Tempo para pensar

73 20 0
                                    

A casa do tio da Capitã não era longe do Portão Leste. A tensão do dia anterior havia provocado exaustão. Dora tentou acordá-la para o desjejum, mas ficou com pena.

Will concordou — Deixe-a. Um pouco mais de sono lhe fará bem.

— Sim, sinhô, tenha um bom trabaiu.

Will saiu bem cedo para a academia naquele dia. Perdera uma instrução no dia anterior, e combinou com o aluno, uma reposição na primeira hora.

Ailynn acordou gelada e pensou em abrir a janela para deixar entrar um pouco do sol matutino. Usava uma camisola antiga que estava um pouco curta, mostrando suas pernas, que eram fortes e esbeltas, mas marcadas de muitas cicatrizes. Fechou os olhos por causa da claridade. Só conseguia observar lá fora colocando as mãos para proteger os olhos. Estava habituada demais a sempre usar o véu. Os cômodos de dormir da casa de Will ficavam no segundo pavimento, e dali, podia ver quintal de alguns vizinhos, algumas árvores aqui e ali, pequenos animais, pessoas trabalhando e muita gente circulando pelas ruas. Por um instante, imaginou como seria ótimo se pudesse ser uma pessoa comum. Poderia cuidar de animais, fazer serviço doméstico, casar-se, criar filhos... Logo, sacudiu aqueles pensamentos improdutivos para longe. Ela era uma guerreira. E era também amaldiçoada. Nada de vida comum, nada de filhos.

Mais ao longe, ela podia ver um bom trecho da avenida Oeste-Leste, que cruzava toda a cidade. A muralha e o portão estavam bem visíveis. Que horas seriam? A segunda? Terceira?

Foi quando viu Hégio e Yaren seguindo o rumo oeste. "Mas que diabos!" A Capitã tirou a camisola, atou a faixa que usava comprimindo os seios, vestiu a túnica, sua cota de malha, mas deixou algumas peças da armadura para trás. Os perderia se fosse vestir tudo aquilo. Desceu as escadas, vestiu as botas. Pegou um pão sobre a mesa e correu para fora. Usando o véu, nunca precisava se preocupar com arrumar os cabelos. Conhecia bem a cidade, tomou todas as ruas e becos para seguir pelo caminho mais curto e os alcançou antes que atravessassem a ponte.

— Ei, esperem!

Hégio virou-se e esboçou um sorriso ao olhar para a Capitã.

— Capitã, bom dia! Está tudo bem, você parece meio amassada...

Ela subiu a ladeira da ponte e finalmente os alcançou, mas antes de responder algo a Hégio seu olhar voltou-se para os estandartes da comitiva de Lacoresh. Era possível ver uma ou outra bandeira atrás das casas do bairro das espadas.

— Lacoreses? — ela indagou ao invés de retrucar contra a zombaria de Hégio.

— Não é melhor você ir até ver a que vieram? — indagou o guia.

— Não, não posso voltar lá.

Yaren aproximou-se dela.

— O que houve ontem?

— Eu acho que posso ter... — e então ela tomou-o pelo braço puxando-o para o lado de Clyderesh. — Você vem comigo.

— Como assim, para onde? — Yaren olhou-a espantado.

— Não sei, mas não podemos voltar lá.

— O que está havendo, Capitã? — Yaren não compreendia, mas Hégio captou algo no ar. Sim, ela estava nervosa e abalada. Hégio sugeriu:

— Por que não passamos na Vó Bazu para o desjejum e conversamos com mais calma?

— Sim, vamos. — e desceu apressada puxando Yaren atrás de si.

O casebre da velha Bazú não era longe dali. No quintal, havia alguns clientes. Ela os servia com um mingau branco e pegajoso. O cheiro era bom.

— Vó Bazú!

— Ginho, meu rapaz. Trouxe sua amiga de volta, hã? E este outro?

— Sou Yaren.

A velha pareceu reconhecê-lo, fez uma reverência e esforçou-se para prostrar-se de joelhos diante dele.

— Santo rapaz! Abençoe essa velha que tanto precisa.

— Que Deus a abençoe — Yaren colocou a mão sobre sua cabeça e em seguida ajudou-a a ficar de pé.

— Pensei que não era mais monge — resmungou Hégio.

— E não sou, mas posso bem pedir a Deus a benção aos necessitados. Aliás, como qualquer um.

A Capitã ainda tinha metade de um pão nas mãos. Estava faminta. Serviu-se do mingau adocicado e foi sentar-se nos bancos improvisados espalhados no quintal.

A velha pediu que Yaren orasse com ela para dar juízo ao seu netinho e ele aceitou de bom grado. Enquanto isso, Hégio serviu-se e foi sentar-se ao lado da Capitã.

Hégio mostrou o corte quase cicatrizado em seu braço e disse — Ontem tive que arriscar minha pele para salvar a vida do monge. Ele a seguiu para fora da cidade. Três mercenários quase o apanharam, mas eu cheguei a tempo.

— Sério? Obrigado, eu...

Tocou a ferida com a ponta dos dedos. Só então se deu conta que havia deixado seu par de luvas na casa do tio. Hégio segurou a mão dela. Estava trêmula, suada e fria. A Capitã sentiu o toque quente e firme da mão do guia. Olhou-o e viu que estava sorrindo. Então, envergonhada, puxou a mão para si.

— O que aconteceu, Capitã? Está metida em algum tipo de encrenca?

Ela estava convicta de sua culpabilidade quanto ao assassinato do cavaleiro. Acenou positivamente.

— E o que pretende fazer?

— Eu não sei. — Ela mordia os lábios, lutava para manter o controle.

— Por que você e o padreco não vem comigo numa viagem? Tenho uma coisa para entregar, não é longe. Isso daria algum tempo para você pensar. Se acalmar. Está muito tensa sabia?

— Sei disso.

— Ótimo, podemos ir direto ao Porto Novo. Lá sempre tem alguma embarcação descendo para Situr.

Yaren chegou até eles, com uma tigela de mingau fumegando.

— E então Capitã, afinal o que houve?

— Não quero falar disto.

— Pode confiar em mim. — seu olhar inspirava mesmo confiança.

— Desculpe, mas no momento sequer confio em mim mesma.

— Vamos, padreco, termine seu mingau e venha conosco. Vamos sair da cidade novamente.

Ele ergueu as sobrancelhas, surpreso. — É mesmo?

— Vamos até Situr. Tenho um negócio a resolver isto vai dar um pouco mais de tempo para a Capitã organizar suas ideias.

— Faz sentido. — ele acabou por concordar.

— Todos satisfeitos, certo? — levantou-se Greyhill. — Podem deixar que eu acerto com a Vó Bazú. E depois, direto ao Porto Novo.

Herdeiros de KamaneshOnde histórias criam vida. Descubra agora