A demônia podia sentir cada músculo queimar e latejar dentro de seu corpo. Tinha dois cortes extensos pelas costas, que deixavam escapar uma quantidade grande demais de sangue. Havia também incontáveis hematomas pelo corpo, além das escoriações e dos ossos quebrados. Mal conseguia andar, tendo que se apoiar nas paredes para seguir em frente. Quase havia se esquecido de sua missão ali, após tantas provas pelas quais havia passado. Perdera completamente a noção de tempo, não sabendo dizer se estava no sétimo inferno há horas ou dias. Porém as vozes eram a prova maior. A seguiam por todos os lados, murmurando em sua mente seus desejos mais desesperados. Ordenavam-lhe que pedisse ajuda, simultaneamente que lhe diziam para desistir. As várias vozes haviam se tornado mais intensas e audíveis, chegando a omitir os gritos que atravessavam as paredes.
Assim que a demônia se viu novamente em uma sala circular de pedra, caiu de joelhos, chorando. A exaustão estava no seu limite, e seu corpo não mais conseguia obedecer aos comandos recebidos. Os músculos haviam travado, a maioria deles machucado demais para mover-se, outros simplesmente sem forças. Sentia o sangue encharcar suas vestes, que agora não passavam de trapos tingidos de vermelho escuro.
A sala estava completamente vazia, e dessa vez a luxúria não conseguia avistar uma saída. Continuava ajoelhada no chão cinzento e marcado. Observando o local, viu as paredes com marcas de garras e pancadas. Grandes rachaduras que iam do chão até o teto. Antes que tentasse se levantar, uma voz estridente ressoou em sua mente.
"O que você realmente quer é descansar. Descansar por muito tempo."
A demônia olhou em volta, buscando o dono da voz. Sem ainda ver alguém, outra voz, mais grave, murmurou outra frase.
"Desista. Não pode agüentar mais, e sabe disso."
A luxúria começou a se levantar, caindo novamente ao chão, perdendo as forças. Precisou colocar as mãos no chão para evitar cair de bruços. Outra voz, mais lamurienta e pesarosa ressoou pela sala.
"Quer acabar com seu sofrimento. Quer que a dor termine de uma vez por todas, não é?"
Outras vozes começaram a ressoar, e em segundos se tornaram um burburinho alto e incompreensível. A demônia precisou tampar os ouvidos com as mãos, tentando evitar ouvir as vozes, em vão. No meio das frases, uma voz idêntica a sua podia ser ouvida, claramente repetindo a mesma frase, cada vez mais alta.
"O que você realmente quer?"
As vozes continuaram, mas a frase dita pela sua própria voz se repetia, alta e carregada de rancor.
"O que você quer? O que realmente quer?"
A demônia sentiu sua exaustão dominar sua mente por completo.
"Diga o que você quer!"
A última frase foi praticamente um grito, e a demônia, cansada e machucada, gritou em resposta para as paredes cinzentas e frias.
_Quero sair logo daqui! Quero encontrar aquele maldito colar, e sair logo daqui!
As lágrimas se projetavam pelos olhos, escorrendo pelo rosto sujo e machucado da luxúria. Assim que respondeu, as vozes se silenciaram, e apenas a sua voz pode ser ouvida.
"Se é isso que quer, é isso que será feito."
A demônia abriu os olhos, e se viu ainda ajoelhada, mas em uma sala enorme. As altas paredes de pedra eram iluminadas apenas pelo fogo de um forno construído no meio da sala. Por elas, a demônia podia ver várias entradas de corredores lapidados grotescamente, sem escadas ou portas, colocadas de forma aleatória cada vez mais altos, até onde a visão alcançava.
Na base das paredes, celas haviam sido construídas, e todas estavam constantemente incendiadas. Mãos e braços completamente carbonizados se projetavam por entre as celas, pedindo o auxílio da demônia, que caminhava lentamente, assustada com a cena de horrores em sua volta. Era tanta dor e sofrimento, que mal conseguia se lembrar de completar sua missão, e até mesmo sua dor foi aplacada pelo pensamento dos sofrimentos daquelas almas condenadas. Um tilintar alto de metal pode ser ouvido, fazendo com que ela parasse de andar. Outro tilintar. A demônia se virou lentamente, para olhar a razão do barulho. Mais um tilintar, e uma chuva de faíscas caíram pelo chão. Um homem de estatura mediana, impressionantemente forte, batia um martelo enorme de ferro contra uma peça de metal pequena, que chorava fogo cada vez que era acertada. A voz grave do ferreiro fez com que a demônia sentisse um calafrio.
_O que quer?
_Vim para pegar o colar de Órios.
A voz da luxúria saiu tão baixa e cansada, que ela temeu que o homem não a tivesse ouvido. Respondendo sua pergunta, o homem falou novamente.
_E o que oferece a mim?
_Preciso do colar para sair daqui. – A exaustão fazia com que a voz de demônia quase não saísse, dificultada ainda mais pela sua garganta seca.
_E o que oferece a mim, em troca do meu colar?
Ao notar que aquele homem que continuava a trabalhar enquanto ela falava era Órios, as palavras fugiram de sua mente. Tomada pelo completo desespero, gritou em resposta com o resto de forças que possuía.
_Quero o colar! Quero o maldito colar! Quero voltar a superfície, quero voltar ao meu lugar no inferno superior! Quero matá-lo arrancando suas vísceras, e arrancar esse maldito colar de suas mãos mortas! Quero voltar a terra enquanto sua carne apodrece e queima nesse inferno! Quero... Quero...
A demônia sentiu sua força vital desaparecendo de seu corpo. Caiu novamente de joelhos, tombando o corpo inerte para frente, com o rosto de encontro com o chão de pedras quentes, respingado de metal derretido.
_Se você quer, então tente. – Órios interrompeu brevemente seu trabalho, olhando de esgueio para o corpo tombado ao lado de sua forja. – Mas eu criei esse lugar, e eu dito as regras aqui. – O ferreiro voltou a trabalhar. – Quer me matar? Pode tentar se quiser, mas a morte não se atreve a vir até aqui. Não mais.

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A Profecia
General FictionE se uma antiga profecia revelada aos Arcanjos pudesse colocar um fim a hierarquia celestial, e trazer uma guerra entre anjos e demônios? O verdadeiro problema é quando os próprios anjos começam uma guerra entre si, e os demônios se aliam as forças...