Olhei para a cara do atendente que me encarava a pelo menos cinco minutos, ainda que me custasse muito fixar minhas pupilas nas suas. Eu estava tentando convencê-lo a me vender 15 aspirinas.
– Sim, de novo. - respondi.
– De novo, sei. Mas... O que aconteceu com a cartela que você comprou essa semana? - perguntou desconfiado, cruzando os braços sobre o peito, amassando o uniforme azul claro da farmácia.
– O quê? O quê que tem? - fiquei nervosa embora tentasse manter minha expressão entediada – Elas já acabaram. Eu sofro de dor de cabeça crônica e minha mãe tem crises fortes de enxaquecas. Na verdade foi ela quem me mandou vir buscar mais. - disse enfiando as mãos nos bolsos do casaco. Era mentira. Era tudo mentira.
Eu tinha sim dores de cabeça, mas não sofria de nada crônico (não oficialmente), muito menos minha mãe tinha crises de enxaqueca. Mas seria muito estranho entrar na farmácia e comprar 50 aspirinas de uma só vez, então eu tinha bolado o plano de ir em três dias diferentes nessa farmácia que fica no caminho da escola para casa, ser atendida por três pessoas diferentes a cada dia e então juntar uma boa quantidade do medicamento. Eu só não contava que seria sempre o mesmo cara atrás do balcão ao meio dia. Então eu estava encarando aquele par de olhos castanhos que encontrei dois dias antes, rodeado por cílios levemente alaranjados.
Isso era uma merda! Eu queria testar minha teoria das cinquenta aspirinas, mas para isso precisaria de mais 35. Mas aquele poste gigante vestido de azul estava claramente querendo me impedir. E pelo franzir de seu cenho, pela forma como ele tentava entrar em minha mente, eu tinha certeza de que ele sabia o que eu pretendia. Oh sim, ele sabia do meu plano.
Olhei ao redor, percebendo que não havia mais nenhum outro cliente entre os corredores estreitos e lotados de tintas, band-aids, fraldas e mais uma porção de coisas arrumadas em fileiras. Era um desafio, um duelo, apenas entre mim e - conferi o crachá metálico preso por um alfinete na altura de seu peito - Michael. Então era isso, eu podia visualizar tudo de fora, como num filme de faroeste, com closes em nossos olhares ferinos estreitados para o outro. Eu encarava Michael. Michael me encarava. Quem iria desistir primeiro?
– Escuta, Mike-posso te chamar de Mike? Tudo bem se eu te chamar de Mike? - tentei apelar para as práticas psicológicas que conhecia. O rapaz confirmou com um movimento leve de cabeça – Ótimo, Mike. Escuta; eu acho que estou entendendo o que você está pensando: que eu vou fazer alguma loucura com um milhão de aspirinas. Mas eu não vou. Eu só estou com muita dor de cabeça e preciso das aspirinas, então se você puder me vender algumas eu...
– Gosta do Batman? Eu adoro super heróis.
– O quê?
Pisquei várias vezes porque não tinha certeza do que estava ouvindo. Quê? Batman? Mas que aspirina aquele cara tinha cheirado?
Ele apontou para meu braço - mais especificamente para meu pulso - e só então eu percebi que ele estava falando do meu band-aid do homem morcego. Oh droga! Oh merda! Oh Batman!
Instintivamente puxei a manga do agasalho e apertei meu membro contra o corpo, tentando escondê-lo do julgamento. Baixei meu olhar e senti minhas bochechas ardendo e esquentando, tendo certeza de que estariam completamente vermelhas. Ótimo! Agora ele não iria me vender meus malditos comprimidos e ainda iria avisar minha mãe. Caramba, Valentina, você tinha que foder com tudo!
– Ei... - Michael chamou com o típico tom de pena em sua voz. Eu odiava quando as pessoas faziam isso. Era sufocante, vergonhoso. Era dizer "Hey, sua situação está uma merda e eu sei disso, e mesmo minha vida sendo uma bosta, provavelmente eu vou sorrir ao colocar a cabeça no travesseiro à noite por saber que existe gente que está pior que eu. Então eu vou agradecer a Deus por não ser tão ridículo quanto você". E pior ainda era quando essa pena vinha de desconhecidos.
– Nem tente. - anunciei com um dedo em riste – Não ouse continuar. Isso aqui foi um acidente. Eu tenho um cachorro e ele me arranhou e mordeu e eu precisei de um curativo por isso. Não é nada do que você esta pensando.
– Mas eu ainda não disse nada!
– Você disse "Ei". Ei! "Ei" é diminutivo de "eita", e "eita" significa muita coisa!
Percebi que ele concordava comigo. Não porque estava de acordo com o que eu dizia, mas apenas por aceitar e engolir. Deu de ombros.
– Ok. Eu vou vender as aspirinas.
– Sério? - encarei-o no mesmo segundo, arregalando meus olhos e logo mudando o foco para a prateleira cheia de pacotes de algodão atrás de sua cabeça, porque era difícil fitar seus olhos rodeado pela áurea laranja.
– É, eu vou sim... Mas só para sua mãe com enxaqueca.
Para reformular seu planos entre na fila à esquerda. Para protestar contra idiotas, preencha a ficha amarela com letra de forma. Para destruição total siga em frente e continue falando com um atendente idiota. Tenha uma boa tarde - a secretária do inferno dizia em minha mente. Obrigada, destino! Você ta cooperando legal pro meu guia!
Bufei em descontentamento e ajeitei a alça da mochila que pendia sobre o ombro.
– Você é um babaca, Mike! - disse e me virei, dirigindo-me para a saída.
– Um dia ainda vai me agradecer por isso. - gritou detrás do balcão.
Sem me virar, apenas ergui uma mão ao lado da cabeça e estiquei o dedo médio. Ele bem que podia ir se foder. É; ele devia ir se foder.
– Vá se foder. - gritei de volta.
Assim que cruzei a porta de vidro automática da farmácia, cegada pelo brilho branco e forte do sol que insistia em castigar minhas retinas, choquei meu ombro contra o de outra pessoa que estava entrando no mesmo momento. Olhei para a figura musculosa que se desculpava enquanto recuperava o equilíbrio. Cabelos claros, olhos amendoados, bíceps gigantes e um incomum curativo bege sobre uma sobrancelha: Lennick.
– Vá se foder - desejei passando rápido pelo garoto e seguindo meu caminho em busca de outra farmácia
Levantei minha cabeça, encarando o céu e sentindo os olhos lacrimejarem por serem forçados a encarar o sol brilhante. Ergui meus dois braços para cima e mostrei os dedos do meio para o sol.
– Vá se foder! - resmunguei para a grande estrela.
Mike, Lennick, o curativo dele, o sol... Eles todos podiam ir se foder hoje, só para variar um pouco essa mania de apenas Valentina se foder. Só para variar mesmo.
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Guia Prático Para Um Suicídio De Êxito
Teen Fiction#1 em Guia (24/11/2018) Valentina é uma garota de 16 anos que está escrevendo um livro diferente: um guia de suicídio. Para isso ela pesquisa e testa em si mesma diferentes formas de tirar a própria vida. Há quem diga que a garota é fraca por não...