Capítulo 2

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A chuva caía torrencialmente. Era verão, e isso é comum nessa época do ano no Brasil. A noite já havia chegado fazia um bom tempo, eram quase duas da manhã. Na pequena cidadezinha de Santa Rita, apenas um homem podia ser visto andando nas ruas nessas condições climáticas. Para quem o visse, era apenas um mendigo. Vestia calças jeans surradas e bem sujas, com rasgos nos joelhos. A camiseta preta era pelo menos duas vezes maior que seu dono, e possuía um corte de bom tamanho perto do ombro direito. Carregava uma mochila preta, aparentemente bem cheia, e andava descalço. Seus cabelos pretos estavam com aparência de oleosos, e sua boca estava repleta de rachaduras causadas pela água escassa.

Anriel descia uma viela larga e vazia de um bairro pobre, em direção a uma estrada sem pavimentação e sem iluminação pública. Não havia ninguém na rua, mas ele podia sentir um olhar sobre ele, uma sensação de estar sendo vigiado. Sabia que nenhum de seus irmãos ou traidores poderia encontrá-lo nessas condições. Estava protegido. Havia deixado de usar seus poderes, aprendera a viver como um humano, comendo, bebendo, trabalhando quando tinha a chance. Já tinha passado por pelo menos dez cidades diferentes no começo. E embora sabia que era arriscado manter um local fixo, aquela pequena cidade tinha algo de valor pelo qual ele mantinha uma secreta atração. Uma peça que poderia ser usada para concretizar a antiga profecia da bruxa de Amitiel.

Pensar nisso trazia-lhe tanta raiva, que lhe causava náuseas. Tinha sido condenado a essa vida miserável apenas por um humano. A profetisa de Amitiel. Miguel, pessoalmente, havia lhe nomeado como o anjo que traria a criatura à vida. Como poderia? Era um anjo guerreiro, sob as ordens diretas do arcanjo Gabriel. Tinha lutado ao lado do céu por longos séculos. Tinha estado em campos de batalha, como um servo fiel e leal desde o princípio dos tempos. Não sabia como funcionavam as visões de um profeta, era verdade. Eles eram problema dos anjos antigos, mas havia um humano profeta para cada anjo celeste. Ainda não havia encontrado seu profeta, mas sabia que ele teria um sinal, quando a profecia fosse revelada a ele. Talvez, essa fosse sua chance de se livrar das acusações jogadas contra ele. Poderia restabelecer seu posto, sua vida celestial, poderia voltar a usar seus poderes sem medo de que os anjos o localizassem e o destruíssem, como a uma mosca qualquer. Não, seria tolo pensar assim. Vivia agora como o pior dos humanos, se escondendo e se esgueirando pela noite, para evitar chamar a atenção.

A rua estava muito escura para um humano qualquer, mas Anriel tinha ainda alguns benefícios de ter nascido uma criatura alada celestial. Sua visão ainda era privilegiada. Saberia se alguém estivesse por perto. Andava calmo, como costumava fazer sempre que voltava ao seu esconderijo. A chuva agora havia diminuído, mas ainda mantinha uma fina e fria garoa. O chão enlameado deixava escorrer pequenos riachos de água pelos desníveis do chão. Depois de poucos minutos de caminhada, havia chegado à velha fábrica. Uma construção enorme, com parte destelhada e uma antiga pintura branca desgastada pelo tempo. Uma torre pequena se erguia ao lado da construção, por onde se via uma pequena parte quebrada do muro, com entulhos e lixo esparramados pela frente.

O local era frio e escuro, e bem afastado da cidade. Apesar de grande, a velha fábrica não tinha muitos departamentos separados, mas enormes salas onde ficava o maquinário antigo. Apenas a torre era isolada de todo o resto. Freqüentemente, o local era invadido por mendigos ou jovens querendo refúgio para se divertir a noite. Mas a torre nunca era o alvo. Era alta, Sem janelas ou portas, e o buraco na parede apenas servia para assustar os invasores, com medo de um provável desabamento. Era lá que Anriel se escondia havia dois meses. Era a primeira vez que ousava ficar no mesmo esconderijo por tanto tempo, mas era o local perfeito para vigiar sua nova obsessão. Anriel abaixou-se, retirou um grande pedaço de escombro e entrou, recolocando o pesado bloco no lugar. Apesar de sua visão, ainda sentia um frio no estômago, uma estranha sensação de estar sendo vigiado.

Subiu uma longa escadaria de pedra, onde mal se conseguia identificar os degraus. No alto da torre, uma antiga sala com um enorme forno de ferro tinha ganhado uma nova aparência. Desenhos e símbolos pichados ao redor de todas as paredes, em várias cores diferentes, e no centro, uma enorme chave de Salomão em vermelho.

Anriel jogou a mochila no chão e deitou-se em um amontoado de cobertores e papelões que lhe serviam de cama. Seus olhos azuis fitavam o teto escuro e úmido da torre. Não queria dormir. Não que precisasse de muitas horas de sono, mas como vivia igual a um ser humano, havia momentos em que o cansaço era muito, e ele precisava dormir. Era nessas horas que ele sonhava com ela. A mulher pela qual sentia uma forte ligação. Uma mulher que poderia ser um dos ingredientes na terra para cumprir a profecia.


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