Cachorrinho abandonado

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Eu parei com a mão na maçaneta e olhei ao redor: minha mãe na cozinha, encarando o chão com um olhar vazio, perdendo-se em pensamentos enquanto segurava uma panela, parada como se estivesse congelada e com a mente em outra dimensão - o lábio inferior ainda com uma casquinha de sangue seco de alguns dias atrás. Do outro lado da casa, mais especificamente na sala de estar, estava meu pai com o cenho franzido, segurando o controle remoto com tanta força que as veias pareciam saltar no dorso de sua mão, assistindo alguma coisa no Discovery Channel com os orbes presos à tela mas as pupilas pareciam atravessá-la até outra galaxia.

Suspirei. Até quando aquela situação iria se arrastar? Ou melhor, como sequer tínhamos chegados àquilo?

- Eu vou sair um pouco. - informei e os dois pares de olhos se grudaram em mim. Pelo menos por um instante, até que se encontraram e se separaram no mesmo segundo, fazendo o mundo voltar a girar.

- Não demore para voltar, meu anjo - minha mãe disse suave desde a cozinha.

Confirmei e girei o pedaço frio de metal em minha mão. Do lado de fora inspirei fundo o ar puro e fresco, diferente do gás sufocante que tinha por detrás daquela porta. Dei um passo e parei - Seria seguro sair? Ficar fora por mais algumas horas não faria mal, certo? Quer dizer, eu tinha que sair a manhã toda para a escola, então... Então eles ficariam sozinhos de qualquer jeito, certo? Eles não fariam nada de ruim, certo? Não de novo. Não depois de tão pouco tempo. Não em tão pouco tempo, afinal, era só uma saída de meia hora - uma hora, no máximo. Não tinha como nada acontecer, certo?

Voltei meu caminho, dando passos lentos mas me afastando mesmo assim.

Quando já estava a algumas quadras longes de casa, chutando uma tampinha de plástico de refrigerante, avistei que vinha em minha direção um rosto manchado conhecido. Ele caminhava em linha reta, com as sobrancelhas franzidas logo abaixo da touca vermelha que escondia todo o cabelo castanho, as mãos nos bolsos, os ombros altos. E ele olhava diretamente para mim. Parei com meu esporte suburbano no mesmo segundo, olhando sem muita atenção antes de atravessar a rua pouco movimentada e alcançar a outra calçada. Do outro lado ele estava passando por onde eu estivera segundos antes. Nossos olhares se cruzaram por um segundo e eu sabia bem o que ele estava pensando.

- Vá se foder - murmurei pra mim mesma antes de voltar a andar.

Por sorte o local mais seguro do planeta estava não muito longe, então minutos depois a muralha transparente automática estava se abrindo para mim. Uma farmácia - quem poderia imaginar que aquele lugar se tornaria um dos meus preferidos?!

- Hey, olha só quem o vento da primavera trouxe! - exclamou o babaca ao qual eu sequer me dei ao trabalho de responder. Apenas atravessei as prateleiras meticulosamente arrumadas, passei por baixo do portal no balcão e entrei na copa.

- Mike? - chamei.

- Ele está lá fora estacionando o carro. - o babaca falou se apoiando lateralmente no batente.

Absorvi a informação mas não agradeci-lhe, apenas puxei uma cadeira e sentei-me junto a pequena mesa de granito.

- Então... Pelo que eu estou vendo você veio ver o Michael? - falou parado sob o batente.

Nenhuma resposta.

- Você não vai falar comigo?

Nenhuma palavra.

- Acho que você sabe o quão irritante eu posso ser...

Oh eu sabia! E como sabia! Mas Lennick parecia precisar descobrir o quão fria eu poderia ser.

Guia Prático Para Um Suicídio De ÊxitoOnde histórias criam vida. Descubra agora