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Veja bem, não tinha como não reparar a bagunça. Ao por os pés para dentro, me vi rodeado por inúmeras caixas abertas, com os conteúdos remexidos e espalhados. Livros empilhados num canto, CDs jogados pelo chão, revistas, cartões postais, disquetes (sim, disquetes!), fotos, papéis, papéis... papéis, e mais uma infinidade de coisas que não consegui identificar. Além de mais papéis, é claro. Parecia que um furacão tinha passado por aquele pequeno espaço cercado por quatro paredes. Um furacão chamado Anahí.

Anahí: cuidado! - gritou espalhafatosa e eu dei um pulo, olhando para o chão. - Você quase pisou no meu Backstreet's Back!

Pulei para trás, assustado. Quase caí no sofá enquanto a via abaixar e pegar o CD perto de meus pés como se segurasse um verdadeiro tesouro. Eu conhecia bem aquele grupo. Não por ter sido fã, obviamente, mas por ter uma irmã que passava vinte e quatro horas por dia assistindo, ouvindo, cantando e dançando aquelas músicas ridículas. E o pior é que eu fui forçado a decorar algumas delas.

Alfonso: Am I original? YEAAAH - cantei, improvisando um microfone com a mão fechada. Ela desviou o olhar do CD e ergueu a cabeça para me encarar. - Am I the only one? Yeah - Continuei, fazendo com que ela balançasse a cabeça, sorrindo, sem acreditar no que eu estava fazendo. - Am I sexual? HEAAAH - me movimentei, passando a mão pelo corpo, tentando parecer sensual, como os caras da banda. Ficou tão ridículo quanto. - Tive certeza disso quando aquele sorriso desconfiado se transformou em uma gargalhada escandalosa. - Am I everything you...

Anahí: não acredito que você vai parar na melhor parte. Continua.

Alfonso: não. Você me desconcentrou.

Anahí: e você me surpreendeu. Eu não sabia que você curtia esse tipo de música.

Alfonso: e eu não curto. Maite curte. Ou curtia. Ou sei lá.

Anahí: ah - um sorriso divertido brincava em seus lábios. - Mas para quem não curte, você interpretou muito bem.

Alfonso: pois é - dei de ombros, com um meio sorriso descolado. - Tenho alguns talentos escondidos.

Anahí: eu percebi. E daria um rim pra ver a continuação desse mini show particular.

Alfonso: um rim? Meu cachê não é assim tão barato.

Nós dois rimos, trocando um olhar conivente. As coisas iam caminhando daquele jeito entre nós, e eu nem sabia bem ao certo como explicar tal mudança. Nosso acordo de civilidade vinha progredindo gradualmente para uma cumplicidade que eu, sinceramente, não tinha como sequer ter cogitado antes. Nem em meus mais loucos pensamentos. Ainda havia um desconforto camuflado, é claro, um certo policiamento constante visando não dizer o que não devia e acabar gerando uma daquelas grandes confusões nas quais éramos tão bons. O passado nunca era mencionado, muito menos discutido. Mas, no geral, tudo sempre acabava em paz. Convivíamos melhor do que eu achei que conseguiríamos. E em grande parte aquilo se devia à mudança de atitude dela.

Eu, por minha parte, tentava esquecer o orgulho ferido pelas inúmeras vezes em que ela havia me descartado, irritado e frustrado naqueles últimos meses. E, bem, aquilo não era assim tão difícil com a afabilidade com a qual ela vinha me tratando. Eu nunca tinha odiado Anahí. Eu odiava suas atitudes mesquinhas e prepotentes. Sem essas, não era tão difícil assim tolerá-la. E até mesmo gostar um pouco disso.

Alfonso: o que é tudo isso? - perguntei, andando com cuidado entre toda aquela bagunça para não correr o risco de pisar agora em, sei lá, algum pôster super precioso de alguma outra banda da qual a Anahí adolescente fora fã. Quando encontrei um lugar seguro, parei.

Anahí: tralhas antigas das quais tô tentando desapegar - fez uma careta. - Não sabia que ia ser tão difícil.

Alfonso: então por que se livrar delas?

Anahí: porque não me têm utilidade, não é, Alfonso? - girou os olhos, como se dissesse algo super óbvio. - E agora, com o bebê, eu vou precisar de mais espaço também - deu de ombros, sentando-se no chão.

Alfonso: quer ajuda? - Ela me encarou. - Não precisa me olhar assim. Estamos falando de espaço para o meu filho, não é? Então eu também tenho algo a ver com isso - zombei e, aceitando seu outro dar de ombros como um consentimento, me sentei ao seu lado.

Anahí: você não tem mesmo o que fazer no escritório?

Alfonso: uma porção de coisas - Ela levantou os olhos do bolo de CDs que tinha agora em mãos. - Faço mais tarde.

Anahí: tudo bem, contanto que você não me responsabilize por uma possível falência depois de matar tanto serviço assim por minha causa - comentou, para logo em seguida se corrigir, apressada: - Digo, por causa do bebê.

Um pequeno sorriso foi minha resposta ao seu comentário. Ela sempre se corrigia daquela forma, apressada e sem jeito, quando percebia que tinha, sem querer, se posto como recebedora das minhas atenções ao invés do bebê. Como se meu cuidado e minha preocupação também não fossem direcionados a ela, só ao nosso filho.

Alfonso: tudo bem - não prolonguei o assunto. Ao invés disso, peguei um disquete de dentro da caixa. - Eu achei que fosse humanamente impossível alguém ainda ter um desses hoje em dia. E você tem vários.

Ela mostrou a língua, tirando-o de minha mão.

Anahí: tem coisas importantes aí dentro, por isso os guardei.

Alfonso: tipo o quê?

Anahí: tipo não sei - deu de ombros. - Você não quer que eu lembre o que tem dentro de cada um desses, né?

Alfonso: ok - aceitei com uma risada. - E esse monte de papel? - perguntei olhando em volta.

Anahí: coisas da faculdade, do trabalho. Acho que, se procurar muito, encontro alguma coisa do colegial, embora não tenha guardado muita coisa daquela época. - Ela não disse com a intenção de trazer o passado - o nosso passado - a tona, de forma mordaz, como fazia antes, mas eu pude perceber em suas palavras que era sobre aquilo que ela se referia. E quando também percebeu o que havia dito, ela encerrou logo o assunto. - Enfim, várias coisas...

Não dissemos nada por algum tempo e logo nossas atenções voltaram-se completamente para as caixas. Eu mais olhava, fuçando os papéis, olhando livros e CDs, que ajudava. Na verdade, eu não tinha como fazê-lo, era ela quem sabia o que seria ou não jogado fora. E ela sabia que minha ajuda seria inútil, mas mesmo assim não disse nada. Ficamos ali, em silêncio, revirando seu passado. Vez ou outra eu perguntava alguma coisa sobre algo que me chamava a atenção e ela respondia com uma naturalidade ainda surpreendente. Entretanto, numa dessas vezes, ela não respondeu.

Eu segurava um livro, a capa já amarelada, e perguntara algo sobre ele enquanto o folheava, distraidamente. O silêncio que seguiu minha pergunta fez com que eu levantasse os olhos e a encarasse. Completamente disperça, ela olhava algumas fotografias. Aproximando o rosto com cuidado, olhei por sobre seu ombro. E não sei bem o que senti com o que vi.

Apesar dos muitos anos que se passaram, eu ainda me lembrava exatamente daquele dia. Foi um choque perceber isso, como também foi bem estranho olhar para aquela fotografia e ver o adolescente que um dia eu fora fazendo careta ao lado de uma garota de óculos, franjas compridas e aparelho nos dentes, que sorria encantada, admirando minha gracinha.

Eu. Ao lado de Anahí. Dez anos atrás.

Quando ela suspendeu o rosto e me encarou, percebi em sua expressão que ela também se lembrava.

Era impossível não lembrar.

O Pecado Mora Ao LadoOnde histórias criam vida. Descubra agora