35. Confronto

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- E então? De quem roubou? - insistiu Beatriz, com curiosidade. - Não é você a cretina que costuma roubar as pessoas? Quem foi a infeliz de quem você arrancou este vestido? - sua pergunta era uma condenação.
Respirei fundo tentando não parecer apavorada.
- Não roubei, foi um presente. - murmurei, num tom mais justificativo do que eu pretendia.
- Um presente? - repetiu, com falsa desconfiança.
- Sim, um presente de Robert! - humm, eu realmente não devia ter dito isso. Minhas palavras foram o aval para o início da Terceira Guerra Mundial.
O rosto de Beatriz repuxou-se numa expressão assustadora.
- Como pude acreditar em você? Como pude pensar que fosse minha amiga de verdade?
- Beatriz...
- Não. Diga. Meu. Nome. - sibilou ela enfurecida, mordendo os próprios dentes. - Eu odeio você Heloísi. Te odeio com todas as minhas forças. - seus olhos infensos me fitavam profundamente. Eu já sentia o gosto amargo da culpa precipitando-se em minha boca, como um veneno mortal. - Você roubou minha única esperança de ser feliz. Roubou o que eu tinha de mais precioso...
- Olha, eu não sei o que andaram te dizendo, mas...
- O que andaram me dizendo? O que alguém poderia me dizer? Que você é uma vigarista de quinta categoria? Ou que é uma vadia de primeira classe, que rouba o namorado de uma amiga?
- Você e Robert nunca foram namorados! - contestei de prontidão.
- Mas seríamos. - ela estava gritando comigo - Seríamos se você não tivesse me apunhalado pelas costas. - o ódio escorria por cada palavra que ela dizia - Como se sente com isso? Como se sente por acabar com a minha vida?
- Por favor, eu posso te explicar. Não é da como você está pensando...
- Eu não quero saber das suas explicações, não quero saber seus motivos. Você me fez uma promessa, Heloísi, uma promessa que, infelizmente, acreditei que cumpriria. - Seus olhos transbordavam uma mágoa que dilacerava meu coração.
Beatriz olhava-me com terror, como se me visse sorrir enquanto eu mesma pregava os cravos nas mãos de Jesus Cristo no dia de sua crucificação, como se eu fosse algum tipo de criatura demoníaca que precisa ser exorcizada.
- Deve estar feliz, não é? Agora que finalmente estão juntos! - ela me olhava de frente.
Engoli em seco, antes de conseguir falar.
- Não estamos juntos, somos... amigos! - por que eu não conseguia dizer a verdade? Por que não conseguia contar tudo a ela? Por que não conseguia ser sincera?
Mas afinal, do que a verdade adiantaria?
A verdade não me livraria da condenação, não havia nenhuma chance de que ela me concederia qualquer remissão por meu pecado. Beatriz encarava-me como se, na primeira oportunidade que tivesse, sem vacilar, acenderia a fogueira que me queimaria viva.
- Não estão juntos! Não estão juntos? - repetiu ela, rindo descontroladamente - Que
diferença faz se estão juntos ou não? Tá na cara que Robert está apaixonado por você, ele... te ama, e nunca, nunca vai olhar para mim. - ela caminhou lentamente pela cozinha, vindo em minha direção, cuspindo as palavras na minha cara.
Tremi diante da expressão quase assassina no rosto dela.
- O que é? Não vai negar isso também? Não vai negar que você o conquistou sorrateiramente com este jeitinho nojento de "caipira desprotegida"?
Preferi manter o silêncio, ela estava se aproximando demais, qualquer palavra poderia desencadear um ataque de fúria.
- Eu vejo como ele olha pra você, aliás, todo mundo vê. Parece que não existe mais ninguém no mundo, como se ele não desejasse nada além de você, como se você fosse o próprio ar, a própria fonte da vida. Chega a ser quase ridículo, sabia? Ele te olha como se você... fosse a única razão para ele existir. - depois, com a voz mais fria e melancólica que alguém pode ter, ela
continuou, mas quase não parecia estar falando comigo - O olhar que desejei minha vida inteira, que esperei por tanto tempo e que simplesmente foi roubado de mim.
- Não fiz isso de propósito, eu...
- Cale essa boca! - ordenou ela, histérica. - Não acredito em uma palavra que venha de vadias como você. Por que não enterrou uma faca no meu coração, Heloísi? Por que não me deu um tiro na cabeça ou qualquer outra coisa que causasse uma morte rápida e sem sofrimentos? Seria muito fácil do que ter que conviver com o que nunca poderei ter, com o que jamais me pertencerá. - havia uma tristeza dilacerante em suas palavras, em cada uma de suas palavras.
Minha alma rompeu-se de dor, pela dor que eu estava infringindo a ela.
- Você é um monstro, sabe disso, não é? - acusou friamente - Um monstro terrível que ri com prazer, enquanto bebe meu sangue na taça da vitória. Mas você deve saber também que um dia, Heloísi, pagará por cada lágrima que derramo, por cada soluço que não consigo abafar à noite - ela quase ria.
Beatriz tinha razão, eu era um monstro. E sabia disso. Um monstro terrível e perverso que não se importava com a enxurrada de sangue derramada sob meus pés, contanto que meu próprio coração não estivesse sangrando. Eu poderia estar me afogando no sangue dela, em sua tristeza perturbadora... isso pouco me importava, eu estava feliz, pois tinha quem mais desejava.
- Eu... sinto muito. - foi só o que consegui murmurar em meio à culpa que levava minha voz, minha coragem de falar. - Eu... realmente sinto muito...
- E vai sentir muito mais! - afirmou, cheia de convicção.
Foi rápido demais pra que eu pudesse reagir. Numa fração de segundos a mão direita de
Beatriz ergueu-se, cortando o ar, pronta para atingir com muito prazer meu rosto assustado.
Mantive o rosto erguido, pronta para aceitar, sem covardia, minha punição. Eu não reagiria, não me moveria, deixaria que ela fizesse o que achava que devia fazer. Talvez eu devesse isso a ela.
Vi a palma da mão dela aberta, descendo com vontade em direção ao meu rosto, trinquei os dentes e esperei... mas uma mão impediu que o ato fosse consumado segurando a mão de Beatriz antes que ela atingisse o alvo.
Nós duas olhamos, totalmente atônitas, para a nova figura presente na cozinha.
- Se quer estapeá-la, por mim tudo bem. Acho até que ela merece mesmo uma boa surra, mas não aqui, não agora, não na minha festa. - Amanda pronunciava cada palavra com autoridade. Ela me olhou, como se ela própria fosse capaz de me estapear, depois encarou sua amiga por uma fração de segundos.
Beatriz voltou os olhos para mim, enquanto sua mão, ainda estendida no ar, era refreada por Amanda.
Segurei a respiração, enquanto a Barbie voltava a dar ordens para sua seguidora.
- Não quero uma seção gratuita de pancadaria aqui. Se as pessoas vão sair daqui comentando alguma coisa, será sobre o meu vestido e sobre como estou linda esta noite, e não a respeito da baixaria que rolou na minha cozinha. Portanto, contenha-se!
Se não estivéssemos ameaçando chamar todas as atenções, tenho certeza de que a Amanda não se incomodaria em ajudar a amiga a me dar uma surra.
Beatriz soltou-se com rispidez da mão que lhe prendia. Ela parecia muito obediente. Não temi que tentasse uma nova investida agora que estava com a mão livre, mas seus olhos quase me diziam que eu podia estar enganada.
- Chega, vamos voltar para a festa! - ordenou Amanda segurando a aliada pelo cotovelo.
Beatriz ainda deu um passo em minha direção - como se já não estivesse perto o suficiente.
Enrijeci. Ela me encarou por um momento, o rosto perturbadoramente perto demais do meu.
Eu sentia sua respiração quente de raiva tocar minha pele de leve.
- Se existe um inferno, Heloísi, é para lá que você vai quando morrer. - sussurrou ela, as
palavras passando com dificuldades por seus dentes a mostra.
Eu a encarei por um segundo, mas meus olhos mudaram de foco, saindo da cólera dos olhos que me encaravam e indo parar nos olhos mais lindo do mundo que surgiram, de repente, embaixo do arco da porta.
Amanda e Beatriz seguiram instintivamente meu olhar. Acho que ouvi as duas ofegarem.
Robert atravessou a cozinha e veio parar ao meu lado, perto da pia. O rosto sério, preocupado.
- Algum problema? - sua voz ressou por cada uma de minhas terminações nervosas, me fazendo relaxar por um instante, para ficar ainda mais tensa no instante seguinte. Fiquei sem saber a quem ele havia dirigido a pergunta, se a mim, se a Beatriz ou se a Amanda, mas o que isso importava? Nenhuma de nós três iria responder mesmo.
Amanda arrastou minha ex-amiga enfurecida dali. As duas saíram sem dizer uma única palavra, fugiram para a sala com música alta e pessoas sorridentes.
Foi pior ficar sozinha com ele.
- O que houve? - perguntou Robert. Agora eu tinha certeza de que a pergunta era para mim, mas eu não estava disposta a responder.
- Ainda estou esperando pela diversão. - arfei, evitamdo os olhos dele - Você disse que seria divertido, não disse? - indaguei, tentando fazer piada. Minha voz condenava a inexistência de humor.
- Está apavorada! - observou - Quero saber o que houve, sem piadinhas, por favor. - exigiu imediatamente.
Às vezes não era muito oportuno que ele pudesse sentir minhas emoções.
- Eu... estou bem. - garanti, como se ele fosse acreditar. Inspirei o ar com força para atenuar meu pavor. - Eu sabia que mais cedo ou mais tarde isso iria acontecer...
- Isso o quê?
- Beatriz veio cobrar minha promessa. Uma promessa que jamais serei capaz de cumprir.
- Ela não tem o direito de fazer isso. - reclamou ele tenso ao meu lado.
- Talvez ela tenha sim - discordei. - Você devia estar ao lado dela agora, lembra?
Protegendo-a. E eu impedi que isso acontecesse.
- Já disse, mesmo que você não me quisesse, eu jamais pertenceria a outra alma. Sou seu,
Ísi, e sempre serei. - fiquei em silêncio, enquanto ele me fitava com carinho. - Quer que eu te leve pra casa?
Respirei fundo, balançando a cabeça.
- Não. - afirmei, dando um passo em direção a sala - Vamos ficar! - Robert me olhou confuso.
__ Tem certeza?
Não me importei em ficar, afinal, o pior já havia passado, não é? Eu havia me livrado,
temporariamente, de Alex Corrêa, e Amanda não permitiria que Beatriz se aproximasse de mim, pelo resto da noite. Então, talvez, a diversão fosse, finalmente, o que me aguardava a seguir. Além do mais, Robert queria estar naquela festa comigo, queria me dar um pouco de "normalidade", ainda que isso não fizesse muito sentido.
__ Tenho!

Voltamos para o nosso grupinho de amigos que conversavam animadamente, enquanto
observavam as pessoas dançando. A música era uma batida agitada e barulhenta outra vez.
Adolescentes semi embriagados soltavam a inibição na pista de dança. Os copos descartáveis vermelhos sempre cheios de bebidas que estimulavam a coragem. Percebi que eu estava com sede. Minha boca parecia um deserto ressecado que nunca conhecera a chuva.
- Quer beber alguma coisa? - perguntou Robert como se pudesse ler meus pensamentos. Ou talvez ele só tivesse notado o quanto eu estava vidrada nos copos dos outros convidados.
- Quero!
- Certo! Vou buscar alguma coisa pra gente, não demoro. - disse, indo em direção a outra sala onde estavam servindo as bebidas.
- Robert! - chamei, antes que ele se afastasse demais. Ele se virou para me ouvir.
- Refrigerante!
Robert revirou os olhos e sorriu.
Em um segundo ele havia desaparecido no meio da multidão. Meus olhos continuaram
vagando a sua procura, mas a fumaça do gelo seco em contraste com as luzes coloridas das luminárias dificultava minha busca. Continuei correndo os olhos pelo cômodo apinhado de gente, distraidamente, e foi então que eu "o" vi.
Bem no centro da pequena multidão, estava ele, imaculado em um manto branco, me observando. Foi o tempo de eu piscar e ele havia desaparecido.
Prendi a respiração com o pavor que me assaltou. Olhei para os lados, buscando encontrar mais rostos assustados como o meu, mas... todos continuavam sorrindo, e dançando, e conversando... Ninguém mais tinha visto?
Será que eu estava enlouquecendo? Será que eu estava vendo coisas?
Não... Eu tinha certeza de que o que eu vira era muito real. Vasculhei o sala novamente, dessa vez não mais procurando por Robert, mas sim por ele...
Ogue.
Eu sabia.
Avistei-o novamente, parado junto à porta da cozinha. Real demais para ser uma alucinação.
Assim que percebeu meu olhar, escondeu-se no cômodo em que eu estivera minutos atrás.
- Com licença! - eu disse a meus colegas, saindo em disparada para o meio dos bailarinos semiembriagados. Entrei como um foguete na cozinha.
Estava vazia.
A porta que levava até o jardim dos fundos estava aberta e eu não me lembrava de tê-la visto aberta da ultima vez.
Corri para lá e saí numa varanda iluminada por dois pequenos postes de luz amarelada. Um casal aproveitavam a privacidade do lugar pra ficar mais à vontade - pareceram não gostar muito da minha intromissão.
Alguns metros adiante, nos fundos da casa, havia um pequeno bosque particular de árvores ornamentais - lembrei-me de que aquela era a casa de Amanda, tudo era um exagero.
Seguindo meus instintos, atravessei o gramado indo em direção às árvores. À medida que eu me afastava da casa, a música tornava-se apenas um sussurro abafado, e as luzes dos postes
duas estrelas que mal brilhavam. O céu aquela noite estava estranhamente estrelado, milhares de pontinhos brilhantes, cintilando na imensidão escura.

Por alguma razão, que eu não conseguia entender, sentia-me instigada a seguir em frente, a penetrar cada vez mais fundo naquele jardim sinistro e belo.

Ele estava ali, eu podia senti-lo.

Caminhei cautelosa pelo lugar sem iluminação, a brisa fria da noite fabricava ruídos intimidadores por todos os lados. Meus olhos cerrados buscavam a nitidez da quase escuridão.
De repente, entre os troncos das árvores, algo se moveu, rápido demais para que eu pudesse captar. Senti meu estômago se contrair de medo... Só então percebi que eu já tinha vivido aquela cena antes, muitas outras vezes, em muitos sonhos repetidos: as árvores, a escuridão, o manto branco flutuante escondendo-se de mim.

__ Como em meus sonhos... - murmurei apavorada.
Mas agora não era um sonho, eu estava bem acordada.

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