Dia 6.047

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Acordei com a visão completamente embaçada e os cabelos emaranhados. Isso provavelmente foi causado por um garoto com insônia que ficou se revirando em um sofá quente até as quatro.

Me levantei meio lento e cansado, dei o remédio para meu tio que logo depois pedia café, que o médico proibiu.

Tomei um banho gelado, lavei o cabelo três vezes, passei pente fino, me esfreguei como se cortasse a pele e lavasse a alma, estava me sentindo sujo.

Saí de casa e no caminho parei pra amarrar o sapato e fui abordado.

-Aif?

A voz.
-Plutão.
Me virei sorrindo e recebi um sorriso maior ainda dela.

-Como você está?

-Sei lá.

Típico dela.

-Me desculpa por ter sumido, minha mãe acha que estou usando drogas, foi díficil sair.

-Mas você não está envolvida com drogas, né?

-Só se você mudou o nome de Aif pra cigarro.

Ela riu, admitindo que estavámos envolvidos. Conversando como se não houvesse mundo em volta, chegamos na escola;

-Vou ir te ver no muro hoje.

-Mesmo? Você não foi das outras vezes.

-Mas eu vou dessa vez!Juro, assim, juradinho!

Olhei sorrindo pra ela
Que cruzou os dedos e os beijava seguidamente como se fosse sua alma jurando. Naquele momento, nessa pessoa; eu posso confiar.

Eu parecia estar cada vez mais me aproximando como um imã, de um buraco negro. Era como a música da minha banda preferida dizia;

"Eu sou apenas um grão curioso que se viu dentro da órbita. Como um imã que chama os meus metais preciosos pra perto."

Como quando somos crianças e somos avisados pra não mexer em algo, mas aquilo parece precisar de nós.

Na aula, olhei meu desenho do sistema solar e circulei Plutão, de forma que ele fosse visto como mais importante.

Quando o intervalo cheguei, andei pela escola e encontrei Camila, a garota fofa com síndrome de down. Me sentei pra falar com ela e Natália logo me abordou:

-Aif, como foi o final de semana?

-Cansativo. Tive que cuidar do meu tio.

-Fiquei sabendo o que aconteceu. Qualquer coisa, pode pedir, sabe que te considero muito.

No mesmo momento, concordei calado e sem expressão. Mas minha mente ria e repetia; considerar é pouco, persegue.

Fui até o muro discretamente e vi calada, admirando muro, recebendo a luz do Sol enquantos seus cabelos voavam com o vento; Plutão.
Me aproximei, sentando ao lado dela e recebendo um sorriso de boas-vindas.

Ela falava comigo sobre a escola, me cativando. Seu modo de falar e seu sorriso. Era completamente Plutão.

Conversamos sobre as aulas até que ela simplesmente comentou:
-Meus pés não tocam o chão.

A encarei. Depois, lentamente, olhei os pés dela balançando a procura do chão.
Uma imagem antiga e irreal me surgiu como um clarão e uma dor de cabeça.

-Os meus...Tocam.

Disse engasgado, quase mudo, apontando pro chão. Ela olhou, econstando o pé ao lado da minha perna.

-Antes aposto que não tocava.

Ela encostou a mão no banco e eu ainda mudo e hesitante, coloquei a minha por cima, entrelaçando.

-Foi real?

-Pra mim, foi. Mesmo que seja algo muito antigo...

Ela respondeu, ainda olhando o muro.

-Quem você é?

-Quem eu era, você quis dizer. Isso não tem importância.

Ela me encarou.

-Coincidência?

Devolvi o olhar, incrédulo como estou até agora.

-Foi, todas as pessoas tem coincidências na vida assim como nós, ou acha que porque você é Aif, Deus vai te dar uma trégua?

Ela dizia com um tom de piada, mas pra mim, aquilo significava muita coisa;

O dia do parque de diversões foi o dia que uma garotinha pegou na minha mão e viramos namorados.
Nesse dia, o dia do parque de diversões, eu e minha "namorada", nos perdemos.

Eu lembro de luzes vermelhas. Eu não lembro de tê-la visto outra vez se não essa.

-Vocês estão bem?

Policial.

-Onde está meu pai?

Ela olhava assustada, sem largar minha mão.

-Vai ficar tudo bem. Eu te protejo.

Nos protegemos.
Um abraço. Dois abraços. Calor. Um amor que eu não sentia antes, nesse dia, meu pai desesperado me abraçou, eu segurava a mão da pequena garota, ele a abraçou junto.

-Aif?

-Hm...Quê?

-Quem é ela?

Plutão me cutucou, largando minha mão. Na minha frente, Natália, com os punhos cerrados e os olhos cheios de lágrimas.
Ela teria ido pra cima de Plutão, mas eu intervi.

-Quem é ela, Aif?

Plutão perguntou, assustada.

-Quem é você, sua rídicula mal vestida?

-Eu sou amiga dele!

-Então amiga dele, que fique claro!

Natália me empurrou forte contra o muro e me beijou. Fiquei de olhos abertos e tentei a empurrar, antes que ela me largasse, Plutão pulou o muro.

-Eu tenho nojo de você. Não mexa com ela e não me procure mais!

Falei, limpando a boca e cuspindo no chão. Agora, acho que foi horrível o que ela fez, o que eu fiz, mas não fiquei lá pra ver a reação dela.

Fui pra casa mais cedo, todo dia teria que ir pra dar o remédio do meu tio. Olhava pro relógio inquieto, dei o remédio. Eram sete remédios diferentes.

Bem mais tarde, o porteiro ligou dizendo que havia uma garota querendo que eu descesse algo.
Plutão.
Projetor?

Desci com a caixa, incerto. Ela pegou a caixa sem olhar no meu rosto. Peguei no braço dela;

-Me desculpa, foi ela, eu realmente não queria.

-Não quero falar sobre isso, tive um dia ruim, minha mãe deve estar preocupada, já está escuro.

-O Sol brilhará amanhã.

Era o que Aif me dizia quando eu chorava de medo do escuro. Era o que eu deveria dizer pra ela.

-Depende, se as nuvens cobrirem o céu, não será tão brilhante assim.

-Mais ainda sim, vai estar lá.

Ela levantou o rosto, me olhando nos olhos, num passo rápido, levantou os pés, me beijando, doce, leve, triste.

-Vai estar sim.

Eu amo Plutão. Mesmo que seja por pouco tempo, que tudo seja rápido. Garotos são assim, mas isso que eu sinto não é só ser garoto, é amar?

Eu apenas quero que ela me perdoe, assim eu me sentiria menos culpado e poderia aliviar outras dores.

Plutão, mesmo que seja frio agora, aí onde está, o Sol brilhará amanhã,
Aif.


AifOnde histórias criam vida. Descubra agora