Capítulo XXXI

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 - Falta uma alma. - afirma o "David" secamente, olhando para um contentor colorido, cheio de vapores a flutuar de um lado para o outro, misturando-se e remisturando-se, criando um aspeto fantasmagórico. 

 - O quê?

 - Eu disse: FALTA UMA ALMA! - grita furioso, empurrando a Secilia para o chão da gruta. Nós as três corremos para ela e ajudamo-la a levantar.

 - Bem, já não há mais ninguém na ilha. - digo, confiante. Ele fita-me de forma assustadora, mas tudo o que vejo é o rosto do meu ex-namorado. E ele não me mete medo - Não há nada que possamos fazer. 

 A cara de raiva é clara. O mais terrível é a forma como ele alterna entre as emoções faciais: de raiva passa para neutralidade muito depressa, num abrir e fechar de olhos. E é isso que acontece nesse momento, quando ele perscruta a sala com o olhar procurando algo. Quando o encontra, a face altera-se.

 - Ainda falta alguém... - afirma, e depois sorri para o Gonçalo, preso pelas tatuagens a um canto da sala. Quando vejo para onde ele está a olhar, o pânico invade-me.

 - Não.

 O "David" olha para mim de forma estranha.

 - O que disseste?

  Olho para as outras que se esconderam atrás de mim e elas fazem um pequeno não com a cabeça. Mas mesmo assim, levanto-me, ficando da mesma altura que ele.

 - Eu disse: não.

 E antes que eu possa fazer alguma coisa, o punho dele voa cerrado até à minha cara. eu cerro os olhos com força, à espera do impacto, mas ele nunca chega. Abro um olho e espreito, abro os dois e vejo a palma da mão do "David" aberta mesmo ao lado da minha cara, sem me tocar. 

 - O quê é isto?! Algum tipo de feitiço!!! - e virando-se para as outras - Vocês fizeram isto, bruxas?!

 Elas acenam negativamente e eu tenho a certeza que não fiz nada. E pergunto a mim própria, e depois em voz alta:

 - Chegaram a tirar a alma do David antes de por lá esta?

 - Nã... não... - murmura a Valéria.

 E um sorriso carinhoso ilumina o meu rosto.

 - Olá David...

 - QUE ESTÁS PARA AI A DIZER?! PARA COM ISTO IMEDIATAMENTE - e tenta dar-me um ponta-pé. E um soco. E um estalo... Nada funciona. A minha pele permanece intocada.

 - É o David. Pode não controlar a maior parte do corpo, mas sei que ele nunca, mas nunca seria capaz de me magoar.

 - NÃO! - exclama o "David". E depois para. Ele respira fundo e faz-me uma rasteira, deitando-me para cima das outras - Há outras maneiras de magoar alguém.

 E com estas simples palavras, dirige-se ao Gonçalo, encostado ao seu canto.

 - Não! Para! Afasta-te dele imediatamente. - ordeno, levantando-me e correndo para ele. Virando-se de um ápice, atira-me com a simples força de vontade contra a parede oposta. Embato de costas e perco o ar por um momento, caindo no chão de seguida. Levanto-me com todas as forças que me restam, mas não consigo sequer andar, vendo impotente o "David" a levantar o Gonçalo pelo colarinho da camisola e a conjurar uma faca vinda de nenhures, afiadíssima.

 Quando tudo me parece perdido, vejo a Secilia levantar-se decidida e correr até ao "David", segurando-lhe o pulso com que ele empunha a faca.

 - Não te vou deixar fazer isto.

 - Ai sim?! - pergunta em tom convencido - Tu e mais quem?

 - NÓS! - gritam a Valéria e a Yag-lien em uníssono, agarrando-se também ao pulso do David. 

 - Argh! Serão castigadas por isto.

 Pé ante pé, atravesso a sala e ajudo-as a arrancar a faca da mão do "David". Empunho-a em gesto de ataque e as minhas irmãs conjuram espadas de luta, atirando-me uma.

 - Toma, pode ser mais útil.

 Avançamos sobre ele ameaçadoramente, mas vê-se no seu olhar que não está para brincadeiras.

 - Isto é ridículo - afirma, gesticulando na nossa direção e arrancando-nos as armas. Mais um gesto e eleva-nos no ar - Bem, sabem que tudo o que sobe... tem de descer - e atira-nos contra o chão, onde embatemos com grande violência. Ele suspira e ajeita subtilmente a franja - 99 almas terão de chegar, se é para aturar as vossas criancices, prefiro assim - e olhando uma última vez para o Gonçalo - Trato de ti mais tarde. Bom, meninas, toca a trabalhar!

*

 O altar do renascimento está pronto. Nós as quatro formamos um círculo em volta do "David" e este abre a boca, deixando que um fumo esverdeado lhe saia das entranhas. A Valéria e a Secilia puxam o corpo do David para fora do círculo e ainda consigo avistá-lo a piscar levemente os olhos, coberto de tatuagens que o prenderam costas a costas com o Gonçalo.

 O fumo esvoaço-a à nossa frente, enquanto proferimos em voz monocórdica:

- Per noctem et quod tegit, nos hisce aeque crudeliter animabus corpora novum, corpus idem specie robore juventutis. Quattuor tempus veneficas locuti. - enquanto falamos, as almas que estavam aprisionadas formam uma figura vaporosa semelhante a um corpo, que vai ganhando forma, aspeto. E, se me é permitido dizer, um corpo verdadeiramente bonito.

 6 almas insistem em permanecer fora da formação ( devem ser as dos peixes ), mas lá as conseguimos por, um pouco à força, como se estivéssemos a por muita tralha numa mala, ou seja, sem grande cuidado. O corpo torna-se palpável  e o vapor verde parece examiná-lo antes de entrar nele.

 O corpo pisca um olho. Depois o outro. Depois os dois. Testa os movimentos dos dedos e dos membros. Respira profundamente e senta-se sobre a mesa de pedra gelada.

 - Está vivo... - murmura, num sorriso que, naquele corpo recém formado, parece um pouco cripy


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