8. Damas (II parte)

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— Você acredita no amor? – Robert havia ganhado mais uma de minhas peças.
Se eu não me empenhasse um pouquinho mais, perderia de forma lamentável.
E que tipo de pergunta era aquela?
Fiquei sem resposta por alguns instantes. Baixei os olhos enquanto pensava em quê dizer. Eu sabia que ele estava me encarando, ansioso por uma palavra, qualquer coisa que não fosse o meu silencio. Eu sentia seus olhos em mim.
— É meio complicado... colocar em palavras o que penso em relação ao... ao amor – eu só
queria parar de gaguejar um pouco. — Humm... talvez não faça muito sentido pra você.
— Apenas tente. E quanto a mim, não subestime minha capacidade de compreender respostas complicadas. – ele riu baixinho. — Mas se estiver muito difícil de entender, eu peço pra você recomeçar, prometo!
Respirei fundo.
— Hã... eu... sim... acredito no amor...
— Mas...? – era tão fácil perceber o mas oculto em minhas palavras, ou Robert podia sentir que existia um mas para mim? Como saber?
— Mas acho que ele está se perdendo no coração das pessoas... parece muito fácil dizer “eu te amo” pra qualquer um hoje em dia. As pessoas não entendem que amor tem a ver com devoção, renúncia, humildade... – hesitei novamente para analisar seu rosto.
— Continue, eu estou acompanhando seu raciocínio. – desta vez ele estava totalmente sério.
— Bom, acho que amor não tem a ver com presentes caros, sexo, noitadas, homem e mulher. Tem um pouco mais envolvido aí. Acho que amor tem a ver com se entregar, doar seu coração para o ser amado. – evitei olhar para ele, e fracassei claramente. — Como uma mãe entrega seu coração a um filho, ou como um pai que é capaz de dar seu único filho para morrer pela humanidade...
— Você acha que amor tem a ver com Deus, é isso? – ele parecia cético.
— Sim, acho. Não há como uma pessoa dizer que ama outra se não é capaz de amar a Deus.
— “Aquele que não ama seu irmão, a quem vê, como pode amar a Deus, a quem não vê?” – ele citou com ênfase esta passagem bíblica.
— Exatamente, – concordei – é hipocrisia!
Robert riu.
— Qual a graça?
— Não é nada! – ele balançou a cabeça e fechou seu sorriso apenas para si.
Eu quis insistir, mas não me sentia capaz de persuadi-lo, por isso mantive a boca fechada. O silêncio que se seguiu foi necessário. Estávamos pensando em nossa conversa, bom, pelo menos eu estava. Era estranho falar esse tipo de coisa com alguém, mas eu estava feliz por poder conversar com ele sobre coisas que faziam parte do que eu realmente era.
Ganhei mais uma pedra quando finalmente, depois de minutos pensativa, não no jogo, mas essencialmente no rumo de nossa conversa, movimentei minha dama.
— Tem certeza de que não precisará de sorte? – perguntei-lhe provocativa.
Ele deu de ombros, e parecia meio sério.
Eu tinha direito a uma pergunta e desta vez eu havia pensado no que iria dizer.
— Qual o seu maior medo? – perguntei lentamente.
— É uma pergunta muito boa! – disse ele pensativo e nitidamente pouco entusiasmado a me dar tal resposta.
Eu já me preparava para insistir com a pergunta e reivindicar meus direitos de acordo com as regras do jogo, quando ouvimos passos na sala.
— Devem ser minha irmã e minha tia. – afirmou Robert levantando-se e seguindo para o corredor.
Eu o acompanhei. O tabuleiro ficou abandonado na mesa, nosso jogo esquecido. Um constrangimento começou a me corroer por dentro ao pensar que talvez a tia dele não aprovasse minha presença ali sem sua permissão.
Quando chegamos a sala, eu as avistei, paradas perto do sofá.
__ Olá querido! – disse a mulher com um sorriso cativando quando nos aproximamos. Ela era bem bonita, cabelos castanho-dourados cortados na altura do pescoço, olhos castanhos e uma pele bem cuidada, parecia que tinha acabado de sair de uma limpeza de pele, seu rosto reluzia.
Usava um conjunto azul de algodão: saia lápis e um terninho curto, muito elegante.
__ Oi, tia! - Robert disse naturalmente.
— Você deve ser Heloísi – disse a mulher, depois de dar um beijo materno no sobrinho. — Rob me falou de você! 
Senti o sol despertando dentro do peito, Robert Castro havia falado de mim? Tenho certeza de que corei.
— Muito prazer, sou Clarice, a tia dele!
— Ah, prazer! – aceitei sua mão estendida.
Ao lado de Clarice uma garotinha observava-me atentamente. 
— E essa é Sofia, minha irmãzinha adorável! – disse Robert, tomando a garotinha nos braços e enchendo-a de beijos.
Ela tentava se livrar dele, fingindo ter nojo dos beijos que ele lhe dava. Fiquei deliciada com a cena e desejei secretamente ser Sofia por um minuto, ou dois.
— Oi! – disse ela, já fora do colo do irmão, agarrada ao braço da tia que também sorria.
— Oi! – respondi, tentando afastar aquele pensamento ridículo.
— É um prazer te conhecer, Isi! – murmurou ela, com a vozinha musical e animada. Ela
realmente tinha me chamado de Isi?
— Igualmente! – sussurrei de volta, um pouco sem graça por ela estar me encarando.
Sofia devia ter uns sete ou oito anos. Seu cabelo era de um castanho-escuro brilhante, com grandes cachos caindo-lhe pelos ombros e suas feições em nada faziam lembrar o irmão mais velho. Era linda, evidentemente, porém, era uma beleza diferente da de Robert, mais sutil, menos desconcertante. Apenas seus olhos pareciam com os do irmão, não porque tivessem o mesmo tom enlouquecedor de azul acinzentado, não, seus olhos eram bem castanhos, mas
pareciam com os de Robert porque continham o mesmo brilho vivo e cheio de vida. Olhos quase incomuns. Seu rosto era arredondado, os lábios cheios e pequenos como os de uma boneca e a pele rosada e fina. Ela usava um vestido amarelo com uma fita de cetim passando acima do busto, a mesma fita adornava o cabelo delicadamente. Não era o tipo de roupa que
as crianças que eu conhecia costumavam usar. Era recatada demais.
Lembrei-me de repente que aquela garotinha não tinha mais os pais. Senti uma pontada de tristeza no coração, por ela.
Como ela podia suportar, sendo tão pequena e infantil? Observei-a por um instante e não
consegui enxergar nenhum vestígio de tristeza em sua expressão. Ela sorria genuinamente, enquanto agarrava-se ao braço da tia. Não parecia uma criança infeliz.
Clarice convidou-me para um lanche na casa principal. Achei aquilo tão burguês, mas não
ousei recusar.
Passei uma tarde agradável na companhia de Robert e sua família. Senti-me à vontade
enquanto falava de minha antiga vida para Clarice. Robert apenas observava enquanto sua tia e eu conhecíamos mais uma a outra.
Algo que não pude deixar de notar foi a forma como Sofia se comportava diante de Clarice.
Ela praticamente gravitava em torno da tia, o tempo todo tocando seu rosto, mexendo em seu cabelo... Como se tivesse necessidade de verificar que a tia era mesmo real e ainda estava ali, ao seu lado. Como se tivesse medo de que a qualquer momento a tia desaparecesse de sua vida. Como seus pais haviam desaparecido. Mas ainda assim, eu não conseguia encontrar tristeza em seu rosto e isso me deixou aliviada.
Senti certa insatisfação quando percebi que precisava ir embora, já havia passado tempo demais importunando a família de Robert, se bem que, se dependesse de mim, ficaria naquela casa até que me expulsassem a pontapés, e Sofia parecia partilhar de minha insatisfação, reclamou quando caminhei com Robert até o carro. Ela havia ficado boa parte do tempo, quando não estava grudada na tia, grudada em mim.
–– Desse jeito, Isi nunca mais vai querer voltar aqui! – observou Clarice, quando a sobrinha relutou em soltar minha mão antes de eu entrar no carro com Robert. Clarice nem desconfiava que nada me faria recusar um convite para voltar àquela casa. 
Robert me levou embora e parecia que poderíamos nos tornando amigos. Fiquei feliz com essa possibilidade, estávamos passando do estágio de parceiros de trabalho, para uma relação menos formal.
__ Elas gostaram de você! – comentou ele, enquanto me entregava minha bicicleta, depois de estacionar do outro lado da rua.
__ Também gostei delas! – confessei sorrindo. “Mas gosto mais de você”, era o que eu pensava, mas jamais teria coragem de dizer.
Atravessei a rua correndo e empurrando minha bicicleta e quando cheguei ao outro lado e olhei para trás, Robert já se afastara o suficiente para me fazer sentir saudades.
Minha irmã não estava em casa quando cheguei. Verifiquei meu celular, e havia uma mesnsagem dela, avisando que depois do hospital, passaria no asilo para alguns procedimentos de rotina.
Eu me sentia agitada demais pra conseguir ficar em casa sozinha. Então decidi ir me encontrar com Lena, já que a casa de repouso ficava a poucos quarteirões do apartamento.
Segui pedalando pelas ruas movimentadas, e menos de dez minutos depois, eu estava de frente para um grande portão de grades de ferro, lendo a inscrição de apresentação na placa no alto do muro: “Lar para idosos Sta. Inês ”. Apertei o interfone, ao lado do portão, e uma voz meiga de mulher atendeu imediatamente.
Eu lhe expliquei quem eu era, e ela autorizou minha entrada. O portão estalou mecanicamente algumas vezes e começou a correr pelos trilhos.
Entrei empurrando a bicicleta e segui alguns metros pelo chão de cimento até um outro portão de ferro, muito menor que o
primeiro. Uma mulher baixinha e corpulenta veio caminhando em
minha direção, segurando um molho de chaves nas mãos.
— Olá, querida. Sou Amália, diretora administrativa do Lar! – disse, estendendo-­me a mão cortesmente, depois de me
abrir o portão.
— Heloísi Silva! – apresentei­me. Seu aperto era firme.
— Você se parece muito com sua irmã  – afirmou ela, caminhando de volta pelo corredor por onde viera. Eu a segui.
Notei que ela mancava de uma perna. Era um movimento sutil, mas ainda assim bastante perceptível.
— Helena é um verdadeiro anjo para nós. Algumas pessoas nunca entram num asilo por não terem nenhum parente ali dentro, mas elas não sabem a importância que uma visita pode ter na vida de quem mora numa cidade cercada por muralhas.
— Eu entendo! – confessei.
— Seria maravilhoso se todas as pessoas gastassem um minuto de seu tempo umas com as outras, se parassem um momento para ouvir o que as outras pessoas têm a dizer. – ela suspirou e um vestígio de irritação queimou em suas bochechas. — Sabe, as pessoas que vivem aqui só precisam de alguém com um pouquinho de paciência para ouvi-­las por alguns minutos, nada mais lhes dá tanto prazer quanto ter alguém com quem conversar.
Assenti uma vez, um pouco desconfortável com o desabafo inesperado.
— Confesso que não tenho ideia de onde sua irmã possa estar, mas fique à vontade para procurá-la. Aqui fica a ala feminina. – disse, quando passamos por um arco de madeira e entramos em uma sequência de corredores mal iluminados, cheio de portas enumeradas. — Do outro lado fica a ala masculina, disse parando de andar. — Você pode ficar à vontade, querida. Entre no quarto que quiser. – ela sorria e suas bochechas brilhavam, esticadas pelo
riso. — Não posso te acompanhar, tenho que voltar para o meu escritório. Tenho tanta coisa pra fazer... – ela já caminhava
para longe de mim, perdida em meio a suas tarefas de administradora.
Vaguei pelos corredores silenciosos. O cheiro era bem peculiar: uma mistura de talco mentolado, mofo, colônia, urina, naftalina,
leite quente, tudo misturado, formando um novo cheiro que era quase enjoativo.
Passei por algumas portas fechadas e não ousei bater em nenhuma. Andei em silêncio, pelo corredor comprido e de repente ouvi um “Olá”, baixo e cansado. Virei-me, e me deparei com uma porta entreaberta e no fundo do quarto, dois olhinhos enrugados me sondavam pela fresta. Aproximei-­me da porta e a abri devagar.
— Olá! – repetiu a voz cansada, escondida entre as cobertas.
— Oi! – murmurei timidamente, sentindo-­me meio intrusa.
— Chegue mais perto. – pediu. — Deixe-­me ver seu rosto! – caminhei até a beira de sua cama de ferro. — Eu não te conheço! – afirmou, depois de me analisar com minúcia.
— Não, a senhora não me conhece. É a primeira vez que venho aqui. – falei, temendo que ela me expulsasse dalí por não ser uma conhecida.
— Como se chama? – ela quis saber.
— Isi.
— Você é muito bonita, Isi! – elogiou com um sussurro. Sorri como agradecimento.
— Sou Georgina! – ela hesitou um instante, depois voltou a falar.
— Não quer se sentar um pouco? – ofereu, apontando para uma cadeira de palhinha ao lado da cama. Arrastei a cadeira e me sentei de frente pra ela.
A senhora encarou-­me num silêncio constrangedor. Corri os olhos pelo pequeno quarto, buscando alguma coisa pra falar, alguma coisa que tirasse os olhos dela de cima de mim. O quarto era pequeno, havia a cama, a cadeira de palhinha, um criado mudo e, no canto esquerdo perto da porta, uma cômoda empilhava alguns frascos vazios de perfumes, e um porta­-retrato prateado com a foto em branco e preto de um garoto com cabelos negros e penteados para trás. Ele não estava sorrindo, mas dava a impressão de que estava feliz.
— Quem é aquele? – perguntei um pouco sem jeito, apontando para o garoto que nos
observava. Ela sorriu, depois suspirou. Então eu soube que ele devia uma pessoa muito
importante.
— Ele é lindo, não é? – sussurrou ela, como se não quisesse que ele a ouvisse. Concordei com uma aceno de cabeça, ainda olhando
o retrato. O garoto era mesmo muito bonito, uma beleza familiar.
— Tomas Ardi. – disse Georgina. – A pessoa mais incrível que já conheci...
Eu não precisava mais procurar um assunto pra puxar conversa, Georgina tinha assunto suficiente para nós duas.
— Eu devia ter mais ou menos sua idade quando nos conhecemos, quando o vi pela primeira vez, – ela sorria enquanto falava, e seus olhos ganharam um brilho jovem – Tomas usava uma camisa branca abotoada até em cima, seu suéter de algodão e calça cáqui. Apaixonei-­me nesse instante. Ele também gostou de mim, disse mais tarde que nunca tinha visto um rosto como o meu.
Enquanto ela falava, comecei a reparar em seus traços. Georgina parecia ter por volta de oitenta e poucos anos de idade, e devia mesmo ter sido muito bonita quando jovem. O rosto era bem anguloso, mas muito delicado, a pele, apesar de murcha e marcada por valetas profundas do tempo, conservava certo frescor. A cabeça, recostada na fronha bordada, era coberta por uma penugem longa e prateada – cor de nuvem ao sol. Não era difícil enxergar naquele rosto a beleza que o tempo lutava para ocultar.
Ela fechou os olhos e ficou em silêncio por um longo tempo, tanto que achei que talvez tivesse dormido, mas então ela voltou a falar.
— Só se conhece o verdadeiro amor uma única vez... foi o verão mais incrível que passei na vida. – ela agora encarava a fotografia sem piscar. — Mas um dia teve fim, e meu Tonas partiu! – fingi não perceber a lágrima que rolou pelo seu rosto até a fronha.
— P-­partiu? – eu não sabia ao certo o que aquela palavra poderia significar. Não sabia
quantas doses de eufemismo Georgina poderia ter usado para aplacar sua dor.
— Ele foi embora, me abandonou! – explicou ela, acho que entendendo minha dúvida.
— Embora... para onde? – não faria nenhuma diferença se eu soubesse, mas então por que de repente eu precisava saber, como se Tonas tivesse abandonado a mim? Georgina riu, outra lágrima manchou a fronha.
— Eu daria minha vida para saber! – confessou. Os olhos encaravam o garoto a sua frente. — Só o que ele me deixou foi
uma carta e essa fotografia. É tudo o que tenho, tudo o que restou!
— E você nunca mais teve notícias dele? – por que minha ansiedade, sempre tão grande, parecia maior agora?
— A última vez que o vi era o primeiro dia de outono. Tonas disse que jamais haveria espaço em seu coração para outra pessoa...
Depois disso nunca mais houve sol.
— E você nunca conheceu outra pessoa, nunca se casou? – perguntei meio perplexa com minha própria tristeza diante da
história.
— Ah, sim, duas vezes. Sou viúva e divorciada – ela sorriu consigo mesma. — Fui uma mulher muito feliz, mais feliz do que acreditei que seria capaz de me sentir um dia. – seus já olhos não brilhavam como quando falou de seu amado Tonas. Por que
aquela resposta não me aliviou? Por que eu sentia que se estivesse no lugar de Georgina teria morrido de solidão?
— Teve filhos?
— Um, do primeiro casamento. Leandro, um rapaz lindo e muito ocupado. Mora em São Paulo com a esposa e minha neta, Natalia.
Ele trabalha numa dessas empresa que vendem essas coisas de tecnologia para computadores, sabe? Jovem e bem ­sucedido... – ela parecia orgulhosa do filho, mas havia uma ponta de tristeza em suas palavras. Eu não quis perguntar por que ele a havia colocado ali. Se ela quisesse me contar, tudo bem, mas eu não perguntaria.
Ela não contou.
Fiquei mais alguns minutos no quarto com Georgina, ela gostava muito, muito de conversar, e então lembrei-me que precisava procurar por minha irmã.
Despedi-me de Georgina, e prometi voltar para visitá-­la no dia seguinte.
Voltei a andar pelos corredores com o pensamento em Tomas Ardi. Em como ele fora capaz de abandoná-­la mesmo dizendo que a amava profundamente. Que tipo de amor faz uma coisa dessas?
Desci por uma rampa antiderrapante e saí num jardim sem flores, onde havia uma fonte no meio, com a imagem de Sta. Inês esculpida em gesso.
Sentado na borda da fonte, estava um velhinho de cabelos de algodão. Ele me sorriu, com os poucos dentes que lhe restavam, quando apareci na entrada do jardim, por isso eu me aproximei.
— Olá! – eu disse com simpatia.
— Quem é? – perguntou ele, sem olhar diretamente para mim. Inclinei-me para ver melhor seu rosto. Ele piscou uma vez e encararou o nada. Passei a mão na frente de seus olhos, e eles continuaram fixos no vazio. Ele era cego.
— Sou Isi! – apresentei­me tocando seu ombro – Como se chama?
— João Ribeiro! – apresentou-­se ele, virando­-se para mim e fitando meu rosto sem ver.
— É um prazer conhecê-­lo, seu João!
Ele permaneceu com os olhos em mim. Se não fosse pela vaga ausência de brilho em suas íris e pela falta de movimento em seu
olhar, eu juraria que ele podia me enxergar.
Não tivemos tempo para uma conversar longa. Amália havia encontrado Lena, e avisado que eu estava a sua procura. Lena me mandara um torpedo, avisando que já me esperava do lado de fora.
Prometi ao seu João que voltaria, assim que pudesse. Antes de me afastar, ele disse que criava poesias usando um pequeno gravador de mão, e que depois algum funcionário gentil ou um visitante paciente as passava para um caderno de capa dura. Ele perguntou se eu me importaria de lhe fazer este favor, um dia desses, e eu disse que ficaria feliz em ouvir suas poesias e transcrevê­-las para o caderno quando ele quisesse.
Foi difícil enfiar minha bike no porta malas do carro da minha irmã. Na verdade, não posso dizer que conseguimos, e Lena teve que seguir a trinta quilômetros por hora até em casa.
Fui dormir com o rosto de Tonas Ardi na cabeça.

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O dia seguinte na escola foi intenso. Tivemos chamada oral na aula de Geografia do segundo tempo. Fui péssima, o que me deixou irritada. Tevi Cheng respondeu a todas às perguntas que o professor lhe fez como se estivesse com o livro aberto diante do nariz. Era covardia ele estar na mesma turma que o resto de nós.
Na aula seguinte, Beatriz torrou toda minha paciência com perguntas a respeito de Robert.
Respondi da forma mais amigável que pude, não queria chateá-la, mas a verdade era que já eu não suportava mais ouvi-la falar com tanto amor do garoto que tomava conta de cada pedacinho de meu coração e, no entanto, que direito eu tinha de impedi-la de amá-lo?
Meu coração doía no peito ao perceber que eu estava sendo falsa com uma pessoa que havia confiado tanto em mim. Eu devia ser forte e contar toda verdade a ela, mas como fazer isso sem magoá-la. Beatriz jamais continuaria sendo minha amiga se eu lhe confessasse meus sentimentos. A antipatia dela por Amanda era prova disso.
O que eu devia fazer, então?
Não queria perdê-la, afinal, ela tornara-se realmente especial pra mim, mesmo em tão pouco tempo. 
Na saída Robert veio falar comigo, queria saber se eu estaria ocupada aquela tarde. Eu disse que tinha um compromisso, mas que ele poderia me acompanhar se não se importasse. Eu não conseguia pensar em outra forma de passar o tempo que não fosse ao seu lado.
Robert aceitou meu convite e mais uma vez tive que dispensar a companhia de Marcos para casa. Chateava-me ter que fazer isso, mas eu não tinha escolha.
— Lar para idosos Sta Inês? – indagou Robert, fitando a placa de apresentação.
— Vamos! – eu disse sorrindo e descendo do carro depois de  passarmos pelo portão de
ferro.
Lena estaria no hospital aquela tarde, mas eu havia prometido a Georgina que voltaria para visitá-la.
Amália não estava em seu escritório e uma mulher loira nos atendeu e nos deixou entrar.
Robert ficou o tempo todo ao meu lado, observando-me em silencio.
— Olá, Georgina! – eu disse, quando a encontramos no jardim da fonte.
— Minha querida, você chegou! – ela me abraçou com ternura, depois percebeu a presença imóvel de Robert ao meu lado.
Ela o encarou por um momento, depois virou-se para mim sorrindo
— Este é seu namorado? – perguntou, com um toque de malícia na voz.
Senti meu estômago rolar para todos os lados dentro de mim, minhas bochechas queimaram e desejei mergulhar a cabeça na fonte pra apagar o fogo do rubor.
— Não, não. Este é Robert e somos... amigos! – murmurei deprimida por sermos apenas isso.
— É um prazer conhecê-la! – disse ele educadamente.
Georgina olhou-me de um jeito que fez o rubor aumentar. Com certeza ela o achara bonito, talvez tão bonito quanto seu Tomas. Conversamos por uma boa meia hora. Georgina era muito espirituosa e engraçada, ficava o tempo todo fazendo piadas sobre os outros idosos que passavam por nós. Apesar do clima descontraído, eu conseguia captar os olhares indagadores dela, a cada vez que Robert Castro se virava para mim, e sorria.
— Éh... vou mostrar o restante do lar pra ele! – eu disse apenas para me livrar daquele olhar acusador.
Saí andando pela ruazinha de pedras que ia para a ala masculina, Robert ao meu lado, atento a tudo. Passamos pelo refeitório e entramos nos corredores masculinos. Todas as portas estavam fechadas. Fomos para a sala de recreação, onde alguns idosos assistiam à reprises de Tom e Jerry.
Ficamos alí, assistindo ao desenho animado com eles, depois uma funcionária chegou
empurrando um carrinho com várias tigelas sobreposta e uma vasilha com sopa. Era hora do jantar dos “velhinhos mais velhos”, aqueles que não conseguiam comer sozinhos.
Robert e eu nos prontificamos a ajudá-la. Fiquei surpresa por ele tomar a iniciativa. Ele foi extremamente atencioso, e eu não conseguia deixar de achá-lo ainda mais lindo vendo-o assim, tão cuidadoso com alguém que realmente precisava de cuidados.
Como não admirá-lo? Como não me sentir apaixonada por ele?
Robert me deixou em casa aquela tarde afirmando ter adorado o programa.
— Achei muito legal... Obrigado, pelo convite. - ele estava sorrindo - É nobre, saber estender a mão ao próximo, e não é comum vermos pessoas da nossa idade fazendo isso. Você é mesmo uma garota incrível, Isi!
Pronto, era tudo o que eu precisava ouvir para dormir bem e feliz.
Quando Lena chegou do hospital aquela noite, eu já estava deitada e pronta pra pegar no sono.
Eu nem quis jantar, estava satisfeita demais em meu ego para querer comer alguma coisa.

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