Capítulo 26

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A demônia sentiu o calor antes mesmo de abrir os olhos. O chão era completamente seco, apesar de não haver luz. Abriu os olhos, mas sua visão estava completamente turva. Apoiou as mãos no chão para tentar se levantar. Com muito esforço, conseguiu se por em pé. Olhou em volta, e se viu em um corredor longo e sinuoso, de pedras grosseiramente colocadas uma sobre as outras. Assim que soube onde estava, o pânico tomou conta de seu interior. Desde a época da criação, quando foi banida ao inferno, ela estivera presa em uma sala sem janelas ou portas, de onde tinha uma visão parcial do que acontecia na terra. Mas o lugar onde estava era diferente. Estava no sétimo inferno, um lugar onde monstros e demônios primitivos se retaliavam para sobreviver, intercalando com torturas e provas cruéis, onde eram despedaçados, quebrados e cortados, mas não podiam morrer. Até mesmo a morte havia abandonado aquele lugar, assim como a piedade e a misericórdia.

Começou a andar em frente pelo sinuoso corredor, com o desespero estampado em seu semblante. Podia ouvir ao longe os gritos, os urros, as lamúrias. Sentia o cheiro fétido de carne queimada, sangue e dor por todos os lados. Parecia não haver saída daquele labirinto. Apoiou-se contra a parede, e assim que o fez, fumaça saiu de onde sua pele entrara em contato com as pedras, causando-lhe uma pontada de dor. A primeira dor no sétimo inferno. Afastou-se e olhou para as palmas das mãos. Estavam levemente queimadas, mas nada grave. Olhou novamente para a parede, mas não era mais feita de pedras. Era uma parede lisa, por onde um líquido viscoso escorria. Afastou-se a passos lentos, horrorizada e amedrontada. Olhou em volta, e se viu presa em uma sala de formato circular, com uma clarabóia no alto em forma de cruz, e algumas pedras sobressalentes despontavam do chão. O resto era apenas cinza e liso, sem nenhuma iluminação a não ser aquela na qual a luxúria se encontrava agora. Temia em seu coração aquelas provas, e não era por menos.

Ficou alerta, olhando em volta a procura de um inimigo. Um ruído grave encheu a sala, e das paredes pequenas fissuras começaram a aparecer, formando uma trilha pelo líquido viscoso que dava acesso a clarabóia, e outra a uma porta, que estava a três metros do chão. A demônia começou a entender sua prova. Deveria chegar a uma das duas saídas se quisesse vencer. Não possuía armas, nem mesmo sabia quem iria enfrentar, mas descobriu assim que a porta se abriu, e dela caiu uma criatura esverdeada, com um par de asas totalmente machucadas, impedindo-o de voar. Tinha os olhos completamente negros, e o peito coberto por marcas e feridas ainda abertas. Nem sequer olhou em volta para saber aonde estava. Não era racional para isso. Viu apenas a demônia, paralisada de medo e terror no centro da sala, debaixo da luz da clarabóia. A criatura caminhou em sua direção, e a demônia correu em direção a parede com a escada improvisada. Pretendia chegar até a porta de madeira. A criatura continuou caminhando em sua direção, aumentando a velocidade. A demônia se viu sem alternativas, e segurou em uma das fendas abertas na parede, mas esta estava coberta com o líquido verde, e suas mãos queimaram instantaneamente, provocando uma dor aguda, que a fez gemer. Mas o som dos passos da criatura que a perseguiam era assustador demais para que continuasse parada. Agarrou novamente a primeira fissura, enquanto o líquido queimava sua mão até os ossos. Colocou a outra mão na fissura superior, e tentou se apoiar para subir. A dor era tamanha, que não conseguiu na primeira tentativa, e a criatura agarrou-a pelos pés, arremessado-a contra a parede oposta. Pode ouvir o som de seus próprios ossos estalando contra as pedras, e o ar sumiu de seus pulmões por alguns segundos. Vendo que a criatura continuava vindo em sua direção, a demônia correu até o lado oposto, se segurando novamente nas fissuras, e começando a escalada. Quando a criatura chegou até a parede, a demônia já estava fora de seu alcance, com o líquido escorrendo pelos seus braços, queimando grande parte deles. Era como um ácido que corroia sua pele e carne, causando espasmos de dor. Olhou para baixo e pode ver que a criatura temia a parede, mas mesmo assim, começou a golpeá-la com força brutal. A demônia sentiu a parede estremecer com as investidas, e as fissuras começaram a rachar. Estava próxima a porta quando uma de suas mãos escorregou, formando um corte profundo, que logo começou a ser preenchido pelo líquido, causando-lhe uma dor inimaginável. Voltou a colocar a mão na fenda, e a criatura novamente investiu contra a parede, fazendo o corte se abrir ainda mais. A dor foi demais, e a demônia caiu de costas contra o chão frio e agora escorregadio pelo ácido que queimou suas roupas, chegando a deixar sua carne parcialmente exposta e levemente queimada. Estava se levantando, novamente debaixo da iluminação fornecida pela cruz aberta no telhado. Assim que a criatura se aproximou dela, fechou os olhos e esperou pela próxima investida. Abriu-os novamente assim que ouviu a criatura silvar de dor. A luz da clarabóia parecia afetar-lhe após tanto tempo na escuridão. Correu em direção a parede, quase totalmente queimada, mas superou a dor e conseguiu voltar a escalar, mais lentamente que a primeira vez.

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