O dia seguinte na escola foi tranquilo.
Conheci mais alguns professores, e um garoto, Alex Corrêa, puxou papo comigo no início da aula de geografia.
Ele era o Ken, que Marcos me mostrara no refeitório no dia anterior.
- Você deve ser a aluna nova de que todos estão falando! - disse ele, com ar intrigado, sentando em cima da minha carteira. - Alex Corrêa, muito prazer! - o garoto segurou minha mão e a beijou, tipo naquelas cenas de filme do século dezenove.
- Hã... Heloísi! - eu disse, recolhendo a mão - Ísi!
O garoto estreitou os olhos para mim.
- Humm... Isa, legal, gostei!
- Não, é Ísi, Ísi. Não Isa! - corrigi, mas ele não pareceu prestar muita atenção.
- E então Isa, que tipo de balada você curte? Sempre tenho entradas vips para as melhores noitadas do Rio, a festa que você quiser ir, é só falar comigo e arranjo as entradas por um precinho camarada...
Enquanto ele listava todas as casas noturnas do Rio de Janeiro, das quais ele podia me conseguir entradas especiais, não pude deixar de reparar que... "Nossa, ele se parece mesmo com o Ken!" Desde o cabelo, os olhos, o porte físico, o estilo meio "engomadinho", e até o sorriso, destes que vemos em propagandas de creme dental clareador.
- Você é menor de idade, não é? Posso conseguir um indentidade quentinha pra você, é só me pedir, gata! - ele sorria malicioso para mim.
- Hã... Eu... Hã...
Pra minha sorte o professor entrou na sala e Alex Corrêa foi obrigado a ir para sua carteira.
Ao meu lado um garoto simpático me sorriu, e se apresentou, antes do professor começar a falar.
- Sou Tevi Cheng! - sussurrou, meio sorrindo, meio fazendo uma careta. Ele tinha os olhinhos puxados, escondidos por detrás de seus oculos de grau, o cabelo era liso e preto, cortado bem curto, e ele usava uma camisa de botão que nenhum outro garoto do segundo ano teria coragem de usar, por parecer social demais.
Durante a aula, Tevi Cheng respondeu a todas as perguntas que o professor fez, debateu sobre "como as mudanças ambientais e climáticas influênciam geograficamente cada região", e ainda propôs uma pesquisa, de toda a classe, sobre o assunto. Ele era tão articulado e bem atualizado sobre dados e número, que fiquei impressionada.
Sério, me senti como numa daquelas escalas da evolução humana, sabe? E eu era o homem de neandertal ao lodo do homo sapiens.
No almoço, Beatriz me apresentou a Ana Paula Souza e Mei Cheng, ela fez questão de que Marcos e eu nos sentássemos junto dela e de suas amigas.
A primeira garota era uma tagarela irremediável, falava mais palavras por minuto do que eu era capaz de falar em uma hora inteira, mas parecia uma garota legal. E ela tinha beleza exótica. A pele era quase mogno, os cabelos, compridos e crespos, tinham um dom amêndoa, e seus olhos eram cor de âmbar derretido, fascinantes.
A segunda garota era irmã gêmea de Tevi Cheng, e parecia uma bonequinha de porcelana chinesa. Era extremamente delicada, como se pudesse quebrar a qualquer mínimo movimento inesperado. Mei tinha o rostinho de uma garota desprotegida... Mas... havia algo nela, algo em seus olhos, que repelia em mim qualquer instinto de proteção.
E isso ficou ainda mais latente na quarta-feira, enquanto seguíamos juntas para a aula de história.
- Você e Beatriz se deram super bem, não é mesmo? - comentou ela, caminhando ao meu lado. O restante do nosso grupo, (Nossa, estranho perceber que agora eu fazia parte de um grupo), tinha outras matérias neste horário, então estávamos apenas Mei e eu.
- É, Beatriz é bem legal! - concordei. Mei era tão pequena, que eu me sentia uma gigante com meus 1,65 de altura.
- Aposto que ela te falou sobre Robert Castro? - disparou o bibelô chinês.
- Hã... ela comentou uma coisa ou outra... - dei de ombros, fingindo não me importar com o tema da conversa.
Mei agarrou-se ao livro que carregava junto ao peito.
- E aposto que ela também te falou sobre Amanda Siqueira!
Balancei a cabeça concordando.
A garota continuou.
- É uma pena, não é, que duas grandes amigas possam simplesmente se odiar de repente? - percebi a ênfase dela em duas palavras.
- Elas... eram amigas? - perguntei surpresa, inocentemente mordendo a isca.
- Sim, eram, do verbo "não são mais." - anunciou satisfeita.
- Beatriz era amiga da Barbie? - murmurei, num pensamento bastante audível.
Mei riu ao meu lado. E era um risinho tão agudo e melodioso que me causou um arrepio na espinha.
- Não, Beatriz não era amiga da Barbie, Beatriz era uma Barbie. - senti meu queixo cair - Mas uma nação não pode ter duas rainhas, não é mesmo?
- Elas... brigaram? - indaguei com cuidado e curiosidade.
A garota deu de ombros.
- Digamos que decidiram... tomar caminhos diferentes, desfazer a parceria, entende?
- E por que tomaram essa decisão? - as perguntas saim da minha boca por vontade própria.
Mei ergueu os olhos para mim.
- Acho que você já sabe a resposta! - afirmou com segurança, quando chegamos à porta da sala.
E ela estava certa, por alguma razão, eu já sabia a resposta antes mesmo de fazer a pergunta.
- Ah, claro... - respirei fundo antes de pronunciar aquele nome. - Robert Castro, não é?
Mei me olhou de frente por um segundo, a resposta implícita naqueles olhinhos negros.
Sim, Beatriz e Amanda foram amigas um dia, grandes amigas, mas isso foi no passado, e parecia que a única coisa que existia entre elas agora era um tipo obscuro de rivalidade. As duas gostavam do mesmo garoto. E não era um garoto qualquer. Era Robert Castro. E não havia nada no mundo que pudesse ser comparado à ele.
Mei Cheng sorriu satisfeita, enquanto seguia para sua carteira. Ela havia cumprido sua missão. Eu estava bem avisada de onde estaria me metendo, ou... de onde já havia me metido.
O restante da semana foi seguindo na mesma batida. Novos rostos, novos nomes, novas informações. E todos os dias, durante a aula de Literatura, ou em algum corredor, ou quando eu me sentava com Marcos e as meninas na hora do almoço, eu entendia o que Beatriz quiz dizer sobre "dar a vida por um único olhar".
Depois do primeiro dia de aula, Robert Castro nunca mais havia olhado para mim. Era como se eu não existisse. Ele estava sempre lá, impenetrável, concentrado em algum livro, ou escrevendo em seu caderno, sempre em seu próprio mundo - tornando-se a cada dia o centro do meu.
E eu me perguntava como em tão pouco tempo eu já criara expectativas exageradas de encontrar os olhos dele nos meus outra vez? E por que a frustração doía terrívelmente, quando as expectativas não eram correspondidas?
Isso não estava certo. Eu não devia me sentir assim.
Na sexta-feira depois da escola recebi um e-mail do meus pais, uma breve mensagem na verdade, mas já era alguma coisa.Filha,
Estamos felizes por você. Esperamos que esteja feliz também, e que esteja se adaptando bem. O Rio é um lugar incrível, não é? Uma dia nos agradecerá por termos te mandado para esta cidade.
Cuide-se!!!
E lembre-se, nós te amamos!
Seus pais.Vinha do endereço de e-mail do chalé, então não dava pra saber qual dos dois realmente havia escrito aquilo.
Reli a mensagem dezenas de vezes, tentando encontrar pistas de quem seria o autor.
De início, achei que poderia ser minha mãe, "O Rio é um lugar incrível, não é?". Ela sempre dizia que, se não fosse pelo chalé, se mudaria para o Rio, porque precisava de um pouco de sol e alegria para variar, então parecia bem provável que ela tivesse mandado uma mensagem dizendo estar feliz por mim. Entretanto, prestando um pouco mais de atenção, me convenci de que apenas meu pai poderia ter escrito aquilo "Um dia nos agradecerá...". Era bem a cara dele dizer este tipo de coisa, como se eu tivesse que ser grata por tudo o que faziam por mim, independente se eu havia gostado ou não.
Acabei deletando o e-mail e desligando o computador. Não importava saber qual dos dois havia escrito a mensagem. Não faria diferença nenhuma, afinal!
Não tive muito dever de casa para o fim de semana, então passei praticamente o sábado inteiro no apartamento de Suzana, jogando vídeo game com Marcos e a pequena Jéssica, já que Lena estava de plantão no hospital.
Bom, na verdade, eu não posso dizer que joguei vídeo game, eu tipo, fiz algumas coisas com o console do jogo, enquanto tentava, de forma lamentável, seguir todas as instruções de Marcos.
Jéssica ficou o tempo todo ao meu lado, mas não quis saber de muito papo comigo, e a cada cinco minutos perguntava, com aquela voz fofinha "Ondi tá titia Ena?"
Ela era uma criança realmente apaixonante.
No domingo de madrugada, a falta que eu sentia da minha casa, do meu antigo quarto, da mimha melhor amiga e de todo o resto, fez com que eu pintasse minha primeira tela, desde que cheguei aqui. Não foi nenhuma tela incrível, mas me ajudou a relaxar.
A segunda semana de aula passou bem rápida, mas tive que ser forte para, além de conter meus impulsos descontrolados e não manter os olhos vergonhosamente grudados em Robert Castro, controlar também o desconcerto que Beatriz causava em mim a cada vez que começava a declarar seu amor por ele. Era realmente uma tortura ter de ouví-la dizer repetidas vezes que "Não saberia o que fazer se Robert Castro não existisse na minha vida". Era angustiante.
Na sexta-feira da minha segunda semana no Rio de Janeiro, recebi a primeira carta de Sara. Meu coração quase explodiu no peito ao abrir o envelope e encontrar aquela letra que eu conhecia tão bem.Querida Ísi,
Enquanto lia a carta que você me escreveu, eu me questionava sobre como nunca percebi seu dom paranormal para prever o futuro. É sério.
Sua carta, obviamente, chegou depois do primeiro dia de aula, então não pude seguir nenhuma das coisas que você, por me conhecer muito bem, achou melhor não me pedir para fazer.
No primeiro dia de aula meu cabelo estava preso, não consegui sorrir, nem cumprimentar ninguém pelos corredores, e também não deixei que meus pais me comprassem uma mochila nova. Gosto da mochila do ano passado, apesar daquela cor ser um pouco nojenta, mas gosto principalmente da assinatura que você fez do lado de dentro, com caneta marca texto, lembra?
Tenho cavalgado bastante durante as tardes e às vezes, quando sinto que vou explodir por não ter com quem conversar, dou um jeito de escapar à noite e cavalgar um pouco perto do rio. É tão reconfortante estar alí, num lugar que ninguém pode me ver...
Ah, não quero falar de coisas tristes.
E então, como é morar no Rio?
Estou morrendo de inveja de você. Juro. Você sabe que eu sempre quis morar numa cidade que fizesse calor, só para poder tomar água de côco e chupar picolé à vontade!
Você devia estar louca quando disse que deseja voltar. Isso aí é o paraíso. Então, por favor, aproveite. Por mim.
Beijos, te amo!Obs: Estrela não tem estômago de avestruz, entendeu?
Obs 2: encontrei sua mãe no Capivari, no último sábado de manhã, tentei colher algumas informações, mas só o que consegui foi que, bom... ela e seu pai não se falam desde o dia em você se mudou. Acho que é melhor assim, amiga!
Obs 3: ainda estou à procura do meu estômago. Pois é, não consegui evitar.Sara.
Chorei do início ao fim da carta e à noite, antes de dormir, eu a coloquei embaixo do meu travesseiro. Era uma maneira de manter minha amiga pertinho de mim.
Vamos lá, comentem (quero saber as opiniões), votem, indiquem, coloquem nas listas de leituras de vocês, ok?
Bjs, bjs!!!!
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Intrínseco
Fantasi"Será mesmo possível alguém se apaixonar pelo seu próprio anjo da guarda? Acredito que sim, pois eu estava, irreversivelmente, apaixonada pelo meu. E por mais bizarro e absurdo que pudesse parecer, por um milagre, ele também estava apaixonado por mi...