Dia 6.040

71 10 4
                                    

Tenho me sentido um pouco mal por ter sido arrogante com meu tio desde que ele chegou, por outro lado penso que isso vai servir de lição pra ele.

Aif-um dizia que tudo na vida acontece por um motivo e que devemos aprender com isso. Espero que ele não esteja errado, por que tudo isso está acontecendo? Deve ter um motivo.

Fui pro Hospital de manhã porque minha mãe foi assinar um contrato. Na sala branca com cortinas azuis, havia uma mistura de sentimentos melancólicos. As enfermeiras entravam e saím silenciosamente e fora o vaso de flores esquecidas por alguém, nada ali parecia ter vida ou motivação, além disso, o tempo parecia querer parar.

-Aif.

Meu tio me chamou. Mal abriu os olhos e piscava como se nada visse, via como se nada conhecesse e com sua voz rouca e baixa me chamou.

-Aif. Onde estamos? Cadê seu pai?

Suspirei.

-Oi, tio. Estamos no hospital.

-Onde está seu pai e o Antônio?

-Estou aqui. O pai e o Augusto morreram faz oito anos.

Mandei a real. Tio precisava aceitar a realidade, ele não queria, mas tinha. Ele olhava em volta,provavelmente encaixando os fatos.

-Onde estamos?

Perguntou de novo e respondi ríspido.

-No hospital.

-Eu vou morrer?

Ele perguntou de forma triste e sua voz soou mais baixa do que já estava.

-Não, logo você vai ficar bom e voltar pra casa.

Menti. Ainda sim, ele conseguiu abrir o mesmo sorriso esperançoso que abriu da primeira vez que sorriu pra mim, dessa vez mais largo e alegre.
Ele tomou a sopa e dormiu novamente, o dia foi esse. Ver meu tio dormir, ler resvistas, dizer que está tudo bem quando ele acordava assustado de quinze em quinze minutos...

Minha mãe ia ficar com ele de noite e pediu pra que voltasse sozinho, no caminho começou a chover e ainda por cima, me acharam entre a tempestade:

-Aif.

-Plutão.

Abri um sorriso ao completar a palavra e de onde eu vi, ela também sorriu.

-Vem aqui debaixo do guarda-chuva, vai ficar doente se continuar aí.

Ela me acompanhou e a convidei pra entrar e se secar, apesar de estar debaixo do guarda-chuva, os cabelos dela pingavam. Quando entramos ela examinava o apartamento como se fosse um antigo retrato do qual ela participou.

Emprestei um pijama pra que ela pudesse ir pra casa seca, mas a força acabou. E daí? A porta dos apartamentos são automáticas e cada morador tem seu cartão pra entrar e sair de casa. Estavámos presos.

-Que droga.

-Parece que vai ter que ficar aqui comigo.

-Não vai ser um problema.
-Ela riu.- Você tem uma lanterna?

Peguei a lanterna e brincamos de fazer um show de sombras, enquanto ela tentava fazer um coelho, fiz uma proposta:

-Vamos fazer assim; eu pergunto algo e você pergunta de volta, mas sem repetir.

Ela concordou.

-Eu primeiro. De quem é a parte de cima da beliche?

-A parte arrumada? Do meu irmão. Está gastando suas chances.-Rimos.-Ok, animal favorito?

-Hm, pardal. Antes que gaste sua próxima pergunta, gosto dele porque ele pode ser boa ou má sorte, vida ou morte. Tem gente que também diz que ele caça almas perdidas.

-Isso é interessante, sabia que você nunca gostava de algo apenas por gostar.Sua vez.

-Sua comida favorita?

-Frango assado com batatas, da minha mãe.

-Dá até vontade de comer de novo. Sua vez.

Ela disse enquanto divídiamos um salgadinho.

-Ok, filme favorito?

-Alice no País das Maravilhas porque é completamente louco.

Sorri pra ela e mesmo sem poder a enxergar direito, vi que ela retribuiu.

-Primeiro amor?

Fiquei em silêncio. Não tinha. Não tinha primeiro amor porque sempre foi eu, alguns amigos e dentro de mim a saudade. Meus amigos diziam que o primeiro amor a gente nunca esquece e que de uma certa forma sempre vai amar. Eu não tinha alguém assim, nunca tive.

-Eu....Nunca tive.

-Ah, sério?- ela riu.- Isso é mentira, né?

Respondi que não e mesmo no escuro vi que ela me olhava como se eu fosse um menino estranho, uma anomalia.

-Sua vez.

-Primeiro beijo?

-Você.

Eu comecei a rir de nervoso e logo parei. Eu? Plutão parecia querer brincar e eu já não me importava mais.

-Tem certeza que fui eu? Não lembro.

-Você transpirava de febre. Dormia e respirava alto, mas posso...Posso tentar de novo?

Ela parecia confiante, mas terminou a frase com uma pergunta. Puxei-a pra perto de mim sentindo o calor de seu corpo em meu pijama, coloquei uma mecha de seu cabelo atrás da orelha, no escuro encostamos nossos narizes e finalmente, os lábios um contra o outro; o meu quente e o dela, frio. Ou era ao contrário?

Juntei por mais um tempo e logo colocavámos a lingua e entre pausas pra recuperar o folego continuavámos as perguntas;

-Uma viagem legal?

Nos beijamos.

-Rio de Janeiro.

Nos beijamos.

-Doce?

Nos beijamos, a joguei perto no sofá.

-Sorvete de creme.

Mais beijos.

A noite foi incrível. Alucinante, interminavél. Inesquecível, talvez. Eu beijei pela primeira vez, ela talvez pela segunda. Nos beijamos várias outras vezes. Nos conectamos quando fomos nos conhecendo e parecíamos mais conectados naquele momento.

A força voltou, podíamos nos ver, mas permanecíamos de olhos fechados e lábios colados.
Teríamos continuado se o telefone não ficasse tocando.

-Hm, telefone.

Ela falou entre um beijo e outro, resmunguei um deixa pra lá e ela repetiu:

-Aif, o telefone!

Peguei o telefone, era minha mãe, ela me perguntou se estava tudo bem e disse que estava voltando.

-Melhor eu ir.

Plutão foi caminhando de meia até a porta e colocou uma botinha que ali estava.
A puxei pra mais um beijo, longo, lento, maravilhoso. Encostamos nossas testas;

-Até depois, Aif.

-Até, Plutão.

Tentei me deitar, mas não conseguia. Não parava de pensar nos beijos maravilhos e de como Plutão era, é maravilhosa.
Eu sou apenas Aif e encontrei a garota mais misteriosa, bonita, inteligente e legal de todas. Ela é a mais, eu provavelmente o menos.

Não importa agora, acho que estamos juntos, isso sim importa. Eu criei algum sentimento por ela, apenas preciso saber direito qual é.

Aif.


AifOnde histórias criam vida. Descubra agora