Dia 6.039

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O dia amanheceu tarde, pelo menos pra mim.

Acordei e silencioso até no meu pensamento, lembrava da tarde que passei com Plutão. Coloquei a fita pra tocar e tudo parecia em sintonia com meu quarto.

A parte de cima da beliche parecia ser mais presente do que eu fui a minha vida toda, sempre sendo a sombra da pessoa que foi meu herói. Quando ele se foi, realmente só sobrou a sombra, porque eu nunca serei algo perto dele.

Aif-um, quando eu olho pra sua cama e o retrato na estante, vejo o como você era feliz. O que houve com você e sua felicidade? Eu não sei porque eu sou o Aif agora, mas me sinto um ladrão de apelidos. O verdadeiro Aif, aquele por quem chamavam alegremente se foi. Isso me dava uma vontade enorme de chorar, meu irmão...

-Antônio, você sabe quem foi ícaro?

Respondi que não e ele me explicou como um nerd;

-Ele foi um verdadeiro rebelde, seu pai lhe disse para não voar muito perto do Sol pois as suas asas de cera derreteriam, nem muito perto do mar, pois ficariam pesadas. Claro que ele não ouviu e apaixonado pela luz do Sol, suas asas derreteram e ele caiu no mar, afundando.

-Eu vou derreter também?

Perguntei inocente, enquanto brincavamos na grama do parque.

- Apenas seja obediente.

Pra mim, ele não foi rebelde. Ele não afundou no mar e nem se apaixonou pelo Sol derretendo, ele era o meu Sol, sim, o Sol; a coragem das estrelas, e de certa forma eu girava em torno dele, mas ele nunca mais me ensinou nada sobre ícaro.

A música toca e eu ainda escrevo, na minha mente, Augusto era grande e brilhante. Augusto era único.

O que eu sou?

Existe o Sol, existe a Terra, Marte, existem os planetas. Gravitando despreocupadamente em torno do Sol, se ele não estivesse ali, o que seria dos Planetas? É o que penso, quando comparo minha mãe e todos a minha volta com os planetas, sempre dependendo da instabilidade do Sol, não sobrou nada desde que ele se foi.

E existe Plutão, a pessoa que eu mal conheço, mas a pessoa com quem tenho me conectado. Misteriosa, fria, apenas Plutão.

Meu dia teria sido bem mais calmo se eu não tivesse parado no Hospital. Meu tio acabou no Hospital, o médico disse que ele teve um AVC. Ele passa bem, ficará internado por uns dias e depois ficará sob nossos cuidados, pelo que o médico havia dito, haviam sequelas.

Foi tudo muito rápido pra mim e a fita que ele havia me dado continuava tocando no apartamento, tudo voltava a ser nublado. Minha mãe conversou com ele, mas depois teve que ir, já que ia receber uma proposta do chefe.

Entrei no quarto do hospital, com a troca de roupa dele nas mãos, tinha recebido informações do médico, ele não ia poder se esforçar, não poderia realizar muitas atividades e meu Tio provavelmente nunca mais andaria. Tímido, quieto, como sempre ficava na presença dele, me sentei;

- O que houve?- ele dizia devagar, piscava lentamente e olhava como se tudo a sua volta fosse estranho.

-Está tudo bem, Tio.

-Aif.

Ele lentamente, pegou na minha mão, dando um leve sorriso e deitando a cabeça no travesseiro, fechou os olhos. Meu tio dormiu rapidamente com os vestígios de seu sorriso no canto do lábio, o sorriso que ele nunca havia dado pra mim. A pessoa que ele viu era eu, mas a pessoa que ele chamou não. Eu não era o Aif por qual ele chamou, o Aif por qual ele chamou morreu. Ele sorriu pra mim, como se eu fosse o próprio Augusto, mas eu não sou.

Minha mãe ia passar a noite com ele e eu fui pra casa. Foi a primeira vez que chorei. Eu abri a porta e tudo parecia escuro e silencioso. Acendi a luz da cozinha, uma luz branca tão fraca quanto eu estava. Passei por toda a casa e antes de acender a luz, vi o meu quarto pela primeira vez escuro e sem presença. Nessa noite, eu praticamente morri com meu irmão.

Me aproximei da cama dele e colocando a mão no cobertor, chorei. Chorei como nunca tinha chorado desde que ele morreu. Na cabeceira do quarto da minha mãe, re-vi as fotos, todos eram felizes.

Nessa noite, eu não dormi e enquanto escrevo isso, continuo a chorar. Meu tio quase morreu, minha mãe está sozinha. Eu estou sozinho, a fita rodava de novo, com a mesma música, fora de sintonia, baixa e melancólica.

Tentei me deitar, mas não consegui. Olhei em volta a procura de ajuda, mas não havia nada. Ainda não há. Saí na rua; escura e vazia. Uma garota corria entre um ponto e outro, parou e me observou do lado mais escuro.

- Está bem?

Ela me perguntou, a voz não era familiar. Fiquei em silêncio por um tempo, na tentativa frustada de ver o rosto e então respondi:

- Meu irmão morreu há muito tempo, mas sinto falta dele. Meu tio está no hospital e eu sou apenas uma sombra.

-Nesse momento, você realmente não passa disso. Uma sombra. Mas e se tentar mudar isso?

Como? Como mudar algo que eu não sei o que é? Mudar algo que deve ser mudado, procurar algo que deve ser achado, mas o que é?

-Como?
Apenas perguntei isso.

-Eu não sei, veja por outro lado. Até a sombra tem presença. Você só precisa ser presente.

Ela voltou a correr na noite e eu a perdi. Quem era? Eu não precisava saber disso agora. Voltei, escrevi e escrevi, mas continuo a não entender, que tipo de pessoa eu sou? O que eu procuro?

Quase amanhece, os primeiros raios de Sol atigem a parte de cima da beliche. O sol que me queima, me derrete e me afunda no mar, ainda continua a ser meu herói. Espero que alguém entenda isso.

Estou indo ao hospital,

Aif.






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