Capítulo 1

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Era um lindo fim de tarde. O céu azul, com nuvens banhadas de um tom rosa, contrastava com a paisagem verde das montanhas do sul. Apesar da hora, o vento estava ameno, e entrava pela janela aberta da cozinha, trazendo o cheiro das tulipas do jardim, até a cadeira onde Rosane estava sentada. Mas nem mesmo a beleza do momento podia trazer algum conforto para ela neste momento.

Ela aguardava por uma visita, alguém que por longos anos ela não via. Rosane estava segurando sua caneca de café a pelo menos meia hora. Olhava para o líquido aguado, balançando levemente, como se esperasse que ele fosse trazer suas respostas.

Mas seus pensamentos estavam distantes dali. Muito longe da pequena cidadezinha de Fribourg, na Suíça. Não, ela nem sempre morara ali. Lembrava-se dos dias quentes em que saía de casa, das noites serenas em que participava de passeios ao luar, da família... E tudo havia sido tirado dela, sem razão, sem um prévio aviso, simplesmente como se nada do que tinha importasse. Uma noite qualquer, depois de um dia rotineiro, um sonho horrível invadiu sua noite. Sangue, anjos, pessoas inocentes... E como se uma péssima noite não fosse o suficiente, o pesadelo se repetiu por mais uma noite, depois outra... Até que as noites viraram semanas, meses. Quase enlouqueceu. Mas um anjo entrara pela janela de seu quarto, Amitiel. Assustou-se, mas o anjo trouxe-lhe calma, como se tudo no seu interior fosse abrandado por uma visão tranquilizadora. Não havia luzes celestiais, trombetas, ou sequer asas. Apenas um homem comum, com calça e blusa feitos de linho num tom champagne.

Viera até ela e a traíra. Prometera-lhe poderes incríveis, e proteção, caso contasse seu sonho terrível. Acreditara nele. Achou que poderia confiar em um anjo. Mas quando eles vieram do céu, ela viu toda a sua vida esvair-se de si. Viu o exato momento em que perdera o pai, já idoso, e sempre com um sorriso no rosto. Viu a mãe caída em frente ao fogão, na cozinha simples, onde fazia a tradicional sopa para a janta. Viu seu irmãozinho ajoelhado em frente a um homem enorme, de braços fortes, cobertos por um manto vermelho, de cetim. Esse mesmo anjo a viu debaixo de uma enorme mesa de madeira feita à mão, mostrando claramente que não era uma obra profissional. Ela tentou fugir, mas assim que virou de costas, o anjo apareceu na sua frente, como em um passe de mágica. Mal viu a mão subir. Apenas sentiu o ar faltando em seus pulmões. A dor era dilacerante em seu corpo suspenso na mão impiedosa do anjo. Mas ela não morria. A visão era turva, e os sons longes, mais ela viu um cintilar no olhar do anjo, um cintilar azul profundo. O olhar enraivecido do anjo assumiu uma forma analisadora e mais calma. Soltou Rosane no chão como se ela fosse um ser incapaz de sentir dor. Ela puxava o ar com força, mais só conseguia tossir e sentir a garganta dolorida. Apagou. Ouviu vozes ao longe. Uma pancada. Uma mancha vermelha que saía de sua boca. Pensou estar morrendo, finalmente. Foi quando viu uma luz intensamente azul. Parecia ser o fim de seus sofrimentos. Mas foi aí que eles começaram. Acordou em um país estrangeiro, num lugar que mais parecia uma fazenda abandonada. Amitiel a deixou no chão, e simplesmente partiu. Não lhe deu satisfação, ou sequer pediu perdão. Simplesmente partiu.

Um barulho causado pelo vento, agora mais forte, na antiga porta de madeira a fez despertar de seus devaneios. Olhou para a porta que mal conseguia permanecer fechada. Ninguém. Talvez ele não tivesse coragem de vir depois de tantos anos. Depois do que fizera. Mas ela sabia que pensar nisso não acalmaria seu coração. Não, ela viveu tempo demais na terra, e mais da metade do tempo passou lidando com criaturas das quais os seres humanos apenas sonham. Como ela havia sonhado um dia.

Outro estalido na porta. Seu olhar cansado adquiriu um leve brilho alvo, quase imperceptível. O estalido repetiu-se. Ela sabia o que era, sabia quem era.

_Precisa de tanta cerimônia para entrar, Amitiel?

O estalido cessou. Passos vieram da frente da velha choupana. Um homem baixo, de vestes comuns entrou pela porta, parando na divisa entre os cômodos da sala e da cozinha. Seu olhar triste permanecia fitando longamente o chão surrado e sujo. Seu belo cabelo loiro e liso estava desalinhado e sujo. Seu rosto, cheio de fuligem, assim como sua roupa. Parecia ter saído de dentro de uma cova. Havia areia sujando seus dedos, e rasgos discretos pela roupa, por onde um deles, conseguia se ver uma considerável mancha vermelha. Uma espada estava embainhada ao lado do corpo, em um pedaço de couro e jeans, costurados de maneira irregular em um cinto comum. Sua respiração era calma e compassada, e apesar da aparência exausta, não havia sequer uma gota de suor em seu rosto.

_Sei que não me quer aqui. Não esperava que eu fosse voltar, não pelo mesmo motivo de antes.

_Não importa o que eu acho, não é? Veio para cumprir suas ordens, como sempre. Mas vejo que encontrou dificuldades pelo caminho... Miguel não veio com você?

_Miguel... Ele... Ele não pode sair, não agora. As coisas já não são como antes, ele já não é como antes...

_Amitiel, vejo em seus olhos o que procura. Sei por que veio até mim. Há coisas que nem mesmo o anjo da verdade pode esconder dos olhos de uma bruxa, ainda mais a bruxa que ele mesmo criou.

_Rosane, eu... Estou cansado. Não sei o que vê, ou não, mais eu preciso saber do sonho... - A voz de Amitiel tornou-se levemente angustiada. – Preciso saber o que fazer agora que eu desertei.

Rosane encarou pela primeira vez o anjo de frente.

_Desertou?

_A alta Cúpula está em uma sessão fechada para receber as ordens. Falam em acordos, e em mobilizar tropas. Mas fecharam todos os grandes guerreiros com eles. Mandaram a mim, comandando uma ordem pequena de cem anjos menores. Queriam que descobríssemos informações sobre certa organização baderneira de demônios. Um serviço simples, direcionado diretamente a mim. – Apoiou as costas contra a parede, e deixou seu corpo cansado deslizar até ficar de cócoras no chão. – Não era tão simples como pensávamos. Os demônios estavam em uma casa grande, no interior do Brasil. Chegamos sem fazer barulho, desembainhamos nossas espadas e estávamos prontos para acabar com a história, quando eles vieram... Dez anjos que eu não conhecia nos atacaram em nome de um demônio... Eles estavam organizados, tinham espadas celestiais... Espadas longas e afiadas, que tiraram a eternidade de oitenta dos meus irmãos... Quando um deles me acertou, o demônio veio até mim, e disse que a nova era chegaria em breve... Disse que os homens cantarão choros de anjos e demônios beberão sangue de glória...

_As palavras foram ditas... O olhar de Rosane estava perdido em medo. – A profecia, Amitiel, eles estão tentando cumprir a maldita profecia...

Pela primeira vez, o anjo olhou para o rosto de Rosane. Seus olhos pareciam ainda viver os momentos de dor e medo.

_Você nunca me explicou o que a sua profecia significa Rosane.

_Meu trabalho não é entender, é ver. Mas depois de cento e vinte anos sonhando o mesmo sonho, você começa a compreender o que ele significa. Veio aqui para saber o que fazer, não foi?

Amitiel virou seu rosto em direção à velha janela. Lágrimas mareavam seus olhos azuis acinzentados. Como não obteve resposta, Rosane prosseguiu.

_Profecias vem em imagens e palavras quase incompreensíveis, Amitiel. Com o tempo, você guarda aquelas imagens na cabeça, e começa a colocá-las em ordem. Como uma pessoa com amnésia tentando se lembrar do que aconteceu. Há uma parte que ainda não compreendi. Mas sei com toda a certeza de que você precisa tomar cuidado. – Rosane se levantou com certa dificuldade, após tanto tempo sentada. Tocou o parapeito da janela, correndo os dedos velhos sobre a madeira enegrecida pelo tempo. – Tempos difíceis virão, mais a frente. Esconda-se, não volte ao céu. Junte-se aos desertores e forme um exército, porque eles já se preparam para a guerra. Eles têm o primeiro ingrediente, não falta muito até que arrumem os outros.

Amitiel levantou-se e encarou a velha bruxa com os olhos curiosos. Ela sorriu, e prosseguiu:

_O que falta é apenas um colar de metal celeste, forjado no fogo do inferno, por uma alma inocente condenada.

Amitiel olhava para ela com os olhos espantados. Parte do cansaço havia dado lugar à curiosidade. Sempre ouvira falar dos ingredientes para a criação de um novo ser, que segundo as histórias, destruiriam o controle dos anjos sobre o céu, e traria a nova era não relatada até os homens. Se fosse verdade, a Alta Cúpula estaria agora mesmo planejando um contra-ataque, tentando localizar o ingrediente restante para impedir o desastre. Mas Amitiel sabia que para realizar a profecia, seria necessária a ajuda completa dos três mundos. Seria necessária a ajuda de um anjo. Anjo este, que foi banido há muito anos atrás, logo após Miguel anunciar a profecia de Rosane, depois de dizimar sua família. Para cumprir a profecia, eles iam precisar do anjo perdido. Iam precisar de seu irmão mais leal. Iam precisar de Anriel.



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