Camiseta, bermuda, camiseta

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Caminhei lentamente até a praça que ficava a poucas quadras de minha casa e sentei no final de um escorregar. Por algum motivo não sentia vontade dr voltar tão logo para casa. Haviam pais e mães e seus filhos e filhas andando de mãos dadas no caminho de volta das escolinhas infantis. As crianças contavam alegremente sobre seus dias, explicando animadamente sobre os coleguinhas com quem brincaram, desenhos que pintaram e músicas que cantaram. Em contra partida os pais fingiam interesse em ouvir.

Uma garotinha correu até as escadas enferrujadas do velho brinquedo que eu ocupava, mas parou ao perceber que, estando eu sentada na rampa, ela não poderia descer. Colocou um dedo na boca e me olhou pensativa.

– Xô! - espantei-a com um aceno de mão. A menina correu até a mãe que estava ocupada conversando com outra mulher, e abraçou sua perna.

Fiquei ali, sentada, pensando sobre o que tinha acontecido por mais tempo do que reparei. O sol se pôs, as luzes noturnas acenderam e eu continuei imóvel. Olhei para o céu onde algumas poucas estrelas ousavam aparecer.

E se eu não voltasse mais para casa?

E se eu ficasse ali a noite inteira?

E se eu saísse andando rumo aos limites da cidade e cruzasse a rodovia?

Com que facilidade me encontrariam - ou não?

Todas as respostas pareciam pouco convidativas, como se me fosse excluída a opção de simplesmente não participar. As pessoas tinham seus empregos, suas familias, seus hobbys e suas casas, e seguiam suas rotinas entediantes todos os dias. Era esse o meu futuro e destino, e não entrar na dança era intolerável e impossível. Se "o sistema" não me empurrasse para uma vida ridícula e regrada, então o Diapazam o faria. Diapazam, Clonepazam, Prozac, Lamictal, Escitalopram, Trileptal - tanto faz.

Voltei para casa e a imagem que encontrei infelizmente era familiar: minha mãe estava deitada no tapete da sala. O cheiro de álcool invadiu minhas narinas e, ao olhar em volta, logo encontrei um copo plástico roxo caído a alguns metros de distância e o líquido transparente ao redor. Peguei o celular do bolso e conferi a hora - ainda teria pouco mais de uma hora até meu pai chegar do trabalho.

Suspirei.

Aproximei-me de minha mãe e ajoelhei ao seu lado.

– Ei... - cutuquei seu braço – Mãe, levanta. Vem, vamos tomar um banho. - balancei seu ombro.

A mulher continuou desacordada no chão. Não me alarmei; já estava acostumada. Continuei tentando conseguir sua atenção até que, irritada, ela abriu os olhos. Sua pupilas não conseguiam focar em nada, era como se ela não me enxergasse.

– Vem, mãe, vou te levar pra sua cama. - tentei levantá-lá pelo braço.

Ela balbuciou algumas palavras sem sentido, eu continuei chamando-a e tentando fazer-lhe levantar.

– Anda! Eu vou te levar pra cima... - puxei seu braço com mais força tentando erguer seu corpo – Levanta, mãe.

– Não! - gritou e chutou minha perna.

Soltei-a imediatamente e ela caiu. Ouvi o barulho de sua cabeça batendo no chão frio. Bufei, já ficando irritada.

– Levanta, vamos! Eu vou te pôr na cama antes que o pai chegue! - insisti.

– Não! Me solta! - repetiu com a voz embargada e voltou a agredir-me.

– Tem que sair do chão! Se ele te encontrar assim de novo vai ser outra briga. Levanta!

Segurei firme em seu braço e tentei desviar do chutes cegos que ela dava no ar. Ela tentava se soltar, dando tapas e socos em minhas mãos, cravando as unhas curtas em minha pele.

– Que droga, mãe! Por que você tinha que fazer isso de novo? Levanta!

– Caralho! Me deixa!

Ficamos batalhando por alguns minutos, até que ela desistiu de continuar onde estava e me obedeceu, esbravejando palavrões pelo caminho. Tropeçou até seu quarto, e eu tive que apoiar seu peso e segurar seu corpo para que não caísse durante o trajeto. Jogou-se na cama reclamando e em poucos segundos já estava em silêncio.

Suspirei. Merda. Por que ela sempre fazia isso? Merda!

Desci até a sala e limpei o álcool, me certificando que meu pai não sentiria o cheiro. Ele ia saber o que tinha acontecido assim que encontrasse-a naquele estado de quase desmaio sobre o colchão, mas normalmente adiava a briga se não encontrasse vestígios de bebida pela casa.

Enquanto esfregava desinfetante de pinho no chão, as perguntas voltaram a invadir minha mente.

Por que ela continuava?

Por que uma vida sóbria não lhe era suficiente?

Por que ela era tão egoísta?

Por que comigo?

Ela sabia como terminava, todos sabiam. Gritos, xingamentos, murros na parede, móveis quebrados, garrafas estilhaçadas pelo chão, outra televisão ia pro lixo. No dia seguinte, depois que o álcool já tinha deixado sua corrente sanguínea, ela olhava o estrago ao redor: a casa destruída, meu pai dormira fora, uma vizinha me consolando na sala, um lábio inchado. Tantas vezes aquela cena tinha se repetido.

Primeiro o álcool, depois as lágrimas - essa foi a ordem que eu sequei. Mais tarde, no meu quarto, enquanto chutava e socava o travesseiro, eu quis gritar. Eu queria colocar meus pulmões pra fora e me livrar daquela raiva, mas não podia. Era tarde demais, os vizinho precisavam dormir, então reprimi a voz procurei por outra forma de extravasar o que sentia. Olhei para o teto e vi a ponta da corda aparecendo. Eu havia amarrado-a e escondido sobre o ventilado, mas uma pequena ponta aparecia. Contive o impulso.

Haviam algumas roupas minhas espalhadas pelo quarto bagunçado, penduradas na cadeira ou simplesmente no chão. Não pensei duas vezes antes de me atirar sobre elas, puxando o tecido até rasgar, de novo e de novo. Uma camiseta, uma bermuda, outra camiseta. Eu não me importava com o que era, apenas continuei destruindo meus próprios pertences enfurecida até cansar.

Quando ouvi o barulho da porta ranger delatando que meu pai tinha chegado, apaguei a luz e me encolhi debaixo do lençol. Primeiro ele seguiu até o próprio quarto, praguejando ao encontrar a mulher na mesma situação de dias antes, depois abriu lentamente a porta do meu quarto. Mordi os nós dos dedos para conter os soluços, e ele acreditou que eu não eatava acordada. Foi dormir na sala. Eu chorei ate adormecer.

Guia Prático Para Um Suicídio De ÊxitoOnde histórias criam vida. Descubra agora