dormir. - pedi, esfregando os olhos
lacrimosos de sono.
- Não posso te obrigar a ficar acordada!
- Pode sim. - discordei. - Pode me chantagear, dizer que terminará comigo se eu fechar os olhos por mais de cinco minu... - fui interrompida por outro bocejo.
Ele riu.
- Sabe que não vou fazer isso.
- Mas devia, seria um incentivo e tanto para me manter acordada pelos próximos dez anos. - ele meneou a cabeça e me lançou um de seus sorrisos que me dizia o quanto eu era absurda.
- Você ri porque pode ficar acordado pelo tempo que quiser, porque pode olhar para mim enquanto estou inconsciente. Queria saber o que diria se tivesse que perder horas com a mente no vazio, ao invés de ficar comigo - reclamei.
- Hmmm, o sono parece mesmo uma crueldade pra você. - objetou ainda sorrindo.
- E é. - concordei. - Se eu pudesse encontrar uma maneira de aproveitar o tempo que perco dormindo... seria um alivio.
- Gosto quando você dorme, - comentou. Sua voz parecia distante e baixa. - Sempre tem a possibilidade de que sonhe comigo.
- Essas são as únicas noites em que dormir vale à pena! - murmurei sonolenta, sentindo a inconsciência ganhar cada vez mais espaço dentro de minha cabeça.
Não vi quando Lena chegou ou quando Robert foi embora. Quando meus olhos se abriram já era a manhã de um outro dia. A luz clara entrava pela minha janela, incomodando meus olhos, obrigando-me a sair da cama.

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