A dor da Culpa

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"Para cada passo à frente,a recordação de um passado cruel."


"Não é preciso muito para alcançar a alma das pessoas,depende do empenho que se dedica a isso.Cada um tem um ponto de acesso individual,uma verdade particular ou uma emoção que simplesmente decide quem pode ou não compreender um pouco de nós mesmos;uma pequena fração do que podemos mostrar.Mas algo é definitivo para todos:a dor revela muito mais do que se pode oferecer..."

Toda jornada traz consigo um emaranhado de questões,como um jogo que para ser justo e prático precisa de regras.Tais questões evoluem e variam de intensidade com o tempo,conforme a realidade passa despercebida aos olhos e dá lugar a experiência.As pessoas são surpreendidas em suas vidas quando isso deixa marcas mais profundas que o imaginado;se bem que não se pode imaginar ou supor a profundidade de nada além do que acreditamos existir.A questão é que,quando violamos ou ultrapassamos de alguma maneira essas questões,estamos na verdade gerando consequências futuras que não irão se calar,nem mesmo diante da dor.

Mesmo quando parecia estar cansada,Lúcia na verdade estava distante,viajando em pensamentos só seus e que ninguém mais tinha acesso.Era assim que agia ultimamente,sempre pensativa e introspectiva,mas isso não era algo ruim como algumas pessoas acreditavam.Seu trabalho como cozinheira de uma creche estava lhe dando um novo sentido na vida,trazendo razões inocentes para que deixasse o passado de lado de forma definitiva.Cada criança que servia tinha algo que passou a carregar para si mesma;a inocência simples,a liberdade para se divertir e,acima de tudo a fluidez para sorrir.

Sua vida estava mudando rapidamente e de dentro pra fora,o que logo começou a ser percebido por suas companheiras de trabalho e mais tarde por sua filha Helena.Quando estava de folga da creche,voltava aos prazeres que sempre tivera mais havia esquecido para criar e cuidar do filhos.Viajava até a cidade mais próxima para comprar doces de compota e ir as mesmas missas que era levada por sua mãe quando ainda criança.Lúcia cresceu cercada por aromas e sabores instigantes,doces que sua mãe fazia para vender e que sempre tinham lugar cativo entre as refeições.Gostava de ir até o armazém com ela para oferecer os frascos com frutas em calda e as tortas e bolos dos quais já conhecia cada ingrediente.

Estava voltando à sentir tais sensações e isso era excepcional naquele momento de sua vida,depois de ter passado por anos de aflição e dor.Sempre foi uma mulher de beleza indiscutível e aos poucos voltou a ser tão cuidadosa consigo mesma quanto antes,o que deixou Helena emocionada e feliz.Ela estava passando alguns dias com a mãe novamente,mas desta vez apenas para ficar mais perto de sua alma jovem e aquela sensação de abrigo que só encontrava ali.

Helena estava nas nuvens,tinha acabado de voltar de Paris onde foi homenageada em uma das semanas de moda mais concorridas do mundo e sua expressão de reconhecimento era tudo o que sua mãe queria admirar enquanto estivesse ali.As duas haviam finalmente encontrado seu porto seguro,além de todas as lágrimas caídas e noites sem dormir;estavam dispostas a simplesmente viver.

Enquanto isso,Philip Mendel estava imerso em lembranças mórbidas e sem ligação exata,como se o sentido fosse desnecessário em seus pensamentos.Ninguém sabia que estava vivo,mas ele sabia e de certa forma isso o torturava.Existem momentos da vida em que somos colocados frente aos nossos mais profundos erros,e são nestes momentos que se pode perder a razão ou simplesmente aceitar que não a temos.

Depois de saber que Carlos e sua filha estavam disposto a abrigá-lo ali,Philip imaginou que estavam loucos ou apenas eram tolos o suficiente para confiarem em alguém que cometeu tantas atrocidades,mas com o passar do tempo seu conceito mudou.Carlos era um homem de meia idade,com uma barba esbranquiçada e olhos de quem já viu e viveu muita coisa.Soube que foi um militar que abandonou o exército ainda jovem por não concordar com seus métodos para conseguir confissões de guerra,o que de certa forma já demonstrava seu caráter.

Era um homem tranquilo que gostava de cavalgar nas montanhas durante o amanhecer;gostava do silêncio e da brisa que acolhia ele e seu cavalo.Caroline,sua única filha estava cursando medicina na cidade,por isso tamanho empenho e cuidado com Philip.Ele soube ainda que sua mãe havia morrido num acidente de transito quando ela tinha 7 anos de idade,e ao saber disso lembrou-se imediatamente de Helena.Ela tinha a mesma idade quando testemunhou um de seus primeiros crimes;essa memória o fez ir fundo em seus sentimentos,fazendo seu passado convergir com seu presente.

Imaginou a dor de Caroline ao perder a mãe,seu abrigo mais generoso e seguro no mundo e imaginou também a dor da irmã ao saber que ele estava se afastando cada vez mais de sua humanidade.Philip estava ainda sob os cuidados daquela jovem de beleza singular,deitado numa cama de onde talvez não quisesse mais sair.As vezes Caroline desviava os olhos e capturava lágrimas no rosto daquele homem que parecia tímido e ao mesmo tempo cansado de mais.Seus ferimentos estavam melhorando já que no dia em que foi encontrado Caroline retirou as balas com máximo cuidado.

Talvez mais dois ou três dias de repouso e Philip já estaria melhor.O que Caroline não podia trazer para ele era a certeza de que quando se levantasse as coisas seriam diferentes;a certeza de que seu passado de alguma forma pudesse evaporar e livrá-lo daquela culpa que lhe perseguia todas as noites em pesadelos.Philip chorava durante a madrugada,tornando o silêncio e o crepúsculo seus únicos ouvintes.Chorava pra colocar pra fora as lágrimas que não mostrou na infância,quando seu pai partiu sem dizer adeus,ou quando os remédios da clínica castigavam sua cabeça com dores insuportáveis.Chorava para que cada vítima de sua crueldade pudesse ter encontrado a paz além da carne,além do que ele fez.

Philip chorava para inundar sua alma,como as águas turvas inundam oceanos profundos e sem luz.Suas lágrimas eram carregadas de uma angústia que queria expulsar de sua alma,um medo que sempre evitou expor apenas para deixar sua imagem de intocável mais forte.A dor de sua culpa lhe trazia de volta os rostos de sua mãe e irmã,com sorrisos que logo se transformavam em desaprovação e repulsa,o que machucava ainda mais seu coração.

Ele só queria esquecer tudo,dormir e acordar num mundo onde fosse apenas um garoto de novo,onde teria oportunidade de recomeçar.E o destino,mesmo que de forma não casual,ouviu o desejo da alma daquele homem que viu a escuridão perto o suficiente para temer continuar ao seu lado.

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