Capítulo 2 - A charrete dos cinco yutsis

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A palavra rosano vinha da língua antiga, a na-u-min. Roun, o nome em na-u-min para o sol, juntava-se à palavra sana, de tempo. Um rosano se passava ao final do ciclo das quatro estações --- cada uma com cinquenta e quatro dias: inasi-u-sana, a mais fria, na qual estavam já quase pela metade; kerlz-u-sana, a seguinte, mais bela e primorosa; torn-u-sana, a mais quente, e gargsel-u-sana, a cinzenta. Era comum que uma pessoa chegasse aos noventa rosanos de vida, embora algumas conseguissem viver com paz e estabilidade para além dos cento e vinte.

Lamar aprendera quase tudo que sabia sobre o mundo em um livro velho e puído, que ele conservava até hoje, embora nas mãos de um novo e ávido leitor. O livro, Registro Geral, foi um presente de um amigo que fizera em Kerlz-u-een, cidade em que passou a morar com a ajuda da família quando tinha cerca de trinta rosanos. O mesmo amigo fez com que esquecesse tudo que tinha conseguido aprender sobre magia. Na verdade, fez com que rejeitasse tudo aquilo, e visse as coisas de um jeito bastante diferente. O resto de seu pequeno arcabouço de sabedoria vinha das músicas de sua terra natal, cheias de histórias vivas.

Lamar sabia também sobre minérios, os fenomenais objetos de vários formatos, cores e propriedades. Lamar sabia que os minérios pentagonais, discos razoavelmente espessos --- mas ao invés de circulares, contendo cinco lados retos e iguais --- geravam luz. Sabia que a corvônia, material extremamente resistente e invariavelmente negro, era obtida através de um minério octogonal --- o único com este formato, roxo e translúcido. Sabia que por aquela estrada passava, de hora em hora, uma charrete controlada por um condutor carrancudo, e levada adiante por cinco yutsis. Ele não sabia que horas eram, então esperava que ela não demorasse muito, pois ele não queria mais ter que lembrar de detalhes da história de Heelum para se distrair do pesadelo em que sua aula se transformara. Queria logo chegar em casa e receber, na medida do possível, o carinho e o cuidado de Myrthes e de Ramon, e depois, se conseguisse, dormir como um minério.

A trilha era sinuosa e estreita, uma estradinha que circundava o lado leste de Prima-u-jir, ligando terras mais distantes a outras mais próximas do centro. Já estava quase completamente escuro, e ali apenas um minério no topo de um alto poste de corvônia iluminava a região com uma fria luz azul. Para além do distante foco ficavam as estrelas.

Por mais que tentasse pensar em histórias e pedras, nada que ele pudesse imaginar o deixaria imune a memórias. Ao calcular horas, dias e rosanos, lembrava-se do passado que queria ignorar. Ao pensar em trilhas, refazia em sua mente o caminho que fazia, quando era menor, até uma mansão na colina mais alta do centro de Prima-u-jir. Dias mais cinzentos que aquele tomavam conta de suas sensações, como se ele estivesse lá, e pudesse sentir de novo a grandeza de um mundo além de sua imaginação. Um mundo grande, grande demais para sua pequenez.

Barulhos e vento o despertaram da nostalgia às avessas. O chão estava sendo pisoteado com violência, e as vibrações faziam qualquer coração bater mais forte.

Ninguém ficava indiferente diante da beleza bestial de um yutsi, um ser absurdamente grande. Quadrúpede, com no mínimo oito pés de altura e dezessete de comprimento, era todo coberto por um exoesqueleto duro e levemente áspero, cingido em pequenas partes curvas, encaixando-se em seu corpo como a armadura mais perfeita já vista. Sua respiração pesada e seus movimentos do tórax eram vibrantes e ritmados como tambores de guerra, e de seu torso roliço saía por um pescoço curto uma também protegida cabeça. Seus olhos eram tortos como fendas, e de um vermelho irritadiço. A boca, menor do que se poderia esperar, carregava os dentes mais resistentes dentre os animais de Heelum, e havia também dois chifres tortos, sempre assimétricos. A cauda era sólida e hostil como o corpo e, articulada, normalmente apontava para o céu. Ao invés de ser o ponto fraco do animal, era na verdade uma arma por vezes mais poderosa que o próprio galope determinado.

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