Pintura defeituosa

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Eu estava sentada no chão frio do banheiro, com minhas costas contra os azulejos e abraçando meus joelhos. Apenas de calcinha, meias e com a regata fina do pijama que eu insistia em usar por baixo de praticamente todas as outras blusas. A pouca roupa, o vento da noite e o porcelanato contribuiam para meus dedos ficarem arrocheados sob as unhas, e observar isso quase me distraia por alguns instantes.

A minha frente, em cima da tampa da privada, estavam minhas roupas e minha mochila.

Fechei os olhos tentando imaginar o mundo sem Valentina e, obviamente, o mundo continuou o mesmo.

O mundo não para quando você está doente ou triste, e com certeza o mundo não pararia quando eu estivesse morta.

As pessoas iam caminhar por onde eu caminhei, escorregar no balanço que eu sentei, ficar à mesa da escola que eu sempre escolhia, fazer tudo e estar onde eu estive e nem sequer saberiam que a garota que sempre esteve ali agora estava morta.

Porque, no fim, eu não fazia diferença nenhuma. Em tudo. Em nada.

Apoei minha testa em meus braços cruzados, observando o tecido de algodão listrado em meu colo.

Qual era o ponto em viver? Qual era o ponto? O motivo, a razão, o porquê; qual era?

Não existia um motivo para viver. Nenhum motivo era suficientemente denso para fazer sentido. Acordar, comer, caminhar, estudar, trabalhar, dormir e acordar. E assim o ciclo seguiria até o fim. E pensar que isto supostamente se repetiria por 60, 70 anos - como alguém poderia achar isso bom?

Viver não era bom.

Os sorrisos, as risadas, os abraços, as piadas, os segredos: esse era o motivo, eles diziam. Estar com quem se ama, sorrindo e sendo feliz - esse era o motivo para viver, eles diziam.

Eles. Todos eles. Dos desconhecidos aos familiares, da televisão até as vozes do meu subconsciente.

Mas isto... Isto era tão... pouco.

Era um sentimento tão mesquinho.

Querer viver porque os outros me faziam sentir bem - isso era puro egoísmo. Como alguém consegue dormir a noite sabendo que vive porque, de alguma forma, outras pessoas se encarregam de fazer-lhe sorrir?

E pior ainda: como alguém conseguia dormir feliz sabendo que se não existisse, se houvesse outra pessoa em seu lugar, todo esse amor seria direcionado para essa outra pessoa.

Se eu não existisse, outra Valentina existiria. E todos eles amariam ela do mesmo jeito, ou até mais.

Se eu não existisse, todo esse suposto amor seria divido entre eles mesmos. Se eu não tivesse nascido, não tivesse os conhecido, não tivessem falado com eles, então... Então eles ficariam bem.

Eles ficariam bem sem mim.

Eles. Todos eles que me conheciam: mamãe, papai, Mike, Scar, Lennick,  Tia Anne, vovó Naná... Todas as pessoas que eu achava que, de alguma forma, gostavam de mim.

Eles ficariam igualmente bem sem a Valentina.

Porque a verdade é que ninguém é necessario.

Ninguém é insubstituível.

O mundo não depende de ninguém para existir.

Levantei-me do chão e sentei sobre o vaso, com minha mochila no colo. Abri e comecei a remexer em tudo que estava ali dentro, sabendo exatamente pelo que estava procurando.

Parei assim que avistei. Peguei-a e coloquei a mochila no chão junto com minhas roupas, mecanicamente.

Em minhas mãos agora havia apenas uma caixinha de papelão que eu tratei de selar com adesivos da princesa Ariel para que não abrisse. E dentro da caixinha de papelão estavam minhas adoradas navalhas.

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