Dia 6.049

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Quando nada mais na vida faz sentido, há pessoas que se matam. Outras procuram um novo sentido, outras ficam apenas loucas, outras acham a cura em algo material ou no amor. Mas o que a pessoa pode fazer quando na verdade, ela nunca teve nenhum sentido na vida?

Bem, nesse caso, eu não sei. Estou procurando, ou melhor, esperando resposta de quem? Já fazem em torno de vinte dias, de que nada mais na minha vida seguia a rotina. Aquela coisa escrota a qual nos acostumamos, achamos até maravilhoso, e quando muda não conseguimos viver sem. Mas isso está errado, eu gosto de viver intensamente, eu odeio ter a rotina e não quero aquilo de volta.

Mas ainda sim falta alto, eu não consigo imaginar o que é. Mas como todos, eu procuro algo. Apenas algo, sem saber o quê. Um andarilho no caminho da vida : sem motivo = sem casa.

Tudo parecia violentamente estranho quando acordei hoje de manhã. O sofá parecia querer me jogar pra fora, mas ao mesmo tempo não querer me deixar sair, com medo, me fazendo ficar grudado. As dores de dormir ali continuavam, mas seria pecado dormir na cama de cima da beliche.

Meu tio parecia completamente indisposto, seu rosto estava pálido como de um morto, sua respiração era profunda como se houvesse um grande catarro o impedindo de respirar. Minha mãe? Ela fala algumas coisas, pergunta como anda a escola, mas seu olhar demonstra angústia e uma solidão e tristeza abraçadas em seus ombros.

Natália não foi pra escola. As amigas dela estavam preocupadas. Nicolas, Matheus e Lucas pareciam estar preocupados comigo, me olhando como se eu fosse louco, me olhavam de modo que ninguém mais olhava, num mundo com olhar privado apenas deles. As vezes os amigos fazem isso.

Eu via o mundo que eu tinha na minha frente, podendo ter minha rotina. Mas eu não queria, estava irritado. Quando voltei, a casa estava mais silenciosa que o normal. Um bilhete na geladeira dizendo;

Levei seu tio pra fazer um exame, descongela o frango e joga o Dolly limão sem gás fora.

Eu te amo Antônio,

Mamãe.

O bilhete da minha mãe demonstrava algo que poderia se tornar rotina também, bilhetes pedindo pra descongelar isso e fazer aquilo. Mesmo assim, minha surpresa venceu o sentimento de desgosto que eu sentia, porque minha mãe escreveu que me ama.

A raiva começou a subir nas minhas veias e eu nem mesmo sabia o motivo, me olhei no espelho. Minha respiração estava ofegante, minha pele quente e lágrimas desciam rapidamente de meus olhos, sem nem parar pra me explicar o motivo. Coloquei as mãos na frente do rosto me lembrando de uma tarde com meu pai:

-Estou aprendendo papai, vou ser o melhor bicicletista da cidade!

-Claro que vai, depois do seu irmão.

Eu caí.

-Dói!

-Seja homem, não chore.

Coloquei a mão na frente do rosto, limpando as lágrimas.

-Bom menino, esse é o meu filho.

Me vi novamente caído, com os joelhos ralados e um pai preocupado me olhando, em um espelho. Irritado, soquei o espelho, quebrando-o em minha mão. As lágrimas não paravam de descer. Eu gritava de dor, mas não era porque minha mão sangrava, era dor interna.

Pai, o que eu era pra você? Pai, o que eu estou fazendo agora?

-Bom menino, esse é o meu filho.

-Obrigada Papai.

-Eu te amo Antônio, não chore mais. Se torne o maior bicicleteiro da cidade.

Ele ria.

Lágrimas desciam dos meus olhos.

-Antônio, amor, venham comer!

Uma família feliz sentada a mesa. Um garoto de sete anos machucado, no espelho rachado. Eu não sabia mais distinguir o que era real e o que era meu reflexo naquele momento. Me deitei no chão, colocando a mão na cabeça, mesmo com vidro ali. Eu não sei por quanto tempo fiquei ali chorando, em algum momento adormeci. No momento seguinte, via minha mãe desesperada com o esparadrapo na mão.

Quando dei por mim, estava no sofá com a mão enfaixada.

- O que aconteceu? Pode me dizer?

-Eu....

Era como quando era criança e quebrei o copo preferido da minha mãe e escondi debaixo de um tapete, quase furando Aif-um. Eu precisei esconder até o final.

Esse era o final.

-Mãe, o que realmente aconteceu com eles?

Minha mãe abaixou a cabeça, triste, segurando curativos na mão. Aqueles curativos não iam curar ou tampar a ferida que eu estava reabrindo nela, que eu abria todos os dias, muito menos a minha que cresceria.

-Eu não sei direito, ele estava descontrolado Antônio. Você estava comigo comprando seu material escolar, eles ficaram aqui, mas eu...

Ela começou a chorar.

-Eu realmente os queria de volta. Eu queria que todos tivessem ido juntos ver o material, mas naquele dia seu irmão não se comportava, eu também tinha discutido com seu pai...

Abracei-a, ela chorou muito em meus braços.

-A pior coisa pra mim, foi não poder nem dizer como eu me sentia. Nem dizer adeus, terminar um dia brigado e saber que pode pedir desculpas no outro, era o que eu pensava. Mas esse peso, eu não pude pedir desculpar Aif.

Ela chorava, mas ao terminar a frase, olhou o vago sem expressão, enquanto lágrimas rolavam, buscando o motivo de ter dito isso.

-Tudo bem mãe...Já chega.

-Antônio...

Encostei minha mão no cabelo curto dela que começava a ficar grisalho, de leve. As luzes estavam todas apagadas, menos a do corredor, caso meu tio precisasse. Ele soube nesse exame que nunca mais andaria, e ele estava lá, na cadeira de rodas, atrás da gente.

-Você não é o Augusto mesmo, né?

Apenas balancei a cabeça negativamente.

-Desculpa Tio, eu pensei que se sentiria melhor.

-Como acha que me senti? Acha mesmo que foi melhor?

-Desculpa.

-Eu só achei que você tinha voltado.

Ele aproximou a cadeira de rodas.

-Existem essas coisas na vida, sabe. Eu estou aqui por elas, essas pequenas coisas a qual ninguém dá valor.

- O que são elas?

-Saudade, por que todo mundo sente, mas age como se fosse algo ruim e fitas, fitas são importantes.

Eu posso estar grande demais, mas dormi com minha mãe, como quando criança, dormíamos todos juntos, abraçados, cheirando o cabelo macio da mamãe.

Agora, somos só eu e ela.

E mesmo que qualquer coisa aconteça, ela vai poder pedir desculpas amanhã,

Aif.





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