Capítulo 12 - Por um triz

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Amanheceu em Al-u-een pela trigésima-quarta vez naquela estação. Kan sentava em um banco de uma praça na zona norte do centro, vestindo uma longa capa verde-escura. Estava velha, pequena demais para ele e, escolhidas regiões específicas, cheirava a peixe. Vestir a indumentária dos breves tempos de preculgo trazia à baila uma série de memórias; todas coisas sempre importantes de se ter em mente.

Gagé e Lenzo se aproximaram momentos depois, surgindo dos arredores de crianças sorridentes e casais deitados na grama. Kan deixou de observar as minúcias das nuvens amareladas por detrás de um leitor ávido no banco à frente para silenciosamente se juntar ao grupo. Lenzo olhava para baixo, mas ocasionalmente pendia-se para os lados e para trás. Talvez quisera continuar lá atrás, com as crianças, como se aquele plano não existisse. O passo forte liderado pelo semblante de Gagé, que traduzia seu prévio estilo de vida de lutador, não o deixava esquecer, e levava os três cidade afora em direção à casa de Hourin.

Passaram por grandes e velhas árvores que o período de frio não conseguira atingir; permaneciam cheias de vitalidade nas folhas. Saíram da praça, cuja trilha interna era apenas terra batida, e entraram em uma ruela de pedra em que várias casas de dois ou três andares se erguiam juntas, como blocos retos que se encaixavam perfeitamente uns aos outros, ainda que a altura por vezes diferisse. Entraram na próxima rua à direita, onde mais casas funcionavam da mesma maneira. Ao lado, o que destoava eram as vassouras, de extremidades ainda quentes de mãos enérgicas, largadas pelo lado de fora depois de ter deixado os empregados ocupados e as famílias mais felizes. Cada casa era coberta com uma camada externa de madeira, que os donos pintavam e ornavam a gosto, o mesmo acontecendo pelo lado de dentro. A estrutura, no entanto, era de corvônia, de modo que as casas eram resistentes. A madeira era duplamente posta porque a aparência da corvônia não era valorizada na estética das residências, que seriam tidas por feias e de aspecto sujo --- em contraste com monumentos e prédios públicos, aos quais o mesmo material conferia um ar de poder e glória atemporais.

Gagé parou em uma intersecção onde à rua em que estavam se juntava um beco escuro. Oposta ao beco, uma comprida casa rosada exibia várias janelas fechadas, apenas algumas com as rubras cortinas para o lado de fora. Em uma das casas da esquina que formava a rua sem saída, o vazio parecia imperar: completamente fechada, com a pintura bordô desgastada. A outra tinha dois andares de uma impecável pintura verde com ricos detalhes dourados em textura. No vértice, na divisão entre o primeiro e o segundo andar, os detalhes dourados ganhavam cada vez mais relevo até acabar em uma gloriosa flecha apontada para cima, destacada da parede. A casa que hoje era de Hourin --- e abrigava somente ele e sua filha --- fora conhecida, no passado, por ter entre os seus membros excelentes arqueiros.

Se Hourin fosse arqueiro, pouco a magia poderia fazer para ajudá-lo. Mas como era político, a magia era essencial. Em Heelum, a magia não era familiar: proibida, tinha que encontrar maneiras sutis de sobreviver à sombra de tudo que era oficial. Os magos recrutavam apenas um discípulo por vez, muitas vezes ainda muito jovens, e lhes ensinavam a lidar com Neborum. Os filhos, protegidos das potenciais sanções aos magos, não ficavam totalmente de fora da partilha das benesses: os magos costumavam ser bem-sucedidos e, ricos, ofereciam a eles tudo o que precisavam e queriam.

O povo de Al-u-een era orgulhoso de sua cidade por vários motivos. Mas, de todas as coisas que eram e faziam, nada deixava a população mais contente do que a crença de que a cidade funcionava sem a dominação dos magos. Na política, cada pessoa --- inclusive as crianças --- tinha direito a um voto. Os votos elegiam mais de setenta parlamentares que, em debates públicos, discutiam assuntos relevantes para a cidade, tomando decisões. Prezando a justiça e a equanimidade, a maior parte dos cidadãos de Al-u-een, mesmo os que não viviam tão bem quanto outros, via a si mesma como modelo para toda Heelum, e acreditava-se imune à forma egoísta como os magos lidavam com as vidas de todos que os cercavam.

A Aliança dos Castelos OcultosOnde histórias criam vida. Descubra agora