- Ahn...- murmurei. Minhas mãos suavam frio. Passei elas pelas gominhas do vestido.- Foi tranquila sim. Aliás a cela está precisando de uma boa limpeza. Talvez seja melhor uma nova.- sorri e voltei minha concentração para a comida.
- Ja provodenciei isto. Isaac deve voltar com elas a qualquer momento.- como um lampejo, eu entendi tudo. Papai tinha mandado Isaac me vigiar.- O carteiro passou por você?
- Não.- peguei um pedaço de pão e passei geléia. Minha mãe olhou para papai com aquele olhar. Analu me cutucou.
- Para de interrogar a Nina, Ian. Ela já vai fazer 18 anos!- começou a comer mais furiosamente.
- Sofia...- papai gemeu, reclamando.
- Nada de Sofia! Idaí que ela recebeu uma carta? Encalhada não vai ficar.- explodiu. Opa. Acho que o problema não era Isaac, afinal.
- Ela ainda é uma criança!- falou exasperado.
- Criança? Com 18 anos eu já me virava, já tinha meu emprego, fazia faculdade! Ela sabe o que é certo e errado!- mamãe levantou, falando mais alto.
- Não Sofia! Ela... Ela pode se machucar! Não posso...- ele socou a mesa, parecendo imerso em um conflito interno.- Não posso permitir! Minha menininha se magoar. Não posso!- falou a última frase como uma súplica. Isso fez a raiva desarmar. E não só de mamãe. Ficamos todos parados por um minuto inteiro. Várias emoções diferentes. Papai com a mandíbula trincada, parecia tentar se controlar. Minha mãe o olhava como se finalmente o tivesse entendido. Analu parecia confusa. E eu... Bom, eu fiz o que era certo. E o que eu estava com uma vontade louca de fazer. Levantei da cadeira e abracei o homem que esteve sempre comigo. Que me pegou quando eu caia. Que incentivou meu gosto pelos cavalos, mas nunca me forçou a seguir esse rumo se não quisesse. O homem que me deu amor. Meu pai. Ajoelhei ao lado da cadeira e envolvi sua cintura. Ele passou os braços ao meu redor sem nem exitar.
- Tudo bem papai. Eu... Eu entendo.- sussurei.- Mas preciso viver minhas próprias aventuras. Preciso quebrar a cara e me erguer de novamente. Como eu vou aprender a pular obstáculos se o caminho é livre?- Ergui os olhos pra ele e sorri. Ele mirou meu rosto por um tempo antes de falar.
- Nina... Enfiar nessa minha cabeça dura que você cresceu é...- ele deu uma pausa, rindo.- Bom, é algo que não consegui.- deu de ombros, derrotado. Vi mamãe envolver suas costas e beijar a cabeça dele. Analu me envolveu por trás.
- Quando vamos terminar um desjejum em paz?- perguntei e rimos.
- Creio que nunca, minha filha.- papai respondeu. Ouvi a risadinha de Madalena, que provavelmente assistiu a cena.
- Podemos voltar a comer? Estou faminta!- Analu reclamou, mas não me soltou. Ri e concordei com a cabeça.
- Isso! Essa geléia ta divina.- mamãe concordou, sentando. Fomos todos para nossos respectivos lugares e voltamos a comer, com o clima mais leve. Papai até voltou ao sorriso costumeiro. Finalmente a calmaria. Bem, era o que eu achava.
***
"É com muito prazer que convidamos a família Moura para o baile na residência Clarke em celebração ao aniversário de Marina Alonz...
Girei o pulso. Minha mão já reclamava pelo esforço. Olhei pra pequena pilha que ainda faltava. Talvez uns dez? Suspirei. Eu adoraria se meu pai aparecesse com algum trabalho. Ou minha mãe precisando de ajuda na fábrica. Me peguei olhando distraidamente para a janela, meus pensamentos voando longe.
- Nina?- pulei de susto na cadeira, pondo a mão no coração.
- Que susto! Acho que divaguei.- olhei pra minha irmã, que ria.
- Quer que eu acabe para você? Sabe que adoro treinar a caligrafia.- Analu tinha uma letra horrenda quando criança. Tia Lisa foi treinando com ela até que se tornou ainda mais linda que a dela. Desde então minha irmã tomou gosto.
- Não se importaria? Meu pulso está reclamando.- ela sorriu, meiga.
- Claro que não! Ande, me dê.- peguei a pilha que falta e a carta inacabada, passando-as pra sua mão.- Certo, agora vá caminhar um pouco. Não me demoro.- assenti e mandei um beijo no ar para ela. Olhei para meus pés nos saltinhos. Eu ainda não tinha devolvido os tênis... Como quem não quer nada, voltei para o quarto e os analisei com curiosidade. Ah, porque não? Calcei-os rapidamente e suspirei de alívio. Bem que a fada madrinha poderia mandar um desses para mim! Afofei a saia de modo que não dava para ver a lona vermelha. Perfait!
É nesses momentos que eu me pego pensando nas histórias que minha mãe conta. Nesses momentos que a calmaria seria relaxante para alguns, mas para mim é enfadonha, que imagino como é o futuro. Quando não se tem nada para fazer, com o quê se poderia ocupar? Talvez... Mordi o lábio. Bom, tinha bastante tempo que eu não continuava com o "projeto". Pelo estado da minha mão latejante, não iria rolar. "Rolar". Que expressão medonha! Uma inspiração subita me atingiu. Compôr! Me apressei para a sala de música e me sentei ao piano. Talvez a letra primeiro? Pensei em todas as coisas que me inspiravam. Lembrei de todas as cartas que recebi. As palavras doces. Lembrei de minha família. Dos cavalos. De olhos verdes com barb... Me detive. Talvez se eu... Comecei tocar a melodia que mamãe cantarolava para nós. A letra eu sabia de ponta a ponta, mas eu poderia muda-la. Arrisquei algumas escalas diferentes e o resultado foi surpreendentemente bom! Me animei e continei mudando a melodia. Então as palavras me vieram facilmente.
"Boy I hear you in my dreams
I feel you whisper across the sea
I keep you with me in my heart
You make it easier when life gets hard"As longas aulas de inglês foram de boa servidão, afinal. Continuei tocando até ouvir uma batida na porta. Olhei para trás e mamãe me olhava com pequenas lágrimas nos olhos, levando a mão aos relicários.
- Lindo Nina! As modificações ficaram perfeitas.
- Estou lisongeada mãe.- sorri, orgulhosa comigo mesma.
- Nossaaaa! Minha filha é a nova Beethoven!- ela riu.
- Quem?- olhei confusa.
- É um músico super famoso e... Ah, esquece. Vem, temos que picar a mula antes que sua irmã dê um chilique. Parece que é ela quem vai fazer aniversário!- rimos. É bem a cara de Analu.
- Ela está mais inquieta que eu.- mamãe concordou com a cabeça e enlaçou o braço no meu.
- Sua irmã é mais pilhada que você, só isso.- ela disse.
- Ela vai ficar bem "pilhada" se atrasarmos mais um segundo sequer!- andamos mais depressa e encontramos minha irmã dando ordens à Isaac. Com seu jeito doce sempre fora meio difícil leva-la a sério, mas ele parecia compenetrado a tarefa. Nos aproximamos e Isaac nos saldou.
- Boa tarde patroinhas!- ele sorriu simpático.
- Boa tarde Isaac, como vai?- perguntei.
- Muito bem! E a senhorita?
- Ótima!- sorri. Analu fez um gesto para entrarmos na carruagem.
- Vamos, não podemos nos tardar mais!- ela disse nervosa.
- Calma filha! Você tem que respirar fundo e relaxar.- mamãe pôs as mãos nos ombros dela, fazendo movimentos de inspiração e expiração. Analu seguiu e pareceu mais controlada.- Ótimo! Agora vamos. Mete bala Isaac!
- Pode deixar patroa!- o cavalariço seguiu a toda. Bom, o mais rápido que uma carruagem consegue.
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Aguardada
RomanceA história de Marina Alonzo Clarke. Nina nunca foi uma pessoa propensa as regras do século 19. Diferente da irmã Analu, sempre foi mais "saidinha", nas palavras de Sofia. Agora com 18 anos, ela enfrentará o maior desafio de sua vida, conhecendo algo...