Kaira estava deitada em sua banheira com água quente até o pescoço. A água havia ficado com uma cor avermelhada, pelo sangue que era retirado de sua pele. A pilha de corpos havia sido removida do quarto pelos anjos, mas as manchas vermelhas ainda permaneciam. Mesmo com a casa fechada, ela podia ouvir o vento uivando forte lá fora, e tinha consciência de que era pela sua presença. A hora se aproximava, e ela ainda permanecia sem notícias de Miguel, nem do anjo que seria o responsável pela profecia. Seguir ordens não era algo com que ela estava acostumada, mas aquele plano era realmente fantástico. Não pelas suas chances de funcionarem, mas as de falharem. Ele esperava conseguir domar a criança, deixando que ela matasse seu principal inimigo, do qual não lhe havia falado o nome. E esperava reinar sozinho no céu, com a criança ao seu lado. A criança com certeza mataria os anjos, mas a chance de matá-lo era tão grande, que parecia um fato confirmado. A recompensa para ela, é que estaria livre, após séculos de aprisionamento, e poderia caminhar livremente pela terra, sem a intervenção dos anjos. Desde a época da criação, pode observar os homens, mesmo sem interferir, e eles se entregavam sempre de corpo e alma ao seu pecado.
Kaira levantou-se da banheira, e sem usar a toalha, cobriu o corpo com um longo vestido transparente, com um leve brilho dourado. Escovava os longos cabelos, quando o rapaz o qual escolhera veio ao seu encontro. Ele a olhava de uma maneira estranha, quase assustadora. Ela via claramente que ele a queria, todo o tempo, apesar de ver nela o rosto da mulher que amava. E era aquilo que a assustava. Ele amava aquela mulher que via refletida nela. Um amor capaz de torná-lo forte, mais forte do que todos os outros sobre os quais exercera seus poderes. Ele acariciava seus cabelos, e beijava suavemente sua nuca. Foi quando ela começou a notar a falta da presença dos anjos na casa. Estavam demorando demais para se livrarem daqueles corpos. Também não podia sentir a energia dos seus servos demônios, escondidos como homens pelas redondezas. Estava sozinha.
Caminhou pelo corredor e foi até a sala, mas o que viu serviu apenas para deixá-la mais alerta. A sala havia sido revirada, os livros estavam esparramados pelo chão, os móveis virados e quebrados. O móvel que protegia com um forte feitiço o pergaminho que continha a profecia estava quebrado, tombado ao chão. Kaira correu até o objeto, e ajoelhou-se sobre os vidros para revirar os estilhaços em busca do pergaminho. O rapaz que a ajudava veio ao seu encontro, e quando notou sua presença, decidiu tomar uma atitude extrema. Tirou dele a magia que fazia com que ele visse outra mulher em seu corpo, e assumiu ainda mais o controle sobre sua mente. Podia ver as lágrimas brotando de seus olhos enraivecidos, mesmo ele não conseguindo se mover.
_Vá em busca daquele que retirou o que era meu. Recupere-o, e terá sua amada de corpo e alma ao seu lado, por eras. Você e ela viverão eternamente, e o amor dela por você atravessará os séculos. Não traga o pergaminho, e sua morte será feita somente depois de me ver cortá-la e pedaços na sua frente.
O rapaz saiu, andando apressadamente em busca do ser que lhe roubara o doce sonho no qual vivia. Kaira andava de um lado ao outro, e começou a conjurar um feitiço poderoso sobre a casa, algo que até mesmo Miguel teria problemas em passar.
Um trovão forte ressoou no céu. Ela moveu o cortinado vermelho da janela da sala, e pode ver as nuvens espessas se aglomerando sobre a cidade. Sabia que a hora se aproximava, e que deveria agir rápido. Pegou um dos livros que achou pelo chão da sala, e começou a recitar sussurrante um feitiço. Precisava chamar Miguel, e tinha de ser rápida. Trancou a porta da sala e correu até o quarto. Começou a revirar as várias gavetas em busca do que precisaria para se defender. Alguém havia invadido seu esconderijo, sumido com os dois anjos servos fieis de Miguel, e também com seus demônios de guarda pela vizinhança. E ela não ouvira nem sequer um ruído. Tinha de agir em sua proteção, caso Miguel falhasse em ajudar. Pensou em como poderia provar a ele que ela era ainda necessária. Afastou o pensamento da cabeça, afinal, era a única com o corpo certo, e com os poderes certos para atrair o anjo escolhido até ela.
Do lado de fora, Miguel chegou a tempo de ouvir outro trovão forte ressoando no céu. Algo havia lhe chamado, e pela localização, sabia quem era. De onde estava, podia sentir as energias que bloqueavam sua entrada na casa. Aquilo o enfureceu de imediato. Gritou alto do lado de fora, um grito longo e rouco, que arrepiou Kaira quando o ouviu.
Ela olhou o arcanjo do lado de fora, e abriu a porta para que ele visse que precisava de sua ajuda.
_O que houve aqui? – Miguel estava visivelmente descontrolado.
_Alguém pegou o pergaminho. Estão atrás de nós, Miguel. – Kaira falava baixo, e soava ameaçadora. – O que falta para cumprir a profecia?
_Está tudo quase em seu lugar, mas tenho ainda um problema para resolver. Dê-me um tempo, e lhe enviarei a resposta.
Miguel teve de sair andando da casa, mais preocupado do que de costume. Alguém havia descoberto seu plano. Agora não tinha mais tempo para disfarçar e esconder a situação. Deveria agir. Voltou ao céu, preparado para cumprir sua jura.
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A Profecia
General FictionE se uma antiga profecia revelada aos Arcanjos pudesse colocar um fim a hierarquia celestial, e trazer uma guerra entre anjos e demônios? O verdadeiro problema é quando os próprios anjos começam uma guerra entre si, e os demônios se aliam as forças...