Narion permaneceu por incontáveis horas na mesma sala. A dor no abdômen havia acabado, mas isso não o deixava menos preocupado. Ela era, na verdade, o menor dos problemas, já que a última vez que ouvira qualquer coisa do lado de fora foi quando Elton foi embora. Ninguém havia vindo lhe trazer comida, água; uma ameaça ou uma oportunidade. Não conseguia arrombar a porta, por mais que tentasse. Já dormira uma ou duas vezes, sem saber por quanto tempo, e passava seu tempo consumindo-se em memórias pontudas, irrealizáveis planos grosseiros e reflexões circulares.
Captou uma presença do lado de fora do cubículo; quase pensou que aquele era um barulho acidental de quando se mexia. Pôs-se de pé, alerta, quando a porta foi destrancada e três policiais entraram na sala com espadas em punho. Vacilantes, vestiam o traje azul escuro aveludado que Narion reconheceu, piscando na morosa intenção de fechar os olhos. A única mulher entre eles tremia tanto quanto os outros; com um rosto fino e cabelo loiro preso para trás, chegava a quase se agachar em uma posição de luta desconfortável. O homem ao seu lado na triangular formação do grupo também segurava a espada com as duas mãos e, compartilhando do entusiasmo em relação àquela tarefa, trazia nos olhos raiva e uma porção considerável de receio. O mais gordo homem à frente, no entanto, trazia menos medo nas enormes pupilas negras, exibindo uma fascinação sanguinária pura e filtrada.
--- Gostou do cativeiro?
--- Eu... --- Narion observou-os e, paciente, resolveu tentar negociar sua saída. Pensou que suas chances, contudo, eram pequenas. --- Não. Na verdade, não.
--- É? É mesmo? Tanto faz. Viemos aqui te dar o teu próprio veneno, al-u-bu-u-na maldito!
Com a voz trincando os dentes com esforço, os três avançaram ruidosamente contra Narion, o policial da ponta batendo com a bacia na quina da mesa --- ainda que isso não os tornasse menos letais.
Narion não teve tempo de reagir; via os rostos suados e absolutamente exaltados comandarem uma vingança premeditada e intencionalmente cruel, com o fio perfeito da lâmina descendo em direção aos próprios ombros com letal precisão.
Antes que se desse conta, puxou com o braço direito o arco e em um ríspido movimento lateral interceptou as três espadas com brutalidade, afastando os policiais por um momento.
Foi só o que foi preciso para que ele o arranjasse na mão esquerda e puxasse três flechas com a direita, alinhando-as de forma ameaçadora.
--- NÃO! Não atire! --- Pediu o policial à frente, com as emoções em metamorfose.
--- Eu não quero atirar. --- Disse Narion, ainda tensionando o arco com força. --- Mas não duvide que eu vou se algum de vocês tentar ir embora.
Com as mãos para o alto, os três olhavam para o algoz que há segundos tinham por alvo fácil.
--- Quem é você? Como... Como consegue...
--- Não importa. Mas eu não quero matar mais ninguém.
Não quero matar nenhum de vocês, pelo menos.
--- Vão até a parede.
--- Ele vai matar a gente... --- Balbuciou o outro policial à esquerda.
--- Não, não vou. Eu s-só quero ir embora.
Permaneceram imóveis, sem conseguir acreditar. Narion estava cansado e faminto. Estava pronto para atirar, e sabia que não havia como voltar atrás --- não dependia mais dele. Ainda que belicoso, parecia um mendigo à beira de um desmaio.
--- P-por favor... --- Narion pediu, num quase sussurro.
***
Andava vagarosamente agora que estava mais seguro; correra do prédio em que ficara trancado por aparentemente uma tarde e uma noite --- duvidava que mais de um dia houvesse se passado. Arranjando os pensamentos, recostou-se em uma murada amarela e tirou do fundo da aljava um papel azul dobrado e amassado que, mesmo cheio de rugas e detritos inexplicáveis, servia bem. Era um mapa abrangente e detalhado, mas no qual Narion não conseguia confiar; fora um presente de Lato-u-nau. Ainda assim, era tudo o que ele tinha, e já que o havia levado com segurança a Enr-u-jir poderia muito bem levá-lo ao Conselho dos Magos com a mesma exatidão.
Abriu a folha, que manteve os dois braços bem esticados quando completamente usada. Passou os olhos pela região Noroeste, procurando pelo conselho entre Novo-u-joss e Jinsel, mas nada encontrou. Na região Sudoeste havia uma miríade de cidades --- mas nenhum Conselho.
O mesmo processo desalentador se repetiu em todas as regiões. O Conselho simplesmente não estava no mapa, e Narion pensou que, mesmo tendo morado em uma cidade cheia de mapas e de conhecimento, jamais ouvira falar de nenhum Conselho como esse. Com raiva, Narion começou a caminhar sem caminho pela ruela praticamente deserta em que entrara. O mapa ficou para baixo por um tempo, ao sabor do vento e do chão, no qual roçava em desleixo até que Narion resolveu dobrá-lo e colocá-lo de volta junto às flechas.
Conferiu o entorno. Via um cenário velho e alaranjado, decadente antes mesmo de ter atingido um ápice. Poderia, tendo em vista as escolhas mais óbvias, voltar à avenida de onde viera, ou seguir pelo caminho quase labiríntico de pequenas vias que formavam aquela parte pouco notável da cidade.
Logo na primeira curva viu uma banca simples e quase unidimensional de madeira. Comandada por um homem de pele vermelha e cabelos escuros quebradiços, vendia uma variedade pequena de frutas que, já pecando pela quantidade, tampouco transbordavam qualidade.
Aproximou-se da venda, pensando que pelo menos poderia localizar-se um pouco mais. Viu que havia mais alguém ali: um senhor de idade semelhante à do dono da frutaria, vestindo uma camisa azul-clara com finas listras verticais vermelhas. A calça marrom fazia par com um gorro grosso de tom exatamente igual. Estava sentado em um banquinho, parecendo entretido com as próprias ideias.
--- Que dia é hoje? --- Perguntou Narion.
--- Olá, amigo! --- Disse o homem, falando alto. --- Como posso ser útil?
--- ... Que dia é hoje? --- Repetiu Narion.
--- Hoje? É... Trinta e nove!
O homem tinha um sorriso bem disposto constante e afinado. Expansivo, dava a impressão de que a única coisa o impedindo de abraçar o freguês em potencial era o próprio estabelecimento comercial.
--- Obrigado, senhor.
--- Não quer uma maçã, homem? --- Disse ele, fazendo o al-u-bu-u-na parar e virar-se novamente. --- Vai sair daqui de mãos vazias? Que isso! Olha, eu tenho abacaxi, manga, la...
--- ... N-não, obrigado. Não tenho dinheiro.
--- Ah, certo... --- O vendedor lançou um olhar condescendente a Narion, que acabou tendo uma ideia.
--- ... Você sabe onde posso arranjar dinheiro?
--- Você quer dizer trabalho?
--- Sim.
Ele assumiu uma expressão de quem não poderia estar mais longe de saber daquilo, balançando a cabeça para os lados.
--- Não sei... Mas sabe que...
--- Austino...
O homem de gorro marrom chamava o vendedor com o dedo indicador levantado, e só então Narion percebeu seus olhos estreitos e seus movimentos perniciosamente suaves.
Austino olhou para ele, de volta para Narion e, decidindo-se, pediu por um momento. Juntou-se ao homem e ouviu algo que Narion não conseguia discernir; estavam longe demais para isso. Austino voltou-se para o fugitivo que procurava emprego e, com um sorriso de constrangido alívio, pôs as mãos na cintura.
--- Bem... Quem diria? Acho que eu tenho alguma coisa pra você aqui, homem.
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A Aliança dos Castelos Ocultos
FantasyNa série Controlados, a magia está em todo lugar. Os magos podem alterar os seus sentimentos, os seus pensamentos ou comandar as suas atitudes. Não se pode confiar em ninguém. No primeiro volume da série, A Aliança dos Castelos Ocultos, Heelum está...