Dia 6.052

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Hoje eu fui em um enterro.

No enterro do meu próprio tio. Os remédios que ele tomava não estavam fazendo efeito porque ele continuou a beber escondido. Tudo aquilo que foi dito a mim, tudo que não foi dito, jamais será.

Minha mãe estava abalada, as pessoas a volta dela começavam a criar e guiar seus próprios caminhos e iam embora, deixando-a sozinha. Eu estava completamente assustado, pelo que disseram a minha mãe, ele havia morrido dormindo.

Meu tio não foi uma pessoa boa, particularmente falando. Na verdade acho que só digo isso por egoísmo, pois ele deve ter sido uma boa pessoa pra alguém em algum lugar, porque todos somos. Morrer dormindo, seu último sono na terra, sonhando com um novo lugar, um lugar que logo está chegando.

Tio, você está bem aí? Deve estar olhando pra cá e vendo o que eu penso de você enquanto coça sua barriga fedida e me chamando de moleque...Sei que não deveria rir disso, mas internamente, estou.

Meu tio morreu praticamente ao meu lado, já que o vi adormecer e provavelmente não notando, falecer ao meu lado. Agora, ele deve estar ao lado de meu pai e de Aif-um.

Tio, olhe por Augusto. Sua alma de criança vai querer brincar de algo com você.

Augusto, meu irmão, você está acostumado com esse lugar não? Ensine tudo que sabe daí pra ele, continuar aí durante oito anos, deve ter se tornado como sua casa.

-Sinto muito Antônio.

Era o que todos os meus parentes diziam e de certo modo, eu também sentia. Mas o que é e exatamente, sentir muito? As pessoas sentem muitas emoções, diversas delas, mas quando um parente seu morre e alguém lhe diz, sinto muito...O que exatamente eles queriam dizer? Pode dizer, sinto muito porque ele morreu, sinto muito porque você é otário, sinto muita raiva, sinto muita saudade, sinto muito... Eu sinto muito. Eu sinto muito algo por Plutão. Eu sinto muito algo por Augusto e agora, por meu tio.

No enterro, Natália fez questão de ir e me abraçar gentilmente, junto de seus pais.

-Oi Aif, está se sentindo mal?

Fiquei calado.

-Sabe, o Sol não brilha tão fortemente hoje. Quem sabe, amanhã?

Fiz que sim, com um sorriso pequeno e sincero. Depois do enterro, o caminho pra casa se tornou profundamente e silenciosamente insuportável.

-Mãe.

-Antônio, vamos comer o quê?

-Bem, eu não estou com fome.

-Nem eu.

Minha mãe riu, pra tentar desconstrair.

-Ei, que tal comprar pizza?

- Você por acaso vai comer uma pizza inteira, filho?

Fiz que sim e soltei um riso logo depois de ouvir um resmungo que parecia dizer; comilão..

O clima poderia ser assustadoramente triste, mas estava agradável. Minha mãe, talvez pela primeira vez em muitos dias, me tratou e me olhou como filho.

-Vamos parar aqui.

Ela estacionou o carro perto de um cone rachado e atravessou a rua pra comprar pizza congelada. Enquanto isso, liguei na rádio que passava uma entrevista com algum cantor desconhecido por mim. Passando rapidamente e derrubando um cone, uma garota de capuz. A garota de capuz, sem olhar pra trás, apenas correndo como em todas as poucas vezes que a vi.

O dia tinha sido triste, mas vendo-a correr daquele jeito me lembrava dos poucos dias em que apostava corrida com meu irmão pelo parque.

Minha mãe voltou com pizza, sorvete e refrigerante, sorrindo.

- Quase esbarrei com uma garota correndo, não sei quem é a desastrada, se sou eu ou ela!

-Te conhecendo, diria que é você.

-Sempre fui assim e você era igualzinho quando pequeno, diferente do seu irmão e que era igual ao...

Ela ficou em silêncio e logo depois começou a me passar as sacolas.

-Mãe, o sorvete é de quê?

-Hm, flocos.

-Não é meu preferido, mas eu gosto.

-Eu peguei porque eu gosto de flocos, Antônio.

-Você não quer pizza, mas quer sorvete?

-Não pode?

Rimos muito e passamos a noite vendo programas de comédia em canais que passam coisas antigas. Quando ela foi dormir, o interfone tocou e pediram pra que eu descesse:

-Entrega especial pro senhor.

-Já estou descendo, Zé.

Quando desci a noite parecia limpa e o luar estava banhado da tristeza e provavelmente de cerveja jogada pelo meu tio.

-Aif.

-Plutão.

Sorri e ela me entregou uma fita de músicas de verão.

-Por quê tão tarde?

-Eu não sei, estava com isso faz tempo pra te entregar e hoje fiquei entediada. Ainda sim, são ótimas músicas, escutavámos quando íamos pra escola juntos, todos nós no carro do seu pai.

-Eu acho que estou me lembrando, algo parecido com... ''That we may fall in love, every time we open up our eyes.''

-Não lembra o começo, não? Era sua parte preferida, você dizia que falava exatamente como a rua ficava nos dias de Sol.

-Não me lembro nem o nome da música Plutão..

-Sun.

Ela riu, como se realmente fizesse meu dia brilhar.

-Por que está com esse rostinho, tão triste?

-Sabe, as pessoas vivem nos deixando, de todas as formas. Hoje, foi o enterro do meu tio.

-Eu sei que parece meio bobo e nada haver comigo, mas eu não vou te deixar.

Ela me abraçou, eu esperava um sinto muito, mas esse sinto muito que eu escutei de muitas bocas, o sentimento de pena, não saiu de Plutão. Saiu carinho, em foram de abraço. Ela levantou os pés e beijou minha testa:

-Seja justo e não me deixe também, certo?

Sorri e logo ela pegou uma bicicleta e saiu andando. Ela provavelmente não mora longe, porque eu não deixaria ela ir sozinha. Fui pro meu quarto, que sem a presença de Augusto já se tornava vazio e agora sem meu tio, se tornava morto.

Coloquei a fita pra rodar e a primeira música era Light, do Sleeping At Last, com um doce ritmo, dizendo: ''May these words be the first , to find your ears.''

''Que essas palavras sejam as primeiras a encontrar seus ouvidos.''

O dia rodava minha mente como o projetor movia os astros.

Eu não vou te deixar.

O doce timbre de Plutão se juntava a música, me prometa Plutão, me prometa,

E não me deixe,

Aif.





AifOnde histórias criam vida. Descubra agora