Hospício

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Aula de química, ou seja, aula de desenho. O professor gordo, careca e de jaleco sujo de giz colorido explicava qualquer coisa sobre ligações iônicas que eu já tinha desistido de entender há meses. Química era loucura e fim, não havia o que discutir sobre isso. Então eu estava alegremente traçando um esboço de Mike para adicionar a sua ficha. Eu sei, eu sei; Mike não estudava comigo. Mas mesmo assim eu achei que ele merecia uma ficha criminal.

Eu estava desenhando seus cílios com minha caneta vermelha, caprichando em preencher todo o espaço ao redor de seus olhos, já que ele tinha mesmo muito cílios, quando senti algo cutucar minhas costas. Virei-me para trás.

– Oi.

– O que você quer?

– "Oi, Lenny, tudo bem com você?" - falou com uma voz fina ridícula. Qual era o problema daquele garoto?

Voltei minha posição para frente, tentando me concentrar em meu desenho, mas isso era impossível, já que o babaca iniciou uma sequência ininterrupta de cutucadas com um dedo em minhas costas. Tentei ignorar. Respirei fundo. Fechei meus olhos. Expirei o ar devagar. Contei até dez.

Ele não parava.

Nesse tipo de situação que testava os limites da minha paciência inexistente, só havia uma coisa a se fazer:

– Professor, eu preciso ir ao banheiro! - anunciei em voz alta com uma mão erguida.

Todos os olhares da sala se viraram para mim, mas eu me manti firme encarando o professor e sua sobrancelha erguida. Calma, Valentina, calma.

– Você não pode esperar a explicação terminar? - ele perguntou confuso, afinal, que tipo de pessoa anuncia que precisa ir ao banheiro?

Neguei freneticamente com minha cabeça, balancando-a para os lados.

– Então tudo bem, você pode sair Valentina.

Tão logo o professor permitiu minha saída, eu me levantei e me apressei porta afora. Segui pelo corredor e passei direto pelo banheiro, indo em direção à quadra. Ao chegar lá encontrei a professora de educação física apitando enlouquecidamente com os alunos de uma sala do oitavo ano. Já os pobre adolescentes corriam estressados de um lado para o outro, sem saber ao certo como funcionavam as regras do rugby. Eu não os culpo - quem liga para rugby? Se pelo menos fosse basquete ou vôlei, mas rugby? Rugby?! Por favor...

Passei pela quadra, deslizando meus dedos pela grade até a sala de judô. Girei a maçaneta e era óbvio de que estava destrancada, afinal, quem se importava com a sala de judô? Afastada, com paredes precisando de duas camadas de tinta branca e o chão coberto por tatames azuis e amarelos, sujos e parcialmente rasgados - sequer havia aula de judô ainda?

Deitei no chão observando a ironia de ir por vontade própria para uma sala acolchoada. Só faltava amarrar as mangas da camisa nas costas e me jogar contra a parede. Ri sozinha.

Não tinha muito o que fazer por lá, mas também não tinha motivos para voltar para a sala, então fiquei arrancando pedacinhos da espuma por meia hora até ouvir o sinal indicando que as aulas tinham terminado. Hora de voltar à realidade, vadia!

Caminhei pelo pátio movimentado de alunos indo embora e voltei para a classe. Eu esperava encontrá-lá completamente vazia, e isso foi quase o que consegui, a não ser por duas pessoas que continuavam de pé: o professor de química e Scarllet. Na hora que os vi, dei um passo silencioso para trás, planejando voltar a me esconder até que a barra estivesse limpa, mas era tarde demais; eles também me viram.

– Valentina! - chamou Marco.

Droga!

– Ah, hunnn... Eu não estava me sentindo muito bem então estava tomando um pouco de ar fresco, profs...

Ele negou com a cabeça, decepcionado e sem comprar minha desculpa.

– Tudo bem, venha cá - falou fazendo sinal com a mão para que eu me aproximasse, e eu o fiz, cautelosamente, parando em frente a sua mesa mas mantendo uma distância segura de Scarllet; a garota me fitava – Escute, suas notas estão decaindo a cada mês e o seu rendimento nas aulas também. Eu falei com os outros professores e eles concordaram comigo de que seria bom se você conversasse com a sra Lee um pouco, caso esteja tendo algum problema em casa...

– Não tem problema nenhum! - interrompi-o – Está tudo certo comigo, e-eu não acho que esteja precisando falar com a sra Lee nem nada, ok?

Mas que merda era aquela? Os professoras falavam de mim pelas costas? Era o que, uma seita contra Valentina? Ele se reuniam em círculo usando capas escuras e falando em latim?! Por que, de onde mais tirariam a ideia de que eu precisava ver a psicóloga da escola, a não ser que um espirito do além lhes dissesse isso?! Impossível!

– Ok, escute com atenção. Talvez não seja nenhum problema em casa...

– Não tenho problema em casa!

– ... Mas pode haver alguma outra coisa incomodando. Eu só estou sugerindo que você vá encontrá-lá em algum horário, converse um pouco, mesmo sem motivos. E eu também conversei com Scarllet, e pedi-lhe que te ajudasse a estudar para as próximas provas...

– O que?!

Meus olhos corriam de um lado para o outro, do sorriso falsamente amistoso da garota para o cenho franzido do educador. Mas que droga estava acontecendo ali? Quanto tempo eu tinha ficado fora? Desde quando o universo conspirava planos diabólicos para de fato me enlouquecer e me internar numa sala acolchoada de um hospício?!

– Eu não preciso de ajuda, eu estou bem! Eu não vou falar com ninguém e nem estudar com ninguém; eu posso fazer isso sozinha...

– Acalme-se, criança. Ninguém disse que você não está bem.

O professor tentava afagar meu ombro, mas eu tirava sua mão toda vez que me tocava. Ele era um traidor, assim como todos os outros! Já Scarllet observava tudo em mudo espanto, com milhares de coisas pipocando em sua mente mas sem pronunciar nada com sua voz aguda.

– Se eu estou bem então não preciso de ajuda.

–Todos precisam de ajuda. Por favor, repense, Valentina. É apenas um pouco de ajuda para melhorar sua notas, ou você vai acabar perdendo o ano.

Merda! Perder o ano? Eu? Oh não! Ter que passar por tudo isso de novo, ter as mesmas aulas e aguentar meus pais brigando por mais um ano? Nem pensar! Mas também, de onde ele tinha tirado que eu precisava de ajuda com os estudos? Se eu tinha tirado 2 em uma prova e 0,5 na outra, então bastaria eu tirar 8,5 em cada uma das duas provas que faltavam e poderia passar por arredondamento. Simples assim!
– Tudo bem, Valentina; vai ser legal! Eu também preciso estudar mais para algumas provas. Podemos ajudar uma a outra.

Foi impossível conter minha expressão de "você é retardada?" ao olhar para a garota ao meu lado. Ela era retardada? Ou achava que eu era?

– Você só tira dez! - soltei com obviedade.

– É, bem... - oscilou por um momento – Por isso mesmo! Eu preciso me empenhar para manter minhas notas então seria legal ter alguém para me fazer companhia...

Eu estava pronta para responder-lhe com algum insulto simpático, mas o professor pareceu ler minha mente (ou minha cara) e se adiantou antes que a granada explodisse.

– Vai ser bom para as duas. E se você aceitar, eu posso passar alguns trabalhos extras para ajudar com as notas, o que me diz?

Fechei meus olhos por um segundo, apertando meus dedos contra as pálpebras, avaliando minhas chances de conseguir recuperar minhas notas sem nenhuma ajuda. Que merda! Implorei mentalmente perdão aos deuses da guerra e do orgulho.

– Eu aceito.

Eu só podia estar ficando louca mesmo.

Guia Prático Para Um Suicídio De ÊxitoOnde histórias criam vida. Descubra agora