A luz do sol sempre fazia o mesmo caminho do céu até aquela porta durante a manhã. Entrava por uma janela suja e que não fechava mais --- ela emperrara e ninguém na casa sabia consertar, tampouco havia dinheiro para contratar alguém que soubesse --- e durante algumas horas a luz amarelada aquecia a longa e espessa tábua de madeira que ficava à direita da escada de ferro, sempre disposta a amedrontar qualquer visitante com sua ruidosa fragilidade.
Leo estava parado bem em frente à porta. Seu quarto ficava à esquerda da escada, e só não era mais próximo do lugar onde estava agora que o quarto de Beneditt. No final do corredor, ainda mais longe, ficava o banheiro e, à direita, o quarto de Fjor. A porta que Leo observava dava acesso ao quarto de Leila.
A madeira era marrom e escura. Fosca, estava completamente riscada e arranhada. Alguns dos riscos faziam sentido; outros, não. A maçaneta, em forte contraste com a madeira, por vezes profundamente sulcada, era impecavelmente limpa e negra.
Leo passava os dedos pela superfície de cima a baixo, lentamente, sentindo a textura sem deixar as unhas encostarem nela, para não fazer barulho. Leila estava do lado de dentro do quarto, e ele não queria alertá-la para sua presença. Era frequente Leo encostar o ouvido à porta, sentindo as farpas nas bordas dos cortes encostando na orelha, tentando ouvir o que ela estava fazendo. Na maioria das vezes alguns sussurros soltos voavam pelo ar e vinham de encontro a ele, mas quando passavam pela barreira perdiam todo o significado.
Quando isso acontecia, Leila estava provavelmente compondo. Leo e ela tocavam juntos --- formavam uma banda, todos os moradores da casa, a única exceção sendo a avó de Leo e Fjor, Cordélia. Tinham sorte de ter nascido na cidade mais musical de Heelum: Novo-u-joss, berço da guitarra. Estavam no lugar mais apropriado de todos para serem criativos, e tentavam ser reconhecidos por isso. Fjor tocava o contrabaixo; Beneditt era o baterista --- embora soubesse tocar guitarra também. Leo e Leila dividiam os vocais e as duas guitarras, embora ela fosse a responsável pela maior parte das letras.
Os dedos de Leo alcançaram a parte mais interessante, de frente para sua cintura. Cavadas com força, violência e provavelmente pressa, letras grosseiras formavam três simples frases:
Pode um cantor cantar
O que ele não pode ver
Mas o ar lhe faz falar?
Leo sorriu.
Como a maioria dos sofrimentos impingidos à epiderme da porta ao longo do tempo, Leila não sabia quem havia escrito aquilo. Leo também não fazia ideia. Ainda assim, se precisasse apostar, diria que a própria Leila o fez, e estava apenas criando um mistério ao redor de uma genial criação. A única coisa que ela admitiu fazer, no entanto, foi a continuação: um único verso, trabalhado de maneira substancialmente mais cuidadosa, e que terminava perfeitamente a já boa tríade.
Farfalhar lhe faz falhar
A porta abriu de supetão. Leo deu um passo pra trás, com o coração batendo mais rápido, mas tentou fazer aquilo parecer o mais normal possível; olhou direto nos olhos de Leila e, respirando fundo, fechou a boca ao perceber que ela continuava aberta desnecessariamente. Fechar a boca provocou uma vontade inelutável de engolir em seco. Fez, quase que querendo desfazê-lo no meio do caminho, e pareceu ainda mais suspeito.
--- Oi... Leo --- disse Leila, com seus grandes olhos bem abertos.
***
Leila era como a porta do próprio quarto. Muito mais agradável de se olhar, é verdade, Leo diria, mas provocava o mesmo efeito de fascinação. Quem poderia saber o que significava aquela porta, e tudo que havia nela? E quem poderia fazer sentido de Leila, e de tudo o que escrevia, dizia e fazia?
Toda vez que Leo lembrava dela, imagens do azul real do céu e do verde mais vivo das colinas vinham à mente. O cheiro daqueles bosques em que eles podiam passar horas intermináveis escrevendo e falando sobre tudo invadia a mente dele como um aríete. Leo ouvia o que a garota criava, e impressionou-se desde o primeiro momento com as músicas que ela compunha. Logo passou a colaborar com ela.
Leo sabia que se apaixonaria por ela. Não sabia como reagir a este conhecimento futuro tão íntimo, fatalista, certeiro: não sabia como esperar aquilo surgir, se deveria agir desde o primeiro momento, ou... Não sabia com quem deveria falar. Com quem contar. O pai fora embora. A mãe não parecia apta a dar conselhos. Fjor não era um poço de sabedoria confiável. Tudo que Leo sabia é que Leila o teria na palma da mão. Era só uma questão de tempo.
Quando os dois se conheceram tinham a mesma diferença de altura. Leo não chega a encostar na porta, que não era nem alta, nem baixa, mas está um tanto mais próximo do topo que Leila. Ele tem a pele morena, mas não no mesmo nível da cor da porta. Seus olhos eram escuros, de um escuro tom-de-maçaneta.
Ela era diferente. O cabelo era castanho, um marrom similar ao da porta; uma espécie de camuflagem que só era interrompida pelos diversos cortes no pano de fundo. Mas os cortes, de um amarelo mais claro, embora vivo, se assemelhavam, ainda mais incrivelmente, à cor de sua pele. Os olhos, castanhos --- um pouco esverdeados --- eram expressivos, mas tão misteriosos como as diversas inscrições naquele portal cheio de história: mostravam-se a quem quer que fosse, sem pudores, mas recusavam-se a dobrar à inquisição do observador mais atento.
***
Fazendo-se de assustado, Leo logo soltou uma risada nervosa, que contagiou Leila.
--- Nossa, você... Me assustou um pouco!
--- É, e-eu vi! --- comentou ela, colocando a mão fechada por sobre a boca risonha. O quarto dela, com a janela deliberadamente aberta, era sempre claro durante o dia. Leila não gostava de compor no escuro. --- Você me assustou também... Um pouco.
--- Eu... Vim falar com você.
--- Sobre o quê?
--- Sobre... Hoje à noite. Se está tudo certo pra gente tocar lá.
--- Sim, é claro. Por que não estaria? --- Retrucou ela, a testa franzida. Leo suou um pouco mais e teve vontade de punir a si mesmo severamente pela estúpida improvisação.
Os cabelos não deixavam explícita uma conexão que de fato existia entre os dois: cada um escolheu um estilo para o outro. Leila fez com que Leo o deixasse curto e bagunçado. Ela dizia que o cabelo deveria funcionar como a poesia de uma canção: elas surgem e crescem, mas só ficam boas quando mãos habilidosas as cortam e as recombinam.
Leo não via as coisas do mesmo jeito. Achava a beleza da natureza algo muito maior --- ainda que visse as colinas mais como molduras para o rosto de Leila. Há algo de especial naquilo que surge espontaneamente, sem pressões ou interferências; algo de inexplicavelmente e intrinsecamente belo naquilo que simplesmente acontece. E a vasta cabeleira de Leila acontecia, e era seu crescimento raramente interrompido (por causa da decisão de Leo) que o deixava cada vez mais exuberante.
--- Não, é que... Faz algum tempo que a gente não te vê. P-Por... Aí.
--- É, eu fui trabalhar de novo ontem. Fui com o Beneditt.
--- Uhum.
--- Mas estive fazendo umas coisas novas aqui e... Bem... Uma hora eu te mostro.
--- Certo.
--- Certo. --- Os dois balançavam a cabeça afirmativamente, sorrindo de leve, como que concordando com algum arranjo abstrato. Os olhares se encontraram, e naquele momento de contato Leo desejou ser capaz de entender o que ela estava tentando dizê-lo. Se é que estava tentando dizer alguma coisa. --- ... Bem, eu... Vou voltar.
--- Claro.
--- Até.
Com algo que se assemelhava a um sorriso nervoso, Leila fechou a porta.
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A Aliança dos Castelos Ocultos
FantasíaNa série Controlados, a magia está em todo lugar. Os magos podem alterar os seus sentimentos, os seus pensamentos ou comandar as suas atitudes. Não se pode confiar em ninguém. No primeiro volume da série, A Aliança dos Castelos Ocultos, Heelum está...