21. Perguntas e Respostas

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Acordei ansiosa na manhã seguinte; ansiosa para ver meu anjo da guarda outra vez. Para minha tristeza eu não havia sonhado com Robert aquela noite, na verdade não tive sonho algum, foi um sono profundo e pesado, como há tempos eu não dormia.
Saí da cama com o espírito renovado, sentia-me genuinamente feliz, e estava até cantando enquanto preparava o café da manhã.
Marcos bateu em minha porta, como sempre fizera, para irmos para o colégio juntos.
- Hã... eu não vou com você hoje. - murmurei, com medo da reação dele.
- Não vai à aula? - perguntou intrigado.
- Claro que vou, mas... - hesitei. Marcos com certeza se chatearia comigo, talvez até passasse a me ignorar, o que seria bem merecido pra mim. - Robert... virá me buscar. - falei, sentindo o peso que aquela confissão teria sobre meu amigo.
Para minha surpresa, ele não disse nada, apenas assentiu com a cabeça, e saiu, descendo as escadas em silêncio. Fiquei na porta observando-o. Eu sabia que ele não estava contente com a novidade, mas o que eu podia fazer?
Robert chegou minutos depois, e fiquei aliviada por Marcos não estar mais alí.
__ Oi! - eu disse, totalmente desestabilizada, quando abri a porta e encontrei o garoto mais lindo do mundo, sorrindo para mim.
__ Bom dia! - a voz de Robert era animada, mesmo com aquele timbre rouco e sexy, que fazia vibrar cada parte de mim. Sim, seria um bom dia.
Eu o convidei para entrar, fazendo um gesto vago com uma das mãos.
- Quer comer alguma coisa? - perguntei.
Estávamos na cozinha de Lena, e, ainda bem, ela já estava no hospital. Robert me observou por um momento, enquanto eu passava requeijão em duas metades de pão francês. Ele parecia em dúvida se devia aceitar ou não. Sua expressão trouxe a minha mente uma pergunta um pouco idiota, mas resolvi fazê-la em voz alta.
- Os anjos... sentem fome? - perguntei.
Robert riu, mas não me incomodei com isso.
- Bom, na verdade não. Mas comemos mesmo assim. - ele pegou uma das metades em meu prato e levou até a boca. Eu ri de sua atitude. - Humm, isso é muito bom! - disse surpreso, depois de engolir.
- Você fala como se nunca tivesse comido pão com requeijão antes. - eu disse enchendo minha boca.
Robert olhou-me sugestivamente.
- Você nunca comeu pão com requeijão antes? - perguntei com a boca ainda cheia.
- É claro que já comi - indignou-se, - Mas é sempre como se fosse a primeira vez.
- Não entendi!
- Nunca me lembro do sabor de nenhuma comida, mesmo que eu tenha acabado de comê-la, é sempre como se eu estivesse experimentando pela primeira vez. O gosto é sempre uma surpresa para mim. - explicou.
- Então, se eu lhe der pão no almoço...
- Será como se eu estivesse comendo pela primeira vez. - completou ele, dando outra
mordida em sua metade de pão.
Instantaneamente lembrei-me da primeira vez em que eu havia lhe oferecido algo para beber.
Dei-lhe algumas opções e ele havia ficado terrivelmente em dúvida. Agora sua reação fazia sentido.
- Procuro comer sempre o que as pessoas perto de mim estão comendo - disse, como se também tivesse lembrado do episódio. - Raramente peço algo por conta própria, mas ainda assim, mesmo quando copio o pedido de alguém, acabo comendo algo de que não gosto muito. - ele riu sozinho com alguma lembrança.
- Nossa, quer dizer que você não tem nenhuma comida favorita! - exclamei, surpresa.
- Quem disse que não tenho? - ele estava sorrindo.
- Como tem comidas favoritas se nem se lembra o gosto das coisas que come? - provoquei.
- Gosto de macarrão, peixe, frango, sorvete de morango com chocolate, carambola... - eram exatamente as coisas que eu gostava. -Nos últimos meses, procuro comer o que você gosta, e... até que você tem um bom paladar, com exceção do quiabo . - ele fez uma careta.
Eu ri.
__ Quiabo é bom!
__ Não, não me lembro de ter pensado isso quando comi! - Robert fingiu uma expressão pensativa, como se estivesse recordando do sabor do quiabo - Já terminou? - perguntou, olhando para o meu copo de achocolatado - Precisamos ir se quisermos assistir às primeiras aulas. - disse levantando-se.
Senti certo pânico ao lembrar da escola.
- Eu não me importaria de perder as primeiras aulas. - murmurei, virando, numa golada, o que restava da bebida, e levando o copo vazio para a pia.
- Será que está tentando perder o teste de cálculo? - observou ele.
- Ah, é mesmo... o teste! - eu havia me esquecido completamente.
Robert ergueu uma sobrancelha para mim.
- Se não é pelo teste que gostaria de faltar, é por que então?
Suspirei. Ele merecia que eu fosse sincera, não era justo esconder-lhe a verdade. Respirei fundo e resolvi que era melhor que ele soubesse, por pior que fosse.
- Estou com medo.
- Medo? - repetiu, uma preocupação insinuando-se em seu rosto. - Por que? Ainda não consegue acreditar que isso seja mesmo real?
- Não, não é isso. Acho que, de certa forma, estou começando a me convencer de que o que aconteceu ontem a noite, e o que continua acontecendo agora, não são apenas loucuras da minha cabeça - murmurei - Estou com medo por outro motivo!
Percebi a expressão de Robert se suavizar, mas ainda havia um leve vestígio de preocupação no fundo dos seu olhos. Tentando ignorar isso, continuei.
-- Preciso te contar uma coisa. - hesitei por um momento. - Beatriz, ela... ela é apaixonada por você! - encarei-o, esperando por uma reação, mas a reação não veio, então resolvi prosseguir - E, bem... eu fiz uma promessa à ela... de que a ajudaria a te conquistar... - seus olhos permaneciam imutáveis, ele não parecia surpreso com minha revelação. - Não sei qual será a reação dela quando nos vir juntos outra vez, não quero magoá-la e...
- Isi, - ele me interrompeu, estava diante de mim, perto da pia, com os olhos agora ficando mais intensos nos meus. - Ela não é apaixonada por mim. - afirmou com uma convicção premente.
- Diz isso porque nunca a ouviu falar de você. Você... é tudo pra ela, Robert. - era horrível confessar aquilo em voz alta, mas era preciso.
Robert afastou-se de mim, indo sentar-se novamente. O rosto serio, parecia impaciente.
- Lembra-se de ontem à noite, quando lhe falei sobre a regra mais importante da Lei dos Cem Anos? - perguntou, os cotovelos apoiados na bancada sustentando o rosto.
- A única regra, - enfatizei para mim mesma - em que todos têm que dar um passo à frente quando o dado é jogado. - eu disse.
- Isso, não se pode voltar uma casa, nem permanecer na mesma. Assim nenhuma casa ficavazia, lembra? - assenti com a cabeça, ainda sem entender aonde ele queria chegar. - Você sabe que eu não andei, que eu não quis proteger outra alma que não fosse a sua - assenti novamente. - bom, se eu tivesse mudado de casa, se tivesse aceitado dar um passo à frente, a nova alma designada a mim seria...
- A alma de Beatriz! - completei num murmúrio chocado. A ficha caindo imediatamente, como se, de alguma forma, eu já soubesse daquilo o tempo todo.
Robert olhou-me em silêncio.
- Ah! Isso quer dizer que... você seria o anjo da guarda de Beatriz se não tivesse escolhido ficar comigo? - arfei surpresa.
- Sim, e é por isso que eu posso te afirmar com toda certeza, que Beatriz não é apaixonada por mim. - ele hesitou, mas logo voltou a falar. - A alma dela sente-se... atraída por mim, e tenta de todas as formas me fazer voltar atrás, me fazer querer ser seu protetor.
- Mas... ela não tem alguém que a proteja?
- Sim, é claro que tem alguém protegendo Beatriz, mas a alma dela insiste em não se
conectar totalmente com seu novo anjo da guarda, o que torna as coisas difíceis para ele...
- Porque ela quer você! - conjecturei.
Robert sorriu para mim, os olhos analisando meu rosto desolado.
- É uma reivindicação inconsciente da alma dela. Beatriz nem entende na verdade o porquê sente-se tão atraída por mim, ou porque sente um ciúme excessivo e não pode tolerar que qualquer pessoa se aproxime de mim. Ela acredita mesmo que me ama, mas isso não é verdade, sua alma mantém, inevitavelmente, uma fixação por mim, só isso!
Fiquei em silêncio, tentando concentrar minha mente em tudo o que ele estava me dizendo.
"Só isso"?
- O que foi? - perguntou Robert, diante da minha expressão quase triste.
- É pior do que imaginei. - murmurei pensativa. - Já seria bem difícil, se ela simplesmente fosse apaixonada por você como uma garota comum, mas agora... saber que a alma dela está reivindicando seus direitos... Isso pode ser mais complicado. - aquilo com certeza seria mais
complicado.
- Não deve se preocupar com isso! - tranquilizou-me.
- Como não? Somos... amigas, não posso magoá-la. Não quero perdê-la.
- Ísi, pode a chuva dizer "não quero mais chover?". Beatriz já está magoada e não é com você, é comigo. A alma dela não aceita a rejeição...
- E isso é culpa minha, eu te tirei dela.
- Você não me tirou de ninguém, porque pertenço a você - suas palavras saíram pesadas. - Mesmo que você não me quisesse em sua vida, eu jamais aceitaria ser o anjo da guarda de outra alma, jamais se esqueça disso, está me ouvindo? - concordei obediente para a autoridade em sua voz. - Eu não protegeria a alma dela de qualquer maneira, então a culpa não pode ser sua, porque eu escolhi pertencer a você.
Fiquei feliz com a confissão, havia tanta verdade em suas palavras, mas ainda assim não consegui deixar de pensar em Beatriz.
- Posso te pedir um favor? - perguntei com cautela. Robert nem se incomodou em me dar uma resposta, era óbvio que eu podia pedir-lhe qualquer coisa.
Tive medo de seguir em frente e deixá-lo chateado, mas, sinceramente, não via outra alternativa para minha covardia, por isso prossegui.
- Será que, pelo menos por enquanto, podemos manter... nossa relação em segredo? Continuar afirmando que somos apenas amigos? - pronto falei.
Eu o encarei e percebi, com gratidão, que ele estava sorrido quando terminei de falar. Então, chateado ele não estava. Ótimo.
__ Ísi, "todo mundo sabe de tudo", lembra? Vão acabar descobrindo, não me pergunte como, mas vão.
__ Se descobrirem... nós negaremos!
__ Negar?
__ Até a morte se for preciso! - exagerei sorrindo.
- Realmente não vejo motivos pra isso. - reclamou ele. - Mas se prefere assim... - ele deu de ombros.
- Obrigada! - agradeci aliviada.
Fingir que éramos apenas amigos não seria uma tarefa difícil, afinal manteríamos a relação padrão de sempre. Nunca nos tocaríamos como casais de namorados costumam fazer. Essa era nossa punição. Então, para todos os efeitos, não havia nada que pudesse comprometer nossa pequena mentira.
Era "perfeito".

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